Sinopse

O documentário retrata a vida de um grupo de mulheres que vivem nos subúrbios do Rio de Janeiro, estão perto dos 60 anos e guardam um passado comum: são a base da primeira Seleção Feminina de Futebol do Brasil. Quando elas começaram a jogar, o esporte era proibido para mulheres.

 

Documentários são, por definição, fragmentos da realidade colocada sob a lente de uma câmera. Diferente de obras totalmente ficcionais, em que o produto final pertence aos domínios imagináveis do criador, é, de certa forma, fácil fazer um documentário. Filmar o que já existe não é um processo tão complexo, mas é preciso muita sensibilidade para fazer um bom documentário. Um bom documentário versa sobre fatos identificáveis na linha do tempo histórico de maneira a exprimir e transmitir a essência daquilo que se quer filmar. Assim se faz cinema, também.

A realidade, como comentei, pode ser antitética. Futebol e mulher, por exemplo, não são lá “coisas que se bicam”. Essa afirmação, claro, é resultado de uma construção social imagética sobre um gênero – mulheres – que tem seus direitos e deveres ditados pelo gênero oposto: homens. E não, não é trabalho obrigatório de um documentário ser uma ferramenta de transformação social, mas uma obra que assume esse papel de “tocha” – um guia pela escuridão do preconceito até um caminho melhor e, quem sabe, livre de violências e discriminações –, é especial, sim.

Quantos dos que estão lendo esta crítica neste momento sabiam sobre as mulheres formadoras da base da primeira seleção feminina de futebol do Brasil, quando este esporte ainda era proibido para mulheres? Eu mesmo, que vos escrevo, não fazia ideia da história de nenhuma delas. Para isso que diretoras como Adriana Yañez, que aqui encabeça a direção e roteiro, existem. O cinema pode e deve ser usado para explorar tudo aquilo que, por um ou outro motivo, continua às sombras da consciência coletiva da sociedade.

“As Primeiras (2025) é uma história sobre a amizade feminina, sobre memória e sobre a capacidade dessas mulheres de reconstruir suas vidas apesar das injustiças que sofreram”, resume a diretora. “É também um resgate histórico que reconhece a importância que elas têm para o futebol feminino, buscando a reparação de um apagamento de quatro décadas”, complementa.

Como eu dizia, os documentários, por terem compromisso com a realidade, provocam sensações que não necessariamente são diferentes das sentidas ao assistir uma obra ficcional, mas o peso palpável da verdade – que aqui é como um tapa na cara – tem sim um gosto diferente e, na maioria das vezes, bem amargo. 

Quando a gente assiste a um filme de fantasia ou de terror, tentamos, por vezes, encontrar o significado nas entrelinhas daquela obra: “o que diretor X quis dizer com tal trama?”. Nesses, fica a dúvida. O mistério. Qual seria então a verdadeira intenção do diretor? Em “As Primeiras”, isso obviamente não é expressamente dito, mas a revolta tomou conta de mim de maneira tão abrupta como uma bola voando em direção ao gol. “Como é possível que as mulheres que formaram a primeira seleção feminina de futebol do Brasil estejam tão à margem?” era a pergunta que ressoava em minha cabeça ao longo do filme. Entre as entrevistas e os registros do cotidiano dessas mulheres, recortes de um passado agora distante, e até então esquecido no tempo, são expostos ao espectador. “Se a gente não guarda isso aqui, ninguém ia saber que a gente tinha essa história, né? Porque só contar não prova!”, diz Fanta. 

Mais do que “o ver”, é importante “o ouvir”, aqui. Existe um longo e cansativo debate, que insiste em perdurar, acerca do “lugar de fala”: quem dita quem deve ou não falar sobre determinado assunto? Essa discussão custa ser debatida por pessoas que não entendem que existem situações que apenas aqueles que sentem na pele podem falar. E é aí que este “ouvir” se faz tão importante. É necessário ouvir o que as ditas “Primeiras” querem falar. 

Acaba não sendo tanta surpresa a maior parte das queixas dessas craques serem consequências diretas de uma sociedade patriarcal, estruturada para que um gênero específico não fale sobre ou, “Deus me livre”, jogue futebol. Marilza, Elane, Leda e companhia mostram que, apesar de todas as proibições e censuras, elas vão sim “jogar”. Narrar o cotidiano dessas mulheres, principalmente daquelas que ainda respiram o esporte, é importante para não só credibilizá-las em suas individualidades, mas também para questionar um padrão social que evidentemente perdura.

É interessante o relato como o de Marisa, relembrando que as jogadoras, jogando pela seleção, começaram a se articular a favor de seus direitos, realizando reuniões paralelas e debatendo melhores condições. A resposta veio rápido – como em todo lugar onde a lógica capitalista predomina –, é claro: pararam de ser convocadas para a seleção, perdendo espaço, notoriedade e consequentemente retorno na carreira. Para elas, lutar pelos seus direitos significava deixar de viver da paixão, o futebol. “Eu paro aqui”, relembra Marilza, respondendo para os superiores.

Se a vida delas e o que representam fosse um jogo de futebol, fica claro que elas golearam o adversário e passaram para a próxima fase da competição, abrindo a porta para mais 90’ minutos de uma geração nova, florescendo agora com mais incentivo e políticas que promovam a igualdade no esporte.

“As Primeiras” é produzido pela Olé Produções e traz depoimentos de Elane dos Santos Rego, Leda Maria Cozer Abreu, Maria Lucia da Silva Lima (Fia), Marilza Martins da Silva (Pelé), Marisa Pires Nogueira, Roseli De Belo, Rosilane Camargo Motta (Fanta).

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