Crítica escrita por Davi Sant’Anna.
Sinopse: Um conflito entre César, um artista genial que busca saltar para um futuro utópico e idealista, e seu opositor, o prefeito Franklyn Cicero, que permanece comprometido com um status quo regressivo, perpetuando a ganância.
MEGALÓPOLIS: UMA FÁBULA DE EGOMANIA
IMPÉRIOS, UTOPIAS E AMBIÇÕES
Há um tempo penso que nós, espectadores e amantes da sétima arte, quando vamos ao cinema, sempre estamos intrinsecamente selando um pacto com duas outras vidas: a do diretor, que molda o filme segundo sua visão singular e busca expressá-la da maneira mais fiel na construção de sua obra; e a do próprio filme, que, numa análise personificada, ganha vida. Entramos na sessão inocentes e desconhecidos do que vem a seguir, e o filme, como uma máquina, vê o receptáculo que somos e tenta nos persuadir, num jogo de cintura que só consegue ser apreciado se você se deixar levar pelo que a obra é em si mesma.
Imagine o aroma de asfalto quente, misturado ao perfume das flores que brotam em pequenos espaços entre os prédios. A luz do sol se infiltra entre arranha-céus, criando sombras que dançam nas calçadas, enquanto o caos da metrópole ressoa com risos, gritos e o murmúrio constante de uma vida que nunca dorme. Em Megalópolis (2024), cada personagem que encontramos é um fragmento dessa vasta colcha de retalhos, trazendo consigo sonhos e desilusões que se entrelaçam como fios de uma história maior, uma miscelânea opulenta tecida por longos 42 anos por Francis Coppola até chegar na sala de cinema.
A ODISSEIA FÁUSTICA DE COPPOLA
Poderíamos entender Megalópolis como o canto do cisne vindo de um artista genial? Coppola faz o filme parecer uma coletânea complexa de toda uma vida de um cineasta inesgotável, que busca por mais. Ele dispensa apresentações, claro. O diretor possui uma potência criativa cultuada por cinéfilos ao redor de todo o mundo, e produzir uma obra desse tamanho exige certa extraordinariedade que Coppola tem de sobra.
É interessante traçar comparações com outros personagens de artes completamente diferentes. O Fausto, livro de Goethe, levou 50 anos para ser concluído. Já Megalópolis demorou 42 até ser tirado do papel pelo próprio diretor, cansado de esperar pela boa vontade (mas, principalmente, coragem) de alguma produtora. Assim como Shakespeare tem Hamlet como sua efígie pensadora, atormentada pelo Tempo — aqui, em letra maiúscula, ganhando papel de sujeito —, e Goethe tem Fausto, um personagem épico, figura adepta da ciência, alquimia e magia, desiludido com seu tempo e encantado pela técnica e pelo progresso, almejando o encontro final com a beleza, Coppola cria César Catilina, um gênio engenheiro cheio de ideias e de coração aberto na tentativa de transformação da Nova Roma em um lugar melhor.
Desbravador, audacioso e fissurado pela modernidade e pela busca da imortalidade, ele cria uma substância aparentemente indestrutível e difícil de explicar – o megalon. O personagem quer deixar para o mundo um legado de uma obra imortal, que continue mudando, transformando e melhorando. Tal qual Hamlet, é niilista, não aceita pressupostos e está em conflito com seu tempo, com sua mãe e seu tio Claudio.
Megalópolis é uma obra de arte quase barroca, com uso excessivo de efeitos plásticos, empolados, com imagens, cores, sons, palavras, etc. Ele não faz questão de poupar as infinitas possibilidades que a linguagem audiovisual pode fornecer — filmes, animações, pinturas —, um verdadeiro caldeirão de efeitos e ritmos, produzindo tanto beleza quanto caos numa onipotência ilusória que só o cinema proporciona, cinema este que é constantemente referenciado, como por exemplo a torre gigante que remete à Metropolis (1927), de Fritz Lang.
