Crítica escrita por Davi Sant’Anna.
Sinopse: Nas margens da Baía de Guanabara, uma comunidade de jovens resgata e vivencia a cultura dos bailes. Um retrato dos dramas, das performances de voguing e da arte do shade, 50 anos depois do seu início em Nova York.
DANÇAR PARA EXISTIR
Em um salão de baile de vogue, ou você dança, ou você dança. Salão de Baile (2024) não é apenas um documentário; é um corpo em movimento, um suspiro profundo de uma comunidade que dança para existir. Dentro de seus quadros pulsa um universo onde cada pose é uma declaração, cada passo uma luta, e cada salão, uma catedral onde os marginalizados se tornam divinos.
No Rio de Janeiro, onde a beleza e a desigualdade coexistem em suas formas mais brutais, os salões de baile não são apenas lugares de dança, mas refúgios. São redomas de brilho em meio ao concreto áspero, onde aqueles que carregam a violência do mundo em suas peles transformam dor em arte. O filme captura essa metamorfose com um olhar íntimo, quase cúmplice, celebrando os que desafiam o que lhes foi imposto para criar algo inteiramente seu.
Aqui, as diretoras Vitã e Juru não se limitam a apresentar o vogue apenas como uma dança; elas investigam a profundidade de sua cultura. Através de entrevistas, cenas de competições eletrizantes e momentos íntimos de bastidores, o documentário captura o espírito de uma comunidade que encontra no salão de baile um refúgio e uma forma de enfrentamento das opressões diárias. O resultado é uma celebração do talento e da criatividade de pessoas LGBTQIA+, especialmente da comunidade negra e periférica, que transformam suas vivências em arte e revolução.
O vogue carioca, aqui, ganha uma personalidade própria. Adaptado às particularidades culturais, sociais e urbanas do Brasil, ele carrega tanto a energia dos movimentos clássicos da ballroom culture de Nova York quanto a mistura vibrante do samba, funk e ritmos locais. Essa fusão é retratada com um olhar caloroso e comprometido, que convida o público a entrar nesse mundo sem exotizá-lo.
Os salões de baile são vivos — não apenas com a energia dos performers, mas com as histórias que eles carregam. As house mothers, verdadeiras matriarcas de resistência, são pilares emocionais e criativos, cuidando de suas “famílias” escolhidas. Ali, sob as luzes coloridas e a batida constante, nascem novas narrativas de pertencimento, amor e sobrevivência. O filme escuta essas histórias com uma ternura rara, permitindo que cada voz floresça e tenha espaço.
A câmera dança com eles. Ela não observa de fora; mergulha. Captura os olhares desafiadores, os saltos precisos, os corpos que se dobram e se moldam em figuras impossíveis, como se desafiando as leis da gravidade e do preconceito. No salão, não há limites — nem físicos, nem emocionais. Apenas liberdade.
A BELEZA DA LIBERDADE
Salão de Baile brilha na forma como traduz visualmente o magnetismo da cena vogue. A cinematografia, com uma paleta de cores neon que evoca a exuberância dos salões, e a câmera dinâmica, que dança junto com os performers, colocam o espectador no centro das batalhas e dos desfiles. Há um cuidado especial em capturar detalhes: a textura dos figurinos, os olhares desafiadores dos competidores e o suor que escorre após apresentações intensas. Esses momentos transportam o público para dentro do salão, como se estivéssemos ali, torcendo junto com a plateia.
A edição, por sua vez, flui como uma coreografia. Os cortes rápidos são como os chops, um movimento ágil com as mãos explicado no filme como uma ação em que os jurados “cortam” o candidato da competição. Alternando entre cenas de pura energia — onde vemos passos rápidos e poses icônicas — e depoimentos mais lentos e introspectivos, o filme equilibra emoção e ação, sem perder de vista a força narrativa dos personagens.
O RITMO DE QUEM RESISTE
Acredito ser importante dar destaque para o coração do documentário, que está em suas personagens: mães de casas, performers e participantes que revelam suas histórias de vida. Através deles, o filme aborda temas como racismo, transfobia, pobreza, a luta por aceitação e o papel vital que o ballroom desempenha em suas jornadas. Esses relatos são apresentados com honestidade e humanidade, permitindo que o público se conecte profundamente com os desafios e triunfos dessas pessoas.
Um destaque especial é a forma como o documentário dá voz às house mothers (mães das casas), líderes que oferecem suporte emocional, financeiro e social a seus membros, funcionando como pilares dessa cena. Elas são retratadas como figuras carismáticas e fundamentais, que equilibram o glamour do salão com a dureza de suas realidades fora dele.
Talvez a única falha do filme esteja em sua abordagem fragmentada em alguns momentos. Ao focar em diversas histórias e temas, ele por vezes dilui a força narrativa de algumas personagens, deixando questões levantadas sem um aprofundamento maior. Ainda assim, isso não tira o impacto emocional e social da obra.
BRILHO E REBELDIA
Além da beleza estética, Salão de Baile também é um documentário político. Ao situar a cena vogue em um Brasil marcado pela desigualdade, pela violência contra a população LGBTQIA+ e pela exclusão social, ele expõe as camadas de resistência que permeiam essa cultura. Cada desfile é, ao mesmo tempo, uma afirmação de identidade e um protesto. O documentário mostra como o salão de baile não é apenas um espaço de performance, mas também um lugar de acolhimento, autoconhecimento e luta.
Um ponto alto do filme é sua capacidade de provocar reflexões sobre pertencimento e sobrevivência. Ele expõe como a cena vogue carioca é um microcosmo que reflete e desafia as estruturas sociais do país. Ao mesmo tempo em que celebra o empoderamento e a criação de um espaço seguro, o documentário também questiona: o que acontece quando a pista de dança acaba? Como essa comunidade sobrevive em um mundo hostil fora do salão?
Vitã e Juru não se contentam em apenas deslizar pela superfície. Elas nos lembram que o glamour tem um preço. Fora das luzes e da música, há ruas duras, olhares hostis e sistemas que insistem em excluir. Contudo, o salão resiste, transformando tudo isso em sua força. Como se cada derrota no mundo de fora fosse convertida em uma vitória na pista.
CONCLUSÃO
Mais do que um registro da cena vogue carioca, é um manifesto sobre resistência, identidade e a busca incessante por um lugar no mundo. Um espetáculo para os olhos, uma lição para a alma, uma celebração do que significa viver intensamente, mesmo sob opressão. Há uma poesia crua em cada frame, em cada salto e em cada lágrima. Como se dissesse: “Aqui, nós existimos. Aqui, nós reinamos. Aqui, somos tudo o que o mundo não nos deixa ser.”
Ao final, Salão de Baile não é apenas para ser assistido, mas sentido. É sobre dançar mesmo quando o mundo parece imóvel, sobre encontrar família onde antes havia solidão, e sobre transformar a vida, por mais dura que seja, em algo que brilha. É resistência. É arte. É vida.