Crítica por Victoria de Castro Nunes

O documentário de Eduardo Coutinho começa com a câmera de segurança do prédio mostrando o mesmo e sua equipe adentrando o Master, adentrando seus corredores, falatório, informalidade. Isso é uma equipe de filmagem e isso é um filme. Logo entra a narração em off de Coutinho contando o que foram fazer ali: filmar o Master e entrevistar seus moradores, porteiro e síndico por uma semana.

Tradicionalmente, para as ciências sociais é necessário se ter uma distância que garanta ao investigador ter condições de objetividade, basicamente ver de longe para poder ver tudo, não interferir na integridade do “objeto de estudo”, imparcialidade, evitar envolvimento, valorização do método quantitativo. Já a antropologia opera num viés qualitativo, através de um exercício de observação e empatia, mas onde se desenha a linha entre você e o outro?

A primeira entrevistada de Coutinho é uma senhora que mora há muitos anos no prédio e mudou-se inúmeras vezes, mas sempre dentro do Master, é ela quem diz que teve uma vida de cigano mas dentro do mesmo edifício. Quando um filme de documentário é feito, a visão do diretor também está ali, por mais que aquelas palavras não sejam diretamente dele, é ele quem escolhe o que botar no filme, a ordem que aqueles discursos serão dispostos no filme, os cortes nas falas. Sendo seu discurso bem descritivo, você se familiariza com o Master e com a visão que uma moradora tem dele: “Aqui é um antro de perdição”, ela comenta sobre prostituição e libertinagem que acontecia no prédio, que nos é apresentado como um lugar que não é privilegiado, ali não mora uma alta sociedade. Um dos entrevistados de Coutinho se refere ao Master como “um desses prédios de Copacabana”, claramente o diminuindo por não ser um lugar de requinte, pois é um conjugado com 23 apartamentos por andar e mais de 500 moradores.

Desde o início vemos imagens da equipe transitando os corredores, batendo as portas, entrando nas casas, se apresentando para os moradores, nós conseguimos ver a interação das pessoas que estão no lugar de investigadores antropológicos e as pessoas que serão ouvidas, que contarão suas histórias e falarão suas memórias e dia a dia, são elas que importam, esses relatos são o objetivo do filme. Então, vendo essa equipe indo e vindo, aparecendo na frente das câmeras, nos lembra a todo momento que aquilo é um filme documental, aquelas pessoas estão ali interessadas em ouvir e ouvir para além da audição, é se importar com o que está sendo dito, é dar espaço e atenção. Gilberto Velho no seu texto “Observando o familiar” fala da barreira linguística por exemplo, não só a de idiomas, mas a de vocabulário. Nenhuma dessas pessoas, equipe e Coutinho, estão de fato incluídos no contexto do Master, mesmo que tenham alugado um apartamento para se instalarem por um mês. Eles estão ali como ouvintes e por mais que tenham se familiarizado com a vida ali, é necessário estranhar o familiar.

Há vários recortes, mesmo que sutis, nos assuntos abordados no documentário. Logo no início o tema da solidão nos é apresentado. O primeiro relato que fala sobre o tema termina com imagens dos corredores do prédio. Diversos entrevistados – que vale lembrar, têm seus nomes escritos na tela na hora de suas falas – contam como se sentem sozinhos mesmo estando num lugar com muitas pessoas, o prédio em si e o bairro de Copacabana. Ouvimos pelo menos duas senhoras falando sobre o desejo de se jogar da janela. Começamos a ver o Master e Copacabana como um lugar triste, cansado, sozinho e abandonado por Deus, “não gosto de Copacabana, me sinto presa”. Ouvimos o bairro como um lugar muito cheio e de aglomerações, que conseguimos identificar, conhecendo-o fisicamente ou não, como um lugar diverso. E assim são os entrevistados de Coutinho: pessoas de todas as idades, com as mais variadas histórias de vida.

Em alguns momentos durante o documentário ouvimos em voz off as perguntas de Coutinho aos entrevistados, conferindo um tom de conversa ao filme, juntamente com outros elementos, como a figura do mesmo sendo mostrada em alguns momentos. Gilberto também fala em seu texto “Sendo o pesquisador membro da sociedade, coloca-se, inevitavelmente, a questão do seu lugar e de suas possibilidades de relativizá-lo ou transcendê-lo e poder ‘pôr-se no lugar do outro”. Uma das personagens do filme é uma senhora espanhola com um discurso preconceituoso e de certa forma raivoso, mas o espaço da entrevista não é um lugar para julgamentos, ninguém irá repreender verbalmente aquela senhora ou discordar dela. É reconhecido o local de estudo antropológico, a escuta, o exercício da empatia, ao mesmo tempo que sabemos que Coutinho não concorda com ela, pois pergunta coisas que ela já havia afirmado, mostrando um sutil desprezo pelo discurso, mas ainda assim ouvindo e respeitando o espaço que aquela senhora tem para expressar sua opinião. Coutinho poderia facilmente tirar todo discurso que ele discordasse do filme, mas aí o mesmo perderia sua autenticidade.

Muitos dos escolhidos para protagonizarem o filme são pessoas que se expressam através da arte, muitas entrevistas são marcadas por números musicais – alguns pedidos pelo próprio Coutinho e equipe, alguns por iniciativa dos entrevistados – onde cantam músicas que fizeram parte da sua vida há 60 anos, por exemplo, ou de épocas de glórias passadas, ou são jovens curitibanos querendo passar mensagens através de suas músicas, ou são poetisas, poetas, pintores. Há o interesse de fazer a expressão artística ser um dos recortes do filme.

Um dos entrevistados, que é um ex morador da zona norte que mudou-se para a zona sul, aponta diferenças entre a vivência onde morava e agora em Copacabana e diz que este é muito isolado porque cada um está trancado no seu apartamento, que às vezes não sabe de morte de vizinhos, apenas se ficar algumas semanas sem notícias da pessoa, enquanto a próxima entrevistada, que aparentemente é uma mulher de família rica (ganhou o apartamento do pai) diz que consegue ouvir tudo que seus vizinhos falam e fazem, que ela gostaria de isolar as passagens de som do apartamento, que fica incomodada. Ela expressa seu descontentamento dizendo que “Copacabana é aterrorizante.” Ela é mais uma das entrevistadas que engravidou na adolescência e não abortou. Há no mínimo três mulheres com a mesma história que contam seus relatos no filme, mas diferente das outras, essa veio de uma família rica. Percebe-se que há uma distância entre ela e os outros moradores do prédio e arredores. “Antropologicamente é interessante, mas adoraria matar quem esbarra em mim, os ambulantes”

Todos os discursos estão pensadamente colocados no filme, no sentido da montagem, mas nesse vemos uma dualidade direta do discurso. Logo após ouvimos uma estudante que conta como ouvir as vozes da família e de uma menina que mora perto do seu apartamento desperta muito seu interesse e curiosidade, ela pegou como seu objetivo pessoal achar quem era a menina que ela ouvia sendo chamada através das paredes e com esse relato singelo e corriqueiro as entrevistas são terminada e Coutinho mostra imagens do edifício Master, janelas, salas, corredores e então planos ponto de vista distantes de pessoas vivendo, fechando as cortinas, apagando as luzes. O Master dorme, encerra-se a jornada no local que se permite viver muitas vidas em uma.

 

Referências bibliográficas

Observando o Familiar de Gilberto Velho. Rio de Janeiro: Zahar, 1987. Disponível em: Untitled

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