Sinopse: Tentando deixar suas vidas problemáticas para trás, os irmãos gêmeos retornam à sua cidade natal para um recomeço. Porém, descobrem que um mal, ainda maior, os aguardava.
Há filmes que chegam calmos, como uma onda, e terminam como um tsunami. Pecadores (2025) é exatamente isso — e, sinceramente, eu estava com saudade de ser inundado por uma experiência tão marcante numa sala de cinema.
Gosto dos filmes de Ryan Coogler (Pantera Negra, Creed: Nascido para Lutar, Fruitvale Station), embora nunca os tenha considerado excepcionais. Ainda assim, sempre admirei suas ideias. Como em Creed: Nascido para Lutar (2015), Coogler utiliza a linguagem dos filmes oitentistas para retratar a identidade negra de Adonis. E em Pantera Negra (2018), ele emprega o afrofuturismo dentro do universo Marvel. Desse modo, é possível perceber uma característica central em suas obras: a intenção de abordar a negritude com estéticas não convencionais.
Por isso, ao ver os materiais promocionais de Pecadores, imaginei que o filme seguiria a estética do afrossurrealismo para, mais uma vez, explorar a temática identitária. Grande engano. Essa é, apenas, uma das estratégias narrativas que Coogler utiliza para contar uma história que vai além da identidade negra. Pecadores é sobre diáspora, fé, identidade e, acima de tudo, sobre a perpetuidade da cultura.
O longa se divide em dois atos bem definidos. Assim como em Um Drink no Inferno, de Robert Rodriguez, a narrativa começa de um jeito e muda radicalmente de tom na segunda metade. A trama acompanha Fuligem e Fumaça (ambos vividos por Michael B. Jordan), irmãos gêmeos que retornam à cidade natal para abrir um novo clube voltado à sua comunidade. Entretanto, no dia da inauguração, o mal bate à porta.
À primeira hora, apresenta-se como um drama com toques de filme de assalto: edição ágil, personagens arquetípicos e a clássica dinâmica de formar um grupo. Acompanhamos a cidade durante a manhã e à tarde, conhecendo os personagens que compõem essa comunidade. A direção evita o enfadonho quando imprime um ritmo calmo, porém tenso. Afinal, nos anos 30, gestos cotidianos podiam ser um ato de segregação — até mesmo atravessar a rua. Coogler representa isso com sensibilidade e mostra, inclusive, como a separação social se estende à relação com outras minorias, como indígenas e asiáticos.
Na segunda metade, o filme se transforma em um thriller sobrenatural — com pitadas de horror — e, agora, retratando a noite daquele mesmo dia. A transição é surpreendente, mas nunca abrupta — há algo de John Carpenter na construção dessa calmaria, antes da tempestade. A força maligna que surge nesse trecho não só intensifica a tensão como amplia a mensagem do filme. Naquela noite, personagens (e espectadores) enfrentam o inesperado. Eis que surgem… os vampiros.
Desde o Drácula, de Bram Stoker, nos habituamos à imagem do vampiro sedento por sangue. Afinal, “sangue é vida”, escreveu o autor. Porém, em Pecadores, os vampiros são homens brancos que atacam uma comunidade negra — num período em que a Ku Klux Klan ainda ganhava força. Esses vampiros não têm como principal motivação o sangue em si, mas o que ele carrega: conhecimento. Ao se alimentarem, eles não apenas matam — usurpam. São colonizadores em forma de monstros.
Lembra da estrutura de filme de roubo do início? Isso é crucial. Coogler inverte a lógica do gênero: os protagonistas não estão ali para roubar, mas para oferecer alegria à comunidade. O oposto dos vampiros, que surgem atraídos justamente pela riqueza cultural daquele grupo. Essa ideia atinge seu ápice em uma cena musical memorável, ambientada no clube. É um dos momentos mais belos do longa, onde passado, presente e futuro se unem em celebração.
A partir desse conflito, o filme — que antes era contido — explode. Coogler deixa claro: a cultura é viva e persistente, mesmo quando tentam silenciá-la. Não basta roubá-la — é preciso deturpá-la para dominá-la. E Pecadores denuncia isso com criatividade e visceralidade ímpar.
O antigo e o novo convivem em todo o filme, tanto no conteúdo quanto na forma. A trilha sonora de Ludwig Göransson, por exemplo, mistura tambores africanos com sintetizadores modernos. Até mesmo os irmãos protagonistas refletem esse contraste — enquanto um é mais ligado às raízes originárias, o outro é mais seduzido pela modernidade.
Contudo, em meio a tantos acertos, fico intrigado com o clímax desse filme. A direção, na grande sequência final, me deixa em conflito. Embora eu aprecie seu ritmo, a geografia da cena me soou confusa – principalmente em quantas pessoas estavam naquela cena e como aquele confronto se desenrolava. E por alguns momentos, os alívios cômicos – principalmente as piadotas do Delroy Lindo – tiravam um pouco da urgência do que estava acontecendo.
Pecadores se ambienta num tempo entre tempos: entre o velho faroeste e a iminente Segunda Guerra. Ao retratar a vida, inicialmente, pacata daquela comunidade e do filme que mostra o quão cruel é ter, até mesmo, esses pequenos momentos de paz, roubados. Quem são os verdadeiros pecadores? Os “puritanos” que caçam e drenam a identidade do outro? Ou aquela comunidade que, apesar de seus “pecados”, — frutos de uma realidade imposta — só queria dançar, viver e celebrar?
Pecadores é um olhar visceral sobre o hibridismo cultural. E nos lembra que, não importa quanto tempo passe, sempre haverá vampiros prontos para deturpar o que não conseguem compreender.