Crítica por Renata Serra.

Sinopse: Glória Hartman, uma mulher madura que atravessa uma crise existencial e financeira, volta à sua cidade natal, que passa por um processo de abandono. Através de uma fenda nas ruínas de onde morou a escritora Clarice Lispector, Glória começa a ver cenas fantásticas que vão alterar sua vida.

Lispectorante (2024), filme de Renata Pinheiro estrelado por Marcélia Cartaxo, participou da competição principal da Première Brasil no 26º Festival do Rio, e foi acompanhado do curta-metragem O Tempo é um Pássaro, além de seguido por um debate com a equipe do longa. 

O Tempo é um Pássaro (2024), curta-metragem de Yasmin Thayná, é uma viagem entre imagens, sons e cores que acompanham a personagem principal em suas memórias e sentimentos, e explora a protagonista em termos de amores, amigos, família e música. Porém, o filme resguarda seus melhores momentos apenas nas imagens – a história é confusa, apesar de uma necessidade perceptível de se fazer ter história. Se mantido em um estudo visual, O Tempo é um Pássaro seria mais interessante do que tenta ser ao se fazer ter conteúdo.

Lispectorante, de Renata Pinheiro, também é uma viagem – seja para a Recife atual ou para os universos que existem dentro de sua protagonista. A narrativa acompanha uma artista plástica recém-divorciada em crise existencial e financeira que retorna à sua cidade natal, onde redescobre a casa onde Clarice Lispector viveu e outros pontos turísticos que se fazem vivos apenas com os fantasmas dos famosos que já passaram por lá. É a partir desse reencontro com a própria cidade que Glória (Marcélia Cartaxo) inicia uma jornada onírica pessoal e permite se abrir para novas oportunidades.

O longa se divide em dois segmentos narrativos que se encontram na figura de Glória. O primeiro, mais concreto, acompanha a personagem lidando com seu divórcio e com a morte de sua tia e as implicações judiciais e financeiras que isso traz para ela. É o espaço onde Pinheiro consegue explorar a cidade de Recife e as relações que sua protagonista desenvolve ao estar nela. O segundo, o mundo abstrato que existe dentro de Glória, lhe permite explorar-se e explorar a história que sua cidade carrega independente do tempo e do espaço. Protagonizado por Grace Passô em uma espécie de mundo pós-apocalíptico, Renata Pinheiro explica, após a sessão, como tais segmentos representam o inconsciente da personagem e que a ideia surgiu em um mundo pandêmico onde a incerteza protagonizava a perspectiva do futuro. Ambos mundos coexistem em Glória, e ela encontra essa linha tênue que os divide em Guitar (Pedro Wagner), um andarilho que encontra pelas ruas de Recife e começa um caso com. 

É a partir dessa divisão que Renata Pinheiro permite a narrativa explorar o olhar de uma mulher mais velha sobre a própria vida, trabalhando com uma espécie de realismo fantástico que ressoa na experiência de Glória, uma mulher aprendendo a estar sozinha, além de explorar aquilo que é esquecido – seja Glória, a antiga casa de Clarice Lispector ou até mesmo a cidade como um todo. O interessante da obra é especialmente transformar a própria Recife e seus espaços abandonados em um personagem – nada na narrativa teria acontecido se não pelo reencontro de Glória com o lugar em que Clarice passara sua infância, hoje abandonado e esquecido.  O efeito de tal é hipnotizante – é impossível não se engajar no modo em que a cidade é filmada. A ambientação do filme é marcada justamente pela atmosfera decadente da cidade, e a estética visual e a fotografia destacam o abandono físico e emocional tanto da cidade quanto de Glória, criando certo senso de introspecção.

O filme não seria o mesmo sem Marcélia Cartaxo que, 40 anos depois de marcar o universo cinematográfico de Clarice Lispector como a Macabéa da adaptação de A Hora da Estrela, retorna a um espaço de contato com a autora. A performance da atriz é cômica e emotiva, é cativante e transforma a narrativa com a exploração das nuances de Glória em tela. Cartaxo é apoiada por um elenco coadjuvante quase tão cativante quanto ela, em especial Pedro Wagner, mas o destaque da obra é dependente de sua presença.

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