Crítica escrita por Edeizi Monteiro Metello.
Sinopse: Em 1928, nos vibrantes “anos loucos” de Paris, a coreógrafa Ida Rubinstein encomenda a Maurice Ravel a música para seu próximo balé. Enfrentando uma crise de inspiração, o compositor revisita os capítulos de sua vida – os desafios de seus primeiros anos, as marcas da Grande Guerra, o amor impossível por sua musa Misia Sert… e finalmente decide se dedicar à criação de uma obra-prima universal, o Bolero.
“A cada 15 minutos, alguém no mundo está tocando o Bolero de Ravel.”
Essas são as palavras que encerram a obra, baseada na biografia do compositor francês Maurice Ravel, Bolero: a melodia eterna (2024, Anne Fontaine), a qual desenha o processo de criação do compositor em sua música que dá nome ao filme.
Também, para encerrar de maneira grandiosa um longa-metragem que ilustra o surgimento de uma obra-prima, o filme tem o cuidado de começar, não apenas pela história, mas mostrando as diferentes versões de Bolero em outros ritmos, línguas e performances, mostrando que o legado do compositor ultrapassou os limites de sua própria vida e tempo.
Em filmes biográficos, ao se observar com atenção, é possível perceber que o “real” de “baseado em…” não existe. Qualquer que seja o personagem escolhido, histórico ou não, há escolhas a serem feitas em relação à montagem, à composição, à música, ao diálogo, e muitos outros elementos, para que tudo caiba em algumas horas de filme. Esse processo de recorte já molda a vida do personagem biográfico e deixa de lado aquilo que poderia ser remotamente chamado de real, restando apenas um simulacro. E este filme não deixa de admitir isto, tanto em sua forma, como nos créditos, chamando a obra de “livre adaptação”. Portanto, o filme pode ser assistido como aquilo que é, uma experimentação em cima de cenários e pessoas que existiram, mas não deixa de ser menos fascinante por conta desse reconhecimento.
Ao recortar e construir a montagem, o filme usa do recurso de flashbacks, os quais ilustram acontecimentos marcantes que, na narrativa, levaram o compositor a criar sua obra para Ida (Jeanne Balibar), sua exigente cliente. O flashback aparece sempre através de um objeto, que indica seu começo. Como as luvas vermelhas de Misia (Doria Tillier), as quais aparecem em um momento de Ravel (Raphaël Personnaz) com uma prostituta, e retomam quando Ravel estava com Misia no táxi e havia a presenteado aquelas mesmas luvas.
A ida e volta na montagem também lembra a própria melodia repetitiva da canção Bolero. A montagem pode ser também ilustrativa de como a memória do protagonista funciona.
Também há uma espécie de flashback dentro do flashback, se é que o que ocorre dentro do plano pode ser chamado disso. Em determinado momento, em um flashback no qual relembra a morte de sua mãe, Ravel olha para o quarto no qual a viu pela última vez, e dentro dele, está ele mesmo criança e sua mãe mais jovem, um de frente para o outro e conversando. O Ravel mais velho e do presente – no presente do flashback, e não o presente do tempo narrativo – observa de fora, e responde à mãe que faz perguntas relacionadas a estudos que ele provavelmente fazia na época. Sua voz de criança é sobreposta por sua voz de adulto, mas tudo ainda ocorre dentro do quarto, do recorte delimitado pela porta.
O filme é contemplativo e silencioso por vezes, como no teste que Ravel participou e na espera do resultado que veio em seguida, com diálogos pontuais, mas significativos, como quando Ravel conversa com Ida ou Misia, o que traz uma tranquila ambientação. Há falas cínicas e rápidas que são engraçadas de acompanhar, principalmente pelo humor e flerte de personagens como Misia. Em outros momentos, o silêncio dos personagens é preenchido por uma música, o que não deixa de elevar a cena e trazer mais peso ao que está acontecendo, como quando Ravel está começando a demonstrar ter problemas de memória.
O protagonista é muito marcante principalmente por conta da performance do ator. Raphaël Personnaz é capaz de entregar um Ravel quieto, calmo, contido, mas também explosivo e reativo, trazendo interessantes facetas ao compositor.
Visualmente, há um controle absoluto das composições no quadro, que usam muito da regra dos terços, o que traz uma beleza equilibrada para os planos. Ainda na composição, há vários momentos que o protagonista se sente encurralado, e isso é bem representado nos planos em que ele se encontra em sua própria casa, emoldurado por batentes de portas, afastado da câmera, parecendo ser menor.
Também há um controle ideal na iluminação. As cenas são bem iluminadas o tempo todo, sendo nítidas de dia, como quando Ravel e Misia estão compartilhando um momento na varanda. Na escuridão da noite há tons de azul, como quando Ravel está sozinho em mais uma noite de insatisfação com sua própria composição, não deixando espectadores abandonados no escuro.
Há um intenso uso de cores, como as cores amarelo e azul. O amarelo também pode ser visto como dourado, e esse dourado pode representar o Sol, o calor do ritmo da música, que também foi indicado pelo compositor em uma de suas falas. Esse mesmo amarelo está presente quando Ravel está inspirado, escrevendo ou pensando, em objetos pontuais, como um abajur, ou no cenário, como na parede, e desaparece ou fica pouco presente, dando lugar para o azul quando ele está triste, isolado, como na guerra, ou doente. Na lembrança de infância com sua mãe, o amarelo está muito presente, nas roupas e na luz que entra pela janela; um contraste em relação ao luto vivido pelo personagem, o qual está bem presente e observando a própria lembrança. A cena transmite uma forte sensação de ternura.
Outra cor muito marcante é a vermelha, a qual representa paixão e sedução, quando Ravel fala com Misia, sua eterna musa, e nas paredes do bordel que ele visita.
Há um momento que o filme muda completamente para preto e branco, quando o compositor é encaminhado para o hospital. O filme, em seu estilo de deixar que o silêncio fale mais, mostra através desse contraste com o resto da linguagem utilizada até então, que é o momento do artista se despedir. No entanto, sombras com contornos irregulares dançam no meio da luz, depois se revelando serem as mulheres que marcaram a vida de Ravel, como a mãe dele, Ida, Marguerite (Emmanuelle Devos) e Misia. É um momento muito delicado, mas, ao mesmo tempo, honroso. Ravel tocou e foi tocado por aquelas pessoas inevitavelmente.
Os momentos finais do filme retomam o Bolero, tocando lentamente, encaminhando Ravel para o eterno sono, mas elevando aquilo que ficou. Ele reaparece conduzindo uma orquestra que toca sua música, mas seu gestual é diferente, mais expansivo e energético. Também há mudança de figurino e maquiagem, é um momento que transpõe a ficção e traz a sensação de que o próprio ator que está ali conduzindo a música. Da mesma forma, há uma diferença na iluminação, cores e figurino para todos os outros personagens; é o tempo presente, e isso cria um certo realismo. Contudo, esse local é imaginário, pois há muito espaço em branco em torno dos artistas. Um bailarino acompanha a música com passos de balé e muitas acrobacias. Não se trata mais da narrativa. O ator olha para a câmera; não se trata mais do personagem. Tudo retorna à música. A melodia que sempre toca, a cada 15 minutos, em algum lugar no mundo.