PÃO, CIRCO & DELÍRIOS DE GRANDEZA
Em Megalópolis, o diretor se propõe a explorar as complexidades da vida urbana, questionando os limites da civilização e a luta pelo poder e identidade de uma metrópole em constante transformação; é ode à complexidade da vida na cidade, um mural vibrante onde cada esquina sussurra histórias de ambição, desilusão e desejo. Ele provoca, claro, um debate interessante, especialmente em um mundo onde as grandes cidades enfrentam desafios como a desigualdade social, a degradação ambiental e a alienação.
Ele fez questão de falar, refalar, e então falar de novo que Megalópolis é fruto de tudo aquilo que lhe agrada no audiovisual. E claro, Coppola não foi o primeiro, e está longe de ser o último, cineasta a referenciar várias obras num mesmo filme, mas a sensação que fica é que, às vezes, parece que essa amálgama cinematográfica perde equilíbrio em sua própria megalomania anunciada. O excesso de simbolismo e a busca por uma profundidade estética me fez sentir, em alguns momentos, uma experiência visual quase opressiva, o que pode dificultar a conexão emocional com os personagens e a trama.
Mesmo antes de ser lançado, Megalópolis tem sido alvo de controvérsias; desde polêmicas dentro do set (algumas, no mínimo, preocupantes), até nas críticas: o filme possui uma média de 46% no site Rotten Tomatoes, avaliação de aprovação calculada de acordo com a opinião de 279 críticos, estabelecendo-se como um dos filmes mais mal-avaliados de sua filmografia como diretor.
Trago aqui um panorama do cenário das críticas do filme não para decretar que o barco de Coppola está afundando, muito pelo contrário: alguns críticos podem apontar que a abordagem do diretor tende a ser excessivamente grandiosa e filosófica, o que pode afastar o público em busca de uma narrativa mais acessível. De fato, o filme parece que tenta ser profundo a todo momento, mesmo quando a potência exigida pela cena no texto não chega ao seu objetivo — o que, nesse caso específico, não significa um ponto negativo necessariamente —. Se vai afastar o grande público ou não é uma questão que definitivamente não cabe à Coppola, que já estava ciente disso.
Ele sempre soube que executar esse projeto exigiria um pulo no escuro: “Quando saltamos para o desconhecido, provamos que somos livres” é uma das inúmeras citações que flutuam em Megalópolis. “Sou eu fazendo este filme”, diz Coppola, em Cannes um dia após a estreia no festival francês. “Para todos os figurões do estúdio, eu provei que sou livre e eles não. Porque eles não ousam saltar para o desconhecido. E eu faço. Essa é a única maneira de provar que você é livre.”
MEGALON-HOMO-SAPIENS
Quando a sessão acabou, muita coisa passava pela minha cabeça a respeito do filme. Gostei ou não gostei? Genial ou completa porcaria? Mas o que prevalece é um pensamento muito mais importante que a dicotomia do gostar/desgostar, que é: a sociedade em que vivemos é a única disponível? Apesar de sentir que essa crítica se perde em meio ao complexo de superioridade do filme sobre o rumo de uma sociedade em ruínas, acredito que esse era o sonho do Coppola para sua opus.
Fica claro, assim, que a cidade de Megalópolis não é apenas um cenário; é um personagem em si, um organismo pulsante que abraça e rejeita, que acolhe e afasta. É um espaço onde a beleza e a decadência coexistem e as fronteiras do ser e do ter se confundem, onde os sonhos se constroem e se destroem em um ciclo interminável. E, enquanto a trama se desenrola, somos convidados a refletir sobre nosso próprio lugar nesse labirinto de concreto e aço.
A ousadia incontestável do cineasta em realizar a obra de sua vida de forma independente, financiada em parte com seu próprio patrimônio, faz de César uma espécie de alter-ego, a quem ele, esperançoso não só em relação a seu personagem, mas também à humanidade, dá um desfecho redentor. Tal qual Fausto, que, ao morrer, vence Mefistófeles e é levado por um coro de anjos para junto à divindade, Catilina conquista seu objetivo e dá à uma metrópole decadente um presente imaterial que é mais poderoso que todo o dinheiro do mundo: a possibilidade de sonhar com um futuro melhor.