Originalmente publicado no e-book Comunicação Pública Cidadania e informação: Debates do II Congresso de Comunicação Pública 2024 – Série Pesquisa e apresentado no II Congresso Brasileiro de Comunicação Pública, Cidadania e Informação – 2024 – ABCPública.
RESUMO: Pensar a televisão pública é perceber que ela é um lugar de identidade, capaz de promover a visibilidade aos diferentes atores sociais que representam as mais diversas expressões culturais de suas regiões e que devem ocupar a mídia pública como canal de representatividade. Quando propomos a mistura dos sotaques, consideramos que a regionalização e descentralização são fundamentais para que a emissora pública seja, como disse Omar Rincón, um lugar de encontros culturais e sociais e que deve se converter em um lugar de trocas, de intercâmbios. Traremos um dos maiores exemplos dessa descentralização regional, que foi o DocTV, assim como programas locais com temática cultural, artística e periférica da TV Universitária do Rio Grande do Norte, a TVU RN.
PALAVRAS-CHAVE: televisão pública; cultura; arte; DocTV; Nordeste.
1. Educação, cultura e regionalização
No século passado, na década de 1960, tivemos a criação da TV Educativa, cujo foco principal foi a educação, mais precisamente a formação massiva de mão de obra qualificada por meio da educação formal. As TVs educativas foram criadas a partir do Decreto-Lei 236, de 28 de fevereiro de 1967, e o marco inicial aconteceu na região Nordeste. A partir da referida década até o início da década de 2000 foram surgindo as emissoras nordestinas, assim como nas demais regiões do país. Essa região é nosso ponto de partida, trânsito e chegada. Chegada enquanto conclusão das proposições discutidas neste artigo, uma vez que “chegar”, de acordo com o sentido estrito da palavra, ainda é possível, pois estamos todos em uma travessia.
Segundo Laurindo Leal Filho, o termo “televisão pública” surgiu mais tarde, na década de 1980, e o texto inaugural foi a Constituição Federal de 1988. O pesquisador comenta que o então senador Artur da Távola, ao colocar a palavra “público” no texto legal, talvez não imaginasse a polêmica que provocaria nas décadas seguintes. “O que foi ótimo, na medida em que ampliou a discussão e aguçou a criatividade de quem quer trabalhar concretamente com essa forma de fazer comunicação” (Leal Filho, 2009, p. 15). Não à toa, pesquisadores dos quatro cantos do Brasil vêm discutindo o tema, na esperança de dias melhores para a comunicação pública brasileira.
Neste período de mais de cinco décadas, a emissora pública se movimenta dentro do espaço-tempo e mudanças socioculturais e políticas ocorrem desde o seu surgimento, na vigência da ditadura civil-militar, que durou 21 anos, e na redemocratização, que acontece na segunda metade dos anos 1980. E foi na década de 1980 que a linha cultural passou a fazer parte da programação da televisão educativa e pública. Assim aconteceu na TV Universitária do Rio Grande do Norte (TVU RN), que é vinculada à Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e completou, em 2022, 50 anos de existência e resistência. E será a partir dela que lançaremos o olhar para observarmos aspectos como a regionalização e a descentralização como pontos primordiais para que as emissoras públicas das regiões não hegemônicas, como o Nordeste, possam ter maior representatividade na construção de uma identidade cultural nacional. Para o pesquisador Durval Muniz Albuquerque Jr (2001, p. 50), a consciência regional nordestina ou paulista não surge com um indivíduo nem com um grupo específico; ela emerge em múltiplos pontos, que vão se encaixando e sendo unificados pelas necessidades colocadas pelos tempos.
Acreditamos que a regionalização e a descentralização são ferramentas capazes de promover uma mudança considerável naquilo que chamamos de mistura de sotaques e trazer outras culturas como expressões legítimas na construção dessa identidade. Além de que as produções independentes, periféricas, de outros locais fora do eixo Sul-Sudeste, possam ser visitadas com frequência e naturalidade, a fim de se tornarem referência e parte do todo, não uma atração à parte e estigmatizada. “O discurso da estereotipia é um discurso repetitivo, é uma fala arrogante, é fruto de uma voz segura e autossuficiente que se arroga o direito de dizer o que o outro é em poucas palavras” (Albuquerque Júnior, 2001, p. 20).
Quando Albuquerque Júnior menciona o discurso de estereotipia como uma forma de estigmatizar as regiões que estão fora do eixo hegemônico, vemos que há, aí, a negação de alguns sotaques, que nada mais é do que o modo de falar, a pronúncia, a entonação que cada pessoa de determinada região do país confere às palavras. O sotaque é a identidade de cada indivíduo e região do país e faz parte da cultura de cada localidade; qual é a dificuldade de se introjetar, respeitar e legitimar tal realidade?
A diversidade do sotaque é extremamente legítima, é uma via de democratização da própria comunicação. Para o teórico Pierre Bourdieu (2000, p. 116), a identidade regional, como o sotaque, é um modo de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer conhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social, em que o que está em jogo é o poder de impor uma visão de mundo. Ele sinaliza que o discurso regionalista é um discurso performativo, que tem em vista impor como legítima uma nova definição das fronteiras e “dar a conhecer e fazer reconhecer a região assim delimitada, e como tal, desconhecida, contra a definição dominante, portanto, reconhecida e legítima, que a ignora” (Bourdieu, 2000, p. 116).
Um dos mais significativos exemplos de descentralização e regionalização na televisão pública foi o “Programa de fomento à produção audiovisual independente”, o DocTV, lançado em 2003 pelo Governo Federal, por intermédio do Ministério da Cultura, em parceria com as televisões públicas dos estados. Embora o DocTV seja nossa principal referência como exemplos da regionalização e descentralização da televisão pública, traremos de outras produções realizadas pela TVU RN, como o programa “Peri”, que mostra a periferia de Natal pelo viés da arte e cultura, e o interprograma “Cena Potiguar”, que são microdocs sobre as mais diversas manifestações da arte e da cultura potiguar.
O DocTV é, segundo a pesquisadora Fernanda Santos (2010, p. 13), exemplo de política cultural financiada pelo Ministério da Cultura, que tem procurado corrigir uma falácia histórica: o investimento na cultura brasileira. Para Karla Holanda, “o DocTV segue a tendência de políticas sociais executadas de forma descentralizada, embora sustentado por meio de planos nacionais, ou seja, centralizadamente” (Holanda, 2013, p. 25).
Quando Santos fala em correção histórica, de certa forma contempla o que Holanda fala em ações de políticas sociais realizadas de maneira