O Acontecimento, filme que ganhou o Leão de Ouro em 2021, estreia hoje nos cinemas brasileiros. Baseado no romance biográfico de Annie Ernaux, o longa conta a história de Anne, uma jovem francesa que fica grávida e decide que não quer ter o bebê, em uma época que o aborto ainda era ilegal na França. Rompendo com o silêncio de um tema tabu, o filme possui a capacidade de expressar muito bem como a gravidez indesejada e o aborto são coisas dolorosas que muitas mulheres acabam passando em segredo. De forma corajosa, a diretora do filme, Audrey Diwan, expõe uma experiência que foi silenciada ao longo dos séculos pelo patriarcado.

A diretora do filme, Audrey Diwan, que se tornou a quarta mulher na história a vencer o maior prêmio do Festival de Veneza, consegue transmitir ao público todas as angústias de viver em um país que nega a autonomia ao corpo de pessoas com útero. O formato de tela 4:3 comprimem a agonia da protagonista. A câmera está sempre próxima ao seu rosto. A trilha sonora é pontual. Pode-se dizer que O Acontecimento é um filme violento, mas aqui a violência é produto de uma política do Estado que controla o corpo e a sexualidade das pessoas com útero. Além do aborto ilegal apresentar um risco de vida, a personagem ainda pode ser presa. Os médicos – homens – negam ajuda à Anne. O pai da criança não se responsabiliza por nada. O professor da universidade cobra que a protagonista tenha o mesmo rendimento que sempre teve, como se a vida psíquica não afetasse a produtividade da estudante que sofre em segredo.

Além da dificuldade em tentar realizar o procedimento de forma ilegal e insegura, parte do sofrimento de Anne vem do fato de que ela não pode falar sobre sua experiência com mais ninguém. Suas amigas, mesmo aquelas que falam de sexo abertamente, se recusam a apoiá-la com medo de serem cúmplices de um crime. É uma experiência solitária. Contudo, quem passa o contato de uma aborteira para a personagem é uma mulher desconhecida, o que é interessante para pensar a importância dos feminismos como lutas coletivas. Assim como em outros filmes que apresentam interrupções de gravidez, como Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre (2020) ou Retrato de Uma Jovem em Chamas (2019), em O Acontecimento são as mulheres que ajudam umas às outras. Outro fato interessante é que o filme francês não apresenta uma visão moralista da sexualidade. Apesar da gravidez indesejada, Anne ainda é um ser sexual. A protagonista está em dilemas constantes envolvendo seus desejos e as pressões morais, mas tem a coragem de bancar suas vontades. Ela quer ser livre sexualmente, quer ter a liberdade para escolher a maternidade e quer poder escolher sua carreira profissional.

Concluindo, a direção de Diwan consegue fazer com que o público, de forma visceral, consiga sentir as angústias de Anne. Grande parte da jornada de sofrimento da protagonista acontece pelo fato do aborto ser ilegal na época. Além dos tabus que cercam a maternidade, a legalização do aborto é uma questão de saúde pública e de política criminal. O filme pode ser útil para trazer à tona narrativas e principalmente, as sensações que uma gravidez indesejada provoca. Recentemente no Brasil, dois casos de pessoas que foram estupradas e engravidaram sem o desejo de serem mães repercutiram publicamente. Além disso, os Estados Unidos debatem a proibição do aborto, que é legalizado no país desde os anos 1970. As discussões sobre os diretos reprodutivos estão em alta e, por este motivo, é mais que necessário passar pela dura experiência de assistir O Acontecimento nos cinemas.

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