Crítica escrita por Victor de Almeida para a cobertura do 26º Festival do Rio.
Sinopse: Em Pernambuco, um roubo de joias reúne um antigo grupo de amigos desajustados, fazendo com que os resultados sejam catastróficos. Vigiados por fantasmas do passado, cada um deles terá que encontrar a sua própria forma de liberdade.
Caro leitor, dependendo da atenção que você depositar no texto, toda crítica pode conter spoilers!
ACORDE MAIOR COM 7ª MENOR
Serra das Almas é um filme estranho. Mas antes que eu seja mal interpretado, defendo que esse é menos um julgamento de valor do que a constatação de uma obra peculiar ou ainda, dissonante. O filme me parece um estudo de gênero onde a fórmula escapuliu – ou talvez tenha sido ignorada – tal como um pigmento de roxo entre o amarelo e o verde oliva. Como as famigeradas passas no arroz de natal. Como um acorde maior com uma 7ª menor.
É engraçado esse exemplo pois, não entendo de música – confesso. Mas insisto nele porque me faz lembrar do velho Júlio, meu avô – um violinista tão virtuoso quanto a saudade esmagadora que sinto dele me permite recordar. Aos domingos ele tocava seu violão e pacientemente tentava me ensinar corrigindo meus pequenos dedos nos acordes. Eu não consegui ir muito além da escala de dó. Mas o importante aqui é que muitas vezes quando ele me falta, busco na internet materiais sobre música de maneira a reestabelecer uma harmonia perdida. Recentemente, encontrei um vídeo de um rapaz que explicava que um acorde maior com uma 7ª maior, traz resolução e satisfação, enquanto que o mesmo acorde com uma 7ª menor provoca uma sensação de estranhamento e tensão.
Não estava completamente convencido. Ressuscitei meu violão deixado de canto e experimentei a bendita nota.
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PARTITURA
Não há nenhuma dúvida aqui de que Lírio Ferreira seja um cineasta talentoso. E essa habilidade consiste também em ser o maestro de uma equipe igualmente talentosa. A fotografia composta com Pedro Von Krüger, provavelmente o ponto alto do filme, é bastante eficiente em construir o isolamento da Serra das Almas. As cenas iniciais, principalmente aquelas em que a personagem interpretada por Mari Oliveira é apresentada, são de uma delicadeza incrível. Aliás, o desenho de som motivado também por essa personagem – contenho-me aqui para não estragar a experiência do leitor que ainda não assistiu ao filme – é muito inteligente e poderia ainda ser explorado mais vezes.
O elenco de atores é fortíssimo, e fica claro o carinho com que foram selecionados e tratados por seu diretor. Mas preciso destacar com mais especificidade dois desses trabalhos. Primeiro a atuação de Mari Oliveira, que é mais uma “protagonista silenciosa” do filme, parecendo estar boa parte do tempo escondida, para por fim, tomar seu lugar na centralidade da narrativa e roubar de vez a empatia da audiência. E em segundo lugar, mas sem estabelecer qualquer ordem de primazia, o ator dedicado e potente que é Ravel Andrade. O jovem parece sempre partir daquilo que há de mais humano e sensível em seus personagens, dificultando – no caso dessa obra – qualquer julgamento moral precipitado por seus atos. A narrativa gentilmente abre espaço para cada um de seus personagens, sejam eles quais for, como uma mãe que não deixa nenhum de seus filhos para trás, esculpindo com doçura seus contornos.
Mas é também na construção narrativa onde se esconde aquele acorde com sétima. Eu compreendo as escolhas que se aproximam de um thriller reconhecível, mas tenho dificuldades para acompanhar aquelas que optam por se afastar de sua inspiração. A cenas e os diálogos nos indicam que algo de muito errado aconteceu minutos antes do filme iniciar, envolvendo o roubo das joias e o rapto das duas jornalistas – o problema é que jamais sentimos o peso dessa consequência. Por vezes a Serra das Almas parece um portal de isolamento do mundo real, um buraco negro de onde nada se escapa, um lugar onde qualquer erro pode ser escondido ou “enterrado”. A grande questão é que o rosto dos atores indica uma tensão que nunca se justifica. Ao meu ver, uma dissonância entre forma e discurso.
Há ainda armadilhas genéricas que os diálogos do roteiro não conseguem evitar. Em dado momento, a personagem interpretada por Julia Stockler indaga ao seu chefe/amante – opa, escapuliu um spoiler – o motivo de sua obsessão com um tal senador; ao que responde dizendo que ele é o pior. Pior, por quê? Porque ele é mais um entre as centenas de políticos corruptos no país? Talvez. Mas aquelas pessoas são únicas. Aquele mundo fictício, diegético, está acontecendo ali, naquele momento. Uma personagem tão obstinada não deveria se contentar com uma resposta dessas. Serra das Almas merecia mais.
RESOLUÇÃO OU A ÚLTIMA TÔNICA
Sempre há aquele filme que você esperava ter visto e o filme que de fato foi visto. E esse, meus leitores, é o cemitério dos críticos. Ao final da sessão no Cine Odeon, pelo Festival do Rio, o diretor Lírio Ferreira subiu ao palco com seu elenco e disse aos presentes que aquele havia sido um filme idealizado durante a pandemia do COVID-19. Eu me espantei inclusive, às vezes esqueço das consequências infinitas desse momento tenebroso. Mas naquele momento, ao ouvir Lírio, a sétima nota subiu um semitom. Houve um alinhamento em minha fruição. Essa é de fato a melhor conclusão sobre Serra das Almas – é um filme confinado, enclausurado. As árvores daquela paisagem poética compartilham nada mais do que sussurros. A narrativa parece apontar para muitos lugares e não chegar a lugar nenhum. Os personagens parecem estar dissociados de suas realidades – afinal, há realmente espaço para discutir sororidade em um cativeiro?
Bom, talvez sim. Talvez a melhor qualidade do filme de Lírio seja ser estranho. Estranho a um mundo que parece ter deixado para trás os questionamentos que elaborou no ano de 2020. Talvez o melhor que possamos fazer é assistir Serra das Almas com nossos pais, avós e cônjuges, e lembrar daquilo que sonhamos ser enquanto tudo o que nos restava era sonhar.
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Enfim, resolução.