Artigo de Julia Dias Alimonda originalmente publicado em 2022 nos Anais de textos completos do XXIV Encontro Socine

 

Desde dos anos 1970, quando a pornografia se tornou popular na cultura de massas, as pornógrafas, ativistas e intelectuais feministas refletem sobre como produzir imagens de sexo explícito que priorizem o prazer feminino e apresentem uma coreografia sexual menos misógina. Além disso, também se questionam sobre como transformar as relações de trabalho da indústria pornográfica e combater as violências e estigmas sofridos pelas trabalhadoras sexuais. Neste artigo, pretendo analisar a série Bed Party (2014), dirigida pela estadunidense Shine Louise Houston, onde ela usa as categorias realidade, intimidade e ética como valores feministas de produção audiovisual, com a intensão de criar um retrato da vida sexual de dois casais cis e monodissidentes.

Shine Louise Houston é fundadora da Pink and White Productions, produtora de filmes pornô voltada para o público queer, e do Pink Label TV, site de streaming de pornografia independente. Em seu site, a diretora afirma que criar imagens é poderoso, é importante uma mulher negra e queer como ela estar nesta posição de criação de conteúdo. Estando ciente do valor da mídia na construção da sexualidade e na força política que as produções pornográficas podem ter, a artista apresenta em suas produções novas formas de olhar o corpo, corpo este que está no centro dos debates políticos contemporâneos.

A série de curtas-metragens Bed Party, possui dois episódios de 20 minutos e documenta a vida sexual de dois casais de atores pornôs: o casal interracial Eden Alexander e Sebastian Keys, fazem parte de um episódio, e outro é composto pelos performances negros Jack Hammer XL e Nikki Darling. Além do desejo de captar as manifestações de prazer autênticas, a opção de tornar os casais como centro da narrativa rompe com convenções pornográficas que raramente tem como protagonistas um par amoroso. Além disso, trabalhadores sexuais, pessoas não-brancas e não-heterossexuais não costumam ser as protagonistas das histórias de amor no cinema. A intimidade dos entrevistados é uma forma de atrair o público e legitimar o ato sexual, usando o relacionamento amoroso como comprovação de que o prazer ali é verdadeiro. Para Houston, a intimidade é o elemento mais pornográfico do filme[1].

No filme de Jack Hammer XL e Nikky Darling o ápice do prazer masculino não aparece em cena. É a mulher que tem múltiplos orgasmos através da estimulação de um vibrador. Além disso, é interessante notar que ambos filmes têm múltiplas cenas de orgasmos e em nenhuma delas os casais gozam juntos. Os orgasmos acontecem através de práticas que envolvem boundage, fisting e squirting. O romance não exclui as práticas hardcore, mas a acentuam, é a partir da intimidade cotidiana que os prazeres não-normativos acontecem. E é através dos vínculos de intimidade do casal que eles podem se abrir para práticas sexuais dissidentes e ter o ápice de prazer da sua vida sexual.

Uma crítica recorrente que a pornografia recebe é que as exibições de prazer não são verdadeiras, não se assemelham a vida sexual real dos espectadores. Tradicionalmente, a pornografia mescla uma linguagem que se sustenta e legitima nas convenções realistas, e mesmo documentárias, com aspectos extremamente artificiais e fantasiosos (Díaz-Benítez, 2010). A excitação, o prazer e o ato sexual são performados de forma exagerada, o que é considerado um problema dentro do movimento feminista. Como a pornografia, apesar de ser uma ficção, é um dos poucos espaços onde se vê o sexo abertamente, isso poderia criar expectativas irreais sobre as experiências sexuais daqueles que a assistem.

Por este motivo, muitas pornógrafas produzem materiais que tentam se aproximar da realidade. A tentativa de captar o real deve ser entendida como uma das formas de se produzir pornografia feminista, mas não é a única e nem é moralmente superior as outras. Definir o que é um material artístico feminista é muito difícil porque passa por questões muito subjetivas. Desde que haja consentimento, qualquer prática sexual ou fantasia pode ser considerada feminista e pode gerar prazer para aqueles que assistem. Produzir filmes que apresentem relações consensuais é uma das maiores características das produções feministas. Apesar da tentativa de captar expressões autenticas de prazer ser um discurso que aparece com frequência, é importante pensá-lo de forma crítica. A pornografia é uma ficção e não precisa necessariamente representar a realidade, contudo, é interessante analisar este movimento como uma resposta às representações da indústria mainstream.

A ideia de realidade é crucial na pornografia porque cria um senso de autenticidade que seduz e capta a audiência, construindo a ilusão e a expectativa de que o espectador está tendo acesso a algo que faz parte do domínio da intimidade (Paasonen, 2011). Além disso, Bed Party não escolhe qualquer casal: são casais de atores pornôs, pessoas que certamente despertam curiosidade no público que quer assistir como esses performances tão experientes são em seus momentos íntimos. Os locais mundanos, corpos e vidas reais fazem parte da atração do olhar e se colocam em quadro como categoria feminista para fazer com que o público, através das autenticas expressões de prazer, tenha experiências sexuais mais positivas. Como aponta Baltar (2014), o real se torna uma promessa dos realizadores, onde é estabelecido um pacto de intimidade entre aqueles que filmam e o espectador. Tanto no documentário, quanto na pornografia, o estatuto do real e a eficácia estética são garantidos a partir do princípio de máxima visibilidade.

Segundo Williams (1999), o projeto de modernidade se relacionou com o frenesi do visível e com a construção de saberes sobre o corpo. A pornografia hardcore está intrinsicamente ligada ao desenvolvimento do prazer de olhar e ver a verdade visível sobre o sexo. Já Nichols (1997), observa que o realismo e a ciência se comportam como os portadores legítimos do olhar. Na essência dos documentários existe uma reivindicação de autenticidade que está baseada em argumento e provas de que o mundo ali é o real. Contudo, os documentários são ficções que tem uma referência na realidade, apresentam uma das verdades, no caso do pornô, uma das verdades sobre o sexo. Eles fazem referências ao mundo que o rodeia, mas são construídos como texto, o que muda é a representação da realidade.

Para Young (2013), uma forma de criar uma pornografia feminista é se aproximar da realidade e criar espaços onde os performances possam expressar seu prazer de forma autêntica. Ao invés de representar o prazer, verdadeiramente senti-los através daquilo que lhes faça bem, sempre buscando a comunicação verbal e corporal com o parceiro. A autenticidade é uma maneira de construir uma pornografia ética, onde o prazer e a expressão do eu são centrais. É uma escolha da realizadora valorizar o desejo e construir um espaço seguro para que o prazer possa surgir. Diferente das produções mainstream, onde o realismo aparece como categoria estética, a ideia é usar a autenticidade como categoria política.

Não me interessa questionar o que é efetivamente verdade ou não, mas sim, pensar como esse discurso de real é apresentado. No caso de Bed Party, a autenticidade do ato sexual feito pelos casais é o que legitima e sustenta a narrativa como a verdade sobre o sexo. O início dos filmes apresenta entrevistas nas convenções clássicas da linguagem documental, onde a diretora os questiona sobre como definem sua sexualidade e o que mais gostam em seus parceiros. Os planos dos entrevistados se mesclam com algumas imagens dos apartamentos. Estes elementos (como um porta-retratos, um gato que circula pelo ambiente, uma coleção de bonecos, uma sapateira desorganizada, a equipe de filmagens, entre outros) são pequenos detalhes que servem como elementos que constroem a realidade (Barthes, 2004). Servem para caracterizar o ambiente mundano em que os atores pornôs vivem e transam cotidianamente. Essas particularidades do cenário dão ao filme um efeito de real.

Assim como as entrevistas dos personagens, outra estratégia narrativa utilizada na série, que é clássica da linguagem documental e acabou se tornando uma marca do real, é a câmera não mão, que treme, fica fora de foco, desenquadra os personagens, filma fragmentos de corpos dos membros da equipe. O antecampo também é revelado através do som direto que capta as conversas sobre a organização do set e as intervenções da diretora na cena. Para Brazil (2013), o antecampo rompe com o regime representativo clássico, é o lugar de permeabilidade entre o real e a representação. No filme de Houston, revelar a equipe serve para satisfazer o desejo do público de ver como se filma um pornô, legitimar a obra como um trabalho ético onde temos acesso aos bastidores da filmagem, enfatizar que aquele casal de fato é real, ao mesmo tempo nos lembra que é tudo um filme, feito através de roteiro, produção e montagem.

No curta metragem com Sebastian Keys, que ganhou o prêmio de melhor orgasmo masculino no Feminist Porn Awards de 2014, o ator demora um pouco para gozar, muda de posição, parece estar um pouco nervoso ou desconcentrado. Para Comolli (2008), o documentário se faz sobre o risco do real, a realidade ameaça a cena com a sua imprevisibilidade. O autor analisa o documentário como um gênero que reconhece a falta de controle dos realizadores perante o real, destrói os conjuntos fechados da ficção.  Houston, neste momento, ciente que imprevistos como um ator pornô não conseguir ejacular podem acontecer, intervém na cena e avisa que ela já tem tudo que precisa. Para esse projeto, ele não é obrigado a ejacular.

 Essa interferência no ato sexual, que foi mantida na montagem, afirmando que em seu filme não é necessário ter um money shot, demostra preocupação com o prazer dos atores pornôs e desestabiliza as narrativas sexuais, onde a ejaculação masculina é considerada a coisa mais importante. A diretora marca que seu filme é diferente das produções mainstream. Contudo, o ator ignora a diretora, deita na cama e explica que está com o joelho doendo, continua a se masturbar e ejacula através do sexo oral de Eden Alexander. A agência do ator pornô nesta cena mostra que a diretora não tem a voz soberana no documentário, a mise-em-scène é uma relação que se faz junto da equipe e parte do desejo do sujeito filmado em ser filmado (Comolli, 2008).

Depois da ejaculação, a câmera se move e enquadra a diretora de fotografia, Shae Voyeur, que faz um sinal afirmativo com a cabeça. Então, outro plano, da perspectiva de Shae Voyeur, mostra Houston segurando a câmera e respondendo o sinal afirmativo, sinalizando que a filmagem chegou ao fim. A câmera percorre o set de filmagem, uma voz fora de quadro diz que o dia de filmagem foi ótimo. Os créditos finais aparecem enquanto todos conversam amigavelmente. Ao analisar as obras pornográficas dirigidas por mulheres negras, Miller-Young (2013) lembra que Shine Louise Houston lança seu corpo no texto fílmico de uma maneira inesperada e subversiva em seu curta Superfreak (2007), onde a diretora interpreta um fantasma que entra no corpo de uma mulher para fazer sexo com os humanos. A diretora também aparece em Camera and I (2020), que conta a história de uma câmera, dublada pela própria diretora, que transa com uma atriz pornô. Em Bed Party, a autora aparece entrevistando os atores e dialogando com a equipe, seu corpo é uma ferramenta de realismo dentro do texto fílmico.

Concluindo, Bed Party dá visibilidade aos relacionamentos monodissidentes e, utilizando uma linguagem realista, apresenta um sexo que não se costuma ver na pornografia mainstream. Ao invés de relacionar o amor a suavidade ou monotonia, os curtas-metragens apresentam práticas sexuais não convencionais que são realizadas devido à intimidade que o casal possui. É através da intimidade do romance que as cenas hardcore acontecem, o amor romântico é exaltado como espaço onde o prazer pode fluir.

Buscar a autenticidade do prazer de um casal real é a ferramenta que Shine Louise Houston utiliza para construir uma sexualidade mais positiva. Os corpos, e fascínio do olhar, fazem parte dos debates políticos contemporâneos, e isso impacta esteticamente a produção artística. Entretanto, o valor que a verdade tem em nosso imaginário não pode ser esquecido, assim como as relações entre o poder e a produção da verdade, já que os processos de visualidade se relacionam com a produção do conhecimento. O documentário foi considerado superior em termos morais, como se estivesse longe da ilusão da ficção alienadora, o que deve ser questionado (Nichols, 1997).

 Além disso, a performance Vex Ashley lembra que a ética está relacionada com aquilo que não se vê em quadro, é subjetivo, por tanto, é difícil relacionar esta característica com a fabricação de um produto[2]. Segundo Miller-Young (2013), embora o feminismo busque desmantelar a exploração estrutural e discursiva que o capitalismo produz contra as mulheres e grupos marginalizados, as atividades feministas não são externas ao sistema hegemônico de dominação, ou seja, a pornografia feminista faz parte da lógica capitalista de lucro. Teorizar sobre o tema significa pensar num sistema que opera entre a transgressão e a normatização das representações e das relações de trabalho. Por este motivo, as categorias aqui apresentadas, como ética e autenticidade, são importantes para se pensar em uma pornografia que valorize o prazer e a integridade dos performances e que construa uma representação sexual positiva para o público, mas é importante lembrar que isso também é uma ferramenta de mercado que pretende fazer os espectadores consumir um outro tipo de produto.

 

Referências

BALTAR, M. Real sex, real lives – excesso, desejo e as promessas do real”. E-compós, Brasília, v.17, n.3, set./dez. 2014.

 

BARTHES, R. O efeito de real. In: O rumor da língua. São Paulo: Cultrix, 2004.

 

BED PARTY: Eden Alexander and Sebastian Keys. Direção: Shine Louise Houston. Produtora: Pink & White Productions. Estados Unidos, 2014.

 

BED PARTY: Jack HammerXL & Nikki Darling. Direção: Shine Louise Houston. Produtora: Pink & White Productions. Estados Unidos, 2014.

 

BRASIL, A. “Formas do antecampo: performatividade no documentário brasileiro contemporâneo”. Revista Famecos. Porto Alegre, v 20, n. 3, pp. 578-602, set/dez, 2013.

 

COMOLLI, J. Ver e poder a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

 

DÍAZ-BENÍTEZ, M. Nas redes do sexo: os bastidores do pornô brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

 

MILLER-YOUNG, M. A taste for brown sugar: black woman in pornography. Durham: Duke University Press, 2014.

 

NICHOLS, B. La representación de la realidad: cuestiones y conceptos sobre el documental. Barcelona: Paidós, 1997.

 

PAASONEN, S. Carnal Resonance: affect and online pornography. Cambridge: MIT Press, 2011.

 

WILLIAMS, L. Hard Core: power, pleasure and the frenzy of the visible. California: University of California Press, 1999.

 

YOUNG, M. “Authenticity and its role within feminist pornography”. Porn Studies, 1:1-2, 186-188. 2014.

 

[1] Fonte: https://pinkwhite.biz/shine-louise-houstons-bed-party-wins-2014-feminist-porn-awards-best-boygasm/

[2] Fonte: https://afourchamberedheart.com/members/read/transparency

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