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Detentor de uma das piores e mais genéricas adaptações de título em muito tempo, No Ritmo do Coração, ou CODA (Child of Deaf Adults – Filho de Pais Surdos), é também uma adaptação. Inspirado no francês A Família Bélier, CODA aproveita do inesperado sucesso do filme europeu para trazer uma história “aquecedora de corações” para o inglês. Porém, ao contrário do que foi feito em outras catastróficas adaptações de sucessos estrangeiros como Amigos para Sempre (remake de Intocáveis) e Olhos da Justiça (remake de O Segredo de Seus Olhos) – CODA não se preocupa em apenas “traduzir o idioma” – mas adiciona elementos que tornam a obra um sucesso ainda maior do que o filme original.
CODA conta a história da jovem Ruby Rossi (vivida pela carismática Emilia Jones) – uma adolescente, que vivem com mais três pessoas surdas: seu pai, sua mãe e seu irmão mais velhos. Por conta disso, ela encontra desafios cada vez maiores de viver entre dois mundos: a família, que vive da pesca (uma analogia do “alto mar” para o isolamento deste grupo familiar), e a da comunidade de uma pequena cidade costeira. Afinal, por conta de seu tamanho diminuto, o local não conta com a estrutura necessária para acomodar de forma ideal pessoas com deficiências auditivas. Assim, recai a responsabilidade de Ruby de servir de tradutora da família.
E este é o cerne do problema. A jovem protagonista precisa lidar com questões mais complexas do que jovens de sua idade e classe social costumam encarar. Afinal, Ruby não é acometida somente pelas ansiedades e problemas convencionais da adolescência, mas à uma carga de responsabilidade que é ao mesmo tempo injusta e compreensível (e aqui reside a força dramática da obra). Isso porque sendo a única pessoa não surda em seu núcleo familiar, Ruby se torna essencial para os negócios e para as relações da sua família com outras pessoas – se tornando uma espécie de “interprete gratuita”.
Tudo se torna ainda mais complexo quando Ruby se envolve com a música. Ou seja, mais um mundo que foge do conhecimento de sua família. Apesar de trazer todos os clichês de superação e do “professor ranzinza que acredita nela”, a obra traz algo a mais ao estabelecer a música como um distanciamento entre Ruby e sua família, ao mesmo tempo que faz paralelo ao próprio processo do amadurecimento e de “sair do ninho”. Assim, quando a mãe de Ruby, a questiona se ela “começou a cantar apenas para irritar sua família”, compreendemos não só a dificuldade de comunicação entre “surdos e não surdos”, mas também entre mãe e filha. Aliás, é necessário fazer um pequeno parêntese em relação à direção de som do filme – que por mais que não traga a complexidade sonora de O Som do Silêncio (vencedor recente do Oscar na categoria, e que trata de um tema similar), é competente em permitir que – por alguns minutos – tentemos entender como é a perspectiva de uma pessoa com deficiência auditiva.
Falando nestas questões, importante destacar um dos grandes acertos do filme: o seu elenco. Além do carisma já comentado de Emilia Jones, há de se sublinhar também a presença da vencedora do Oscar de Melhor Atriz (por Filhos do Silêncio), Marlee Matlin – vivendo a matriarca da família Rossi, e que une simultaneamente sentimentos de compreensão e incompreensão pelas escolhas de sua filha. Outro nome que precisa ser citado é Daniel Durant, que vive irmão mais velho de Ruby, e que por debaixo da aparência superficial, esconde o conflito de querer se sentir independente de sua irmã, ao mesmo tempo que se preocupa com a emancipação da mesma. Por fim, Troy Kutsur, um dos favoritos nas principais premiações do ano, traz leveza e sensibilidade ao patriarca da família Rossi (protagonizando uma das cenas mais bonitas e fofinhas do ano). Juntos, os quatro formam o coração do filme – e ajudam a explicar o amor que as pessoas manifestam sobre a obra.
Quanto a isso, é necessário pontuar que a utilização de atores surdos para representar papéis de personagens com deficiência auditiva (algo que não foi feito no filme original), não apenas traz um caráter orgânico às cenas, mas também marca um caráter extremamente político e que parece indicar mudanças na própria indústria. Afinal, dentro dos debates modernos de representação e representatividade, pessoas com deficiências volta e meia acabam sendo negligenciadas no discurso hegemônico. Assim, chama a atenção que obras de grande sucesso dos últimos anos tenham tido a sensibilidade de trazer atores surdos ou de sua cultura (como outros CODAs) para viver esses personagens. É o caso de Paul Racci em O Som do Silêncio e de Alaqua Cox em Gavião Arqueiro (a atriz também protagonizará a sua própria série da Marvel). CODA definitivamente avança a discussão e joga ainda mais visibilidade sobre a questão e sobre a própria indústria.
CODA não é um filme que se propõe a trazer uma narrativa revolucionária – e acerta ao trazer uma história simples e eficiente, porém com personalidade o suficiente para ganhar destaque. Sua presença constante nas principais cerimônias de premiação se deve justamente a fazer bem e com o coração tudo a que se propõe. Entre épicos, biografias e dramas intimistas, a sensação é de que CODA traz algo de maior apelo popular, mas que nunca cai no banal.
Obs. A crítica sofreu duas alterações, graças as ponderações do leitor Mateus Campo. Foi nos chamado a atenção que o texto continha duas expressões defasadas “pessoas portadoras de deficiência auditiva” e “que portam deficiência”. Ambas foram substituídas por pessoas com deficiência. Afinal, o termo portador além de uma conotação negativa traz uma ideia falsa atrelada a ela – afinal, quem porta poderia deixar de portar. O autor e o OCA-UFF agradecem a correção e esperamos que ela também sirva para chamar a atenção de outros leitores quanto a importância de utilizar a terminologia correta.