Crítica escrita por Sophia de Lacerda.
Sinopse: Jazz e descolonização estão entrelaçados nesta montanha-russa histórica, que reescreve o episódio da Guerra Fria que levou os músicos Abbey Lincoln e Max Roach a invadirem o Conselho de Segurança da ONU em protesto contra o assassinato de Patrice Lumumba — político que liderou a independência da República Democrática do Congo.
Indicado ao Oscar 2025 de Melhor Documentário, Trilha Sonora Para Um Golpe De Estado traz uma junção de jazz, Guerra Fria, colonialismo e a independência da República Democrática do Congo no formato de um documentário musical inventivo, que é um prato cheio para os entusiastas de história e música. O longa tem início a partir da invasão do Conselho de Segurança da ONU em 1961, um protesto dos músicos Abbey Lincoln e Max Roach que denunciava o assassinato do líder congolês Patrice Lumumba, além do uso de artistas negros de jazz como bodes expiatórios para a atuação CIA nos países africanos e asiáticos.
A partir desse acontecimento, o filme cria uma verdadeira teia de aranha com os eventos sombrios do século XX. Isso porque, o diretor Johan Grimonprez, recusa a linearidade e a linguagem mais tradicional do documentário. Ele opta pela mistura frenética de imagens de arquivo, performances de jazz e gráficos animados, trazendo um ritmo musical acelerado e um tom de urgência na história que é contada. Devo admitir que, inicialmente, o ritmo pode ser acelerado até demais para quem não está completamente familiarizado com esse contexto histórico. Por vezes, os links feitos entre um acontecimento e outro não ficam tão claros, mas de fato, o ponto central do documentário é a figura política de Patrice Lumumba – Primeiro-Ministro do Congo – símbolo de resistência anticolonialista e a “pedra no sapato” dos colonialistas belgas.
Apesar de uma figura central bem definida, Trilha Sonora trabalha com a descontinuidade na análise, situando-se temporalmente entre 1955 e 1965, mas não cronologicamente. Dentro dessa delimitação tremporal, vemos músicos negros de Jazz sendo enviados para a África e Ásia como espécies de “embaixadores americanos”. Louis Armstrong fez turnê no Congo e foi usado como Cavalo de Tróia em Katanga. Convencido de que foi usado como cortina de fumaça, Armstrong ameaçou renunciar sua cidadania americana e se mudar para Gana. Nina Simone também foi enviada para a África, sem saber que se tratava de um front da CIA. Vamos das provocações anticapitalistas do Primeiro-Ministro Russo Nikita Khrushchev até Malcom X e o movimento de Direitos Civis estadunidense. Assistimos o papel da CIA e da ONU no assassinato de Lumumba e a ascensão do movimento anti-imperialista africano. É um filme difícil de digerir. Talvez fosse mais difícil se Grimonprez tivesse proposto um documentário meramente informativo e factual sobre esses acontecimentos históricos.
É a música que amarra tudo e guia o espectador – talvez o título “Trilha Sonora” entregue esse papel crucial. Trilha Sonora Para Um Golpe De Estado é um filme pulsante, que tem seu ritmo ditado pelo jazz, utilizando na montagem a justaposição de música e imagem para criar significado. É claro que o simples uso do som para evocar as mais diversas emoções no espectador é um papel comum de quase toda trilha sonora no cinema. Entretanto, aqui, o jazz é um agente político que atua ativamente nesses eventos históricos. A quantidade de alternâncias entre performances musicais e outras imagens de vídeos caseiros, cinejornais, textos acadêmicos e principalmente, os discursos de Patrice Lumumba, é totalmente desconcertante. O jazz é uma arma política e ao mesmo tempo é inovação rítmica e narrativa.
A relevância de Trilha Sonora Para Um Golpe De Estado é inegável. O filme também mostra como as dinâmicas coloniais são mantidas até hoje no Congo, que ainda é alvo de exploração. Grimonprez propõe uma reflexão complexa e densa sobre anti-imperialismo, anticolonialismo e música como ferramenta de poder. É uma ode aqueles que ativamente lutaram e ainda lutam por liberdade.