Crítica escrita por Renata Serra.

Sinopse: Malu, uma mulher de meia idade com um passado glorioso, se vê presa em um caos existencial. A complexa relação com sua mãe conservadora e com sua filha adulta torna a crise ainda mais aguda, em meio a momentos de carinho e alegria entre as três. 

Malu, filme de Pedro Freire, marcou presença no 26º Festival do Rio, tendo sido premiado nas categorias Melhor Roteiro para Pedro Freire, Melhor Atriz Coadjuvante para Carol Duarte e Juliana Carneiro da Cunha, Melhor Atriz para Yara de Novaes e Melhor Filme, duplamente com Baby, pelo júri da Première Brasil. Nas sessões, foi acompanhado do curta-metragem Queimando por Dentro.

Queimando por Dentro é uma representação do sufocante peso de viver em um mundo que se esforça para não te aceitar. Acompanha um jovem gay que, após perder a mãe, perde seu espaço de aceitação dentro da família e é renegado por seu pai e pela igreja em que frequenta – o peso da rejeição familiar, o sufocamento provocado pelo silêncio imposto e a constante batalha interna entre buscar aceitação e ser quem realmente é, tudo isso é exposto na obra.  A cinematografia, com suas paletas de cores sombrias e iluminação melancólica, reflete a solidão do protagonista, ao mesmo tempo que celebra, de maneira sutil, os pequenos momentos de esperança e coragem. Dentro do que se propõe, o filme é um retrato triste mas belo sobre essa realidade que cerca tantos jovens brasileiros atualmente.

Malu, primeiro longa-metragem de Pedro Freire, é baseado nas vivências do diretor com a própria mãe. O filme se passa em 1990 em uma favela no Rio de Janeiro e conta sobre três gerações de mulheres que, marcadas por suas próprias frustrações e traumas, por um momento, dividem o mesmo teto e, desse modo, conflitos geracionais  e de personalidade surgem entre as três. Malu, uma atriz em declínio, sonha em construir um espaço cultural em sua casa e vive conflituosa entre a imagem da mãe, uma mulher conservadora e altamente religiosa, e da filha, uma jornalista que retorna de um tempo no exterior. É na construção desse roteiro em tela que o filme se mostra algo especial – Pedro Freire, após a sessão, comenta que o filme não seria o mesmo sem as performances que o compõe, entregando diálogos com uma naturalidade que você sente como conhecesse tais gerações de mulheres. Talvez você conheça.

A primeira mulher dessa geração é Lili, interpretada por Juliana Carneiro da Cunha. A personagem é uma mulher altamente religiosa, desacostumada com os hábitos e vivências da filha, que, por falta de opção, mora com a mesma. Lili é uma personagem que pode ser cômica dada suas reações a alguns momentos da narrativa, mas é de fato uma mulher complexa que vive com lembranças de sua infância e com a necessidade de estar presente na vida da filha, ainda que essa seja já uma mulher de 50 e poucos anos. Lili é um retrato do fim de uma geração que cresceu em termos que rapidamente seriam mudados, e carrega em si a herança de tentar mantê-los. É também uma mulher envelhecida, que tenta lidar com a passagem do tempo e não se esforça para entender as novas gerações por isso. Juliana Carneiro da Cunha é uma força em tela, oferecendo a sua personagem uma compaixão inigualável.

A segunda, que dá nome ao filme, é Malu (Yara de Novaes). Malu é o retrato de uma classe artística dos anos 90 que luta pela arte após ter vivido o período da ditadura militar. Ela é o completo oposto da figura da mãe, ainda que seja alguém profundamente alterada por tudo que vivera com ela. É claro o conflito estabelecido por uma diferença de criação entre Malu e a mãe, algo que ressoa em sua relação com a própria filha. Malu é uma mulher bipolar, passando por incontáveis mudanças de humor durante a narrativa que são reforçadas por uma personalidade forte, sempre em contraste com a opinião da mãe e da filha. O filme foca no processo de envelhecimento de Malu, que é afetada por uma doença degenerativa, e no seu processo de aceitar o destino inevitável do envelhecimento, que perdura mesmo com as suas tentativas de manter-se no seu passado. Yara de Novaes encontra na personagem uma força incomparável e transmite em tela uma performance tão especial e complexa quanto a personagem com quem trabalha.

A terceira, Joana (Carol Duarte), é a filha de Malu, alguém que vive com toda a liberdade pela qual a mãe lutou. Recém chegada de um período na França, ela quer voltar a São Paulo após passar um tempo com a família. Joana herda o temperamento de Malu e sua habilidade de bater boca, e se encontra no fogo cruzado do divórcio de seus pais, uma das principais fontes de conflito com a mãe. É nela que a avó encontra uma maneira de escapar nos momentos de tensão com Malu, fazendo a narrativa do filme escapar da dicotomia de relações mãe e filha que também apresenta através de uma relação baseada na mulher que, de modo ou de outro, as une. Carol Duarte sustenta tal personagem e a complexidade de suas relações de maneira que estabelece um pilar essencial para o que o longa se torna.

Fora as três gerações de mulheres, Malu conta com a presença de Tibira (Átila Bee), um homem gay que mora junto de Malu e é seu grande amigo. Tibira oferece uma perspectiva de fora da família, alguém que acaba por sofrer com os atritos entre as mulheres devido sua presença próxima à elas. A performance de Átila Bee consagra Malu como um palco para alguns dos melhores atores do país.

A proximidade do diretor com a narrativa permite um cuidado intrínseco ao representar essas mulheres em tela. A primeira metade do filme se revela mais forte, mas a segunda também é fundamental, construída pela quebra das relações entre as três mulheres. É interessante observar a construção de tais relações, sempre tão intensas, tanto nos momentos de indiferença quanto nos de carinho. Ao ter um único cenário, o filme se sustenta nas relações e momentos que acontecem entre quatro paredes. Malu, uma mulher que vive entre o passado e o presente, luta para encontrar seu lugar em um mundo que parece não mais reconhecê-la. As atuações poderosas das três protagonistas conferem autenticidade ao drama, fazendo de Malu uma reflexão sobre os altos e baixos de ser a filha de sua mãe, a mãe de sua filha, de ser avó e neta, e a complexidade de existir frente a todas as mulheres que existiram antes de você.

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