Crítica escrita por Ernesto Loaiza para a cobertura do 26º Festival do Rio.
Sinopse: Na pequena cidade de Abalurdes, Edgar Wilson trabalha como recolhedor de animais mortos nas estradas para mantê-las funcionando. Junto dele estão o colega de profissão Tomás, um ex-padre excomungado que distribui a extrema-unção aos seres moribundos que cruzam seu caminho, e sua chefe Nete — com quem Edgar tem um relacionamento incipiente e o desejo de fugir dali. Ao redor deles, o mundo parece dar sinais de que o arrebatamento final se aproxima.
Tentei escrever esta crítica algumas vezes, com dificuldade em decidir se escrevia uma crítica sem ou com spoiler. Quando resguardava os segredos, não conseguia me aprofundar em muitas temáticas que o filme vai elaborando ao longo de sua duração; quando revelava desdobramentos da trama, senti que tiraria a surpresa do leitor em assistir esse filme imprevisível e caótico. Por isso, vou me ater à cena inicial do filme, que sintetiza muitas das questões temáticas colocadas ao mesmo tempo que desenha seu estilo formal, frio, sarcástico e, pode-se dizer, experimental. Enterre Seus Mortos (2024) é um daqueles filmes estranhos, dispares até de seus gêneros, que mais arremessam símbolos do que os explicam, e esse não é o propósito, pois a aptidão de Marco Dutra em proporcionar uma experiência cinematográfica rica traz brilho o filme e me fez querer ir atrás do livro homônimo no qual o filme é baseado, escrito por Ana Paula Maia. Em suma, para ilustrar, é um filme sobre pensamentos sinistros ambientado no interior do país, um midnight movie que mescla o popular com o intelectual, o escrachado com o filosófico, o mundano e o sobrenatural.
O filme começa com Edgar Wilson, homem com cicatrizes no rosto, em sua caminhonete indo recolher um cavalo acidentado na estrada. Com um travelling lateral, vê-se Edgar descer da caminhonete, caminhar da direita para a esquerda do plano. Quando se aproxima do carro acidentado, há um cavalo que atravessou a janela, e o motorista, ainda em choque, não consegue sair. Edgar Wilson se aproxima para analisar o cavalo, o motorista pede ajuda para sair, e Edgar responde “Vai ter que esperar o resgate, não é o nosso trabalho”. Esse tipo de humor ácido é presente em todo o roteiro, e causa um desconforto constante que se acumula para culminar nas cenas mais tensas ao fim do filme, e Selton Mello interpreta seu estranho personagem muito bem, indo de expressões frias, insossas, até as mais exageradas no fim do filme. Nessa mesma cena, aparece Tomás, um padre católico que, excomungado, continua distribuindo a extrema-unção. O personagem pode ser considerado um farsante, mas é possível que seja o mais genuíno entre todos, e essa questão da farsa é, também, presente no filme, seja em um mistério envolvendo Edgar Wilson, seja na evidente farsa de uma religião bizarra que surge para amparar o desespero daqueles que perderam a fé. Que importa se Tomás foi excomungado, quando ele é quem, de fato, mantém sua devoção mesmo no apocalipse do presente? Aliás, é um apocalipse literal, pois fenômenos naturais nunca vistos acontecem durante o filme, como a chuva de pedras flamejantes e a coloração vermelha escura do céu, como se banhado de sangue. Tanto é que há pessoas em foguetes querendo ir embora desse mundo, como dialoga um outro motorista que passa próximo do acidente, pessoas, é claro, com o dinheiro necessário para simplesmente escapar, deixando esse planeta arrasado para os brutos e reles trabalhadores.
Se esse parágrafo pareceu viagem demais, é porque é mesmo, e só descrevi os primeiros minutos do filme. É um verdadeiro triturador de símbolos, uma mistura agressiva de temáticas diferentes, sempre com o fio condutor de temas religiosos: morte, purgatório, fanatismo, apocalipse, procissões, sinais divinos, possessão, rituais e mais. A singularidade do filme lembra muito os filmes de Alejandro Jodorowsky, especialmente de El Topo (1970), que parte de um gênero conhecido, o western, para levantar reflexões sobre fé. De maneira similar, Marco Dutra parte do terror para arremessar essas reflexões, com a delicadeza de um cavalo que atravessa e destrói o para-brisas de um carro. Essa grosseria formal é interessantíssima, e posso não ter absorvido bem alguns trechos, de maneira individual, mas o todo não deixa de impressionar pela ousadia e originalidade. Foi o filme mais disruptivo que assisti no 26º Festival do Rio.