Sinopse: Uma exploração lírica que abrange décadas na vida de uma mulher no Mississippi.
Caro leitor, dependendo da atenção que você depositar no texto, toda crítica pode conter spoilers!
PRECISAMOS FALAR SOBRE RAVEN JACKSON
A ideia aqui é menos exaltar o mito do autor genial e mais trabalhar a visão de um eu lírico potente e fundamental para a obra. A jovem artista do Tennessee é conhecida por sua poesia e fotografia, mas em ALL DIRT ROADS TASTE OF SALT (2023) estreia sua carreira como cineasta. O longa-metragem é uma poesia fílmica, não necessariamente autobiográfica, mas que reflete as origens familiares de Jackson e sua vivência como uma mulher negra. O filme parte de Raven Jackson não para reforçar uma individualidade, e sim ressoar a coletividade que dela emana.
GOSTO DE SAL
Segundo a própria autora, o título do longa-metragem faz referência a uma conversa que ela teve com sua avó sobre a geofagia – prática de comer argila ou terra com o intuito de melhorar a nutrição, relativamente comum em áreas rurais do sul dos Estados Unidos. Claramente o título ganha outros significados e camadas poéticas durante o filme, mas mantém sua força política. A simbologia de uma mulher que escolhe seus próprios caminhos, e descobre-se à sombra das figuras de sua mãe e irmã.
O roteiro, também assinado por Jackson, é uma emaranhada rede de linhas temporais, que constrói o passado e o presente de Mack e sua irmã Josie. A narrativa apresenta muitas vezes as consequências antes das causas, os traumas antes das tragédias, e não se apressa em construir as relações entre os personagens. Os diálogos são substituídos pelo silêncio e pelo tato. Aliás, esse é um filme especialmente sensorial.
Os planos fechados de Jackson e seu diretor de fotografia Jomo Fray privilegiam as texturas das peles, da argila, das escamas dos peixes, das gotas de água que escorrem. A protagonista Mack é quase sempre filmada de costas, como se o mundo visto por ela fosse mais importante do que a representação do mundo em si. O filme jamais adota uma posição genérica, tudo o que se vê em tela é carregado de uma herança cultural e geracional latente.
O filme constrói planos icônicos. A cena em que as irmãs observam, do outro lado da calçada, a casa de sua infância pegar fogo é belíssima e me transporta ao ESPELHO (1975) de Tarkovski. Há muito no filme que remete ao realizador soviético – uma espécie de tempo que transcorre dentro dos planos. Uma construção de imagem que revela o passado e se recusa a decepá-lo na ilha de edição. Uma câmera que flutua fantasmagoricamente, sem se fazer percebida.
Mas talvez a cena que por mais tempo permaneça com os espectadores seja aquela em que Mack e Wood se reencontram em um caloroso abraço. Há quase nada dito em palavras. A escolha por um plano fechado, que recorta o corpo dos dois sem nos deixar discernir quem é quem, é belíssima.
ENTRE IRMÃS
Há algo entre irmãos que é difícil de descrever sem recorrer a clichês como “cumplicidade”. A verdade é que é mais do que isso. Há um partilhar espiritual de jornadas, vidas que teimam em se entrelaçar – um viver juntos, mesmo que separado. A estreante Charleen McClure e Moses Ingram interpretam lindamente a relação entre Mack e Josie. Em nenhum momento a trajetória das duas desenrola-se em direção ao piegas e emocionalmente barato. Existem ali duas mulheres negras, maduras, que partilham uma dor e que fariam tudo uma pela outra.
É impossível não se apaixonar por essa história. Raven Jackson estreia de maneira brilhante.
Dedico esse texto à minha irmã, a quem devo os melhores momentos de minha infância!
