Há sensações que experimentamos e jamais esqueceremos, foi assim em 2006, quando assisti pela primeira vez ao filme O Céu de Suely, do cearense Karim Ainouz. A naturalidade com que a narrativa se desenvolve é tão grande e envolvente, que temos a nítida impressão que estamos diante de um documentário e não de um filme de ficção. A maneira como a trama é conduzida, tratada, é tão fluida que parece a água de um rio que corre para o mar, que sabe o caminho, às intempéries, e por conhecer, se entrega sem esforço, com toda a sua alma. 

         Alma que leva todo o corpo para dentro do set de filmagem, corpos que estão em plena sinergia com outros e que passeiam sendo eles próprios dentro de uma simplicidade gigante e bela, justamente por isso, por ser simples é que é se agiganta. As personagens têm o mesmo nome da vida real. A protagonista Hermila Guedes vive a personagem que se chama Hermila e assim segue em todo o núcleo. As atrizes Maria Menezes que vive a tia se chama Maria, Zezita Matos, a avó, é Zezita, Georgina Castro é Georgina, o ator João Miguel, que encarna um antigo amor, se chama João.

         Cada um deles encontra dentro de si, essa familiaridade que trazemos com nosso nome de batismo, o que vai tornando tudo ainda mais natural. O diretor não utiliza marcações de cena, o elenco não sabe onde deve ficar, é a câmera dirigida primorosamente por Walter Carvalho que segue a personagem e assim, acha seu melhor ângulo e lugar. Com toda certeza, realizar o simples não é fácil. Isso me lembra uma frase do escritor e poeta Pernambucano, Mauro Motta, quando diz que “o difícil é escrever fácil.” E como o cinema escreve com luzes, a escrita simples com certeza não é fácil também.

         Nada no filme necessita de explicação ou referências para ser compreendido, as mensagens são dadas com muita clareza. A profundidade de campo de muitas cenas alonga nossa visão. Em uma das primeiras cenas aparece um ônibus de viagem que chega espalhando poeira ao adentrar naquela estrada de terra seca, de barro batido, trazendo Hermila que será também Suely. Ela retorna de São Paulo trazendo o filho pequeno na promessa de tentar a vida em sua cidade natal e aguarda o pai da criança que não vem.

         O filme tem uma presença feminina muito forte. O núcleo central formado pelas atrizes Zezita, Maria e Hermila, não à-toa exalam sintonia, o fato é que as três moraram na mesma casa durante as sete semanas de filmagem, e se vestindo como suas personagens, estabelecendo um limiar entre a ficção e a realidade. Além delas, temos mais presenças femininas, como a amiga Georgina e a sogra, vivida pela atriz Marcélia Cartaxo. Tudo flui com uma verdade impressionante.

         E esse céu que Suely propõe? Inadaptada com sua terra natal, Hermila decide rifar o próprio corpo para sair correndo da cidadezinha do interior cearense, da Iguatu que não mais lhe abraça, onde ela não mais se encaixa. Usando o pseudônimo de Suely promete ao vencedor, uma noite no paraíso. Um paraíso que leva ao céu, mas a um céu que também será dela, sem limite e isso fica claro quando ela se dirige à rodoviária e pergunta em um guiché: “Quanto custa uma passagem para o lugar mais longe daqui?”

         Destaco uma cena, que eu chamaria de a última ceia entre as três: ela, a tia e a avó; cena de uma beleza plástica e emocional grandiosa. Há uma despedida sem que uma palavra do gênero precise ser dita, os gestos, o sorriso cheio de uma ternura saudosa, a lágrima que corre à revelia e se mistura aos lábios que sorrir de leve, o sabor da comida simples, o amor que as envolve rompe a tela, rompe o imagético. E finalmente chega a tão prometida noite no paraíso. E após essa noite, o dia, o céu azul, também de Suely, dela, somente dela, capaz de levá-la a esse lugar mais longe que há. Ela agora vai para o sul, o oposto, ela desce para subir.

         Parafraseando a canção de Milton Nascimento o mesmo ônibus que chega é também o mesmo ônibus da partida, a hora do encontro é também despedida. Na última cena, Hermila e o céu azul, seu rosto em plano detalhe reflete um semblante que parece vagar, ela e o céu, alheios ao que está em torno. O antigo namorado na moto tenta atraí-la, na esperança que ela desista da viagem. O ônibus cruza a placa que tem escrito: “Aqui começa a saudade de Iguatu.” Por alguns minutos a imagem é esta, o letreiro e o céu claro, marcando a partida, o rompimento, o corte do cordão umbilical. E ela, não cede aos apelos de João, que segue o ônibus até sumir. A câmera permanece parada na estrada, quando um vulto surge em desfoque. Era o rapaz retornando em seu cavalo mecânico, mas sem a donzela na garupa. Suely se foi, contrariando o romantismo da vida real, seguiu, tendo o céu, talvez, como seu limite. E o espectador viaja junto, e leva o filme dentro de si, e guarda, em seu céu particular.

Texto publicado na coluna O  7º Ser Tão, do setcenas

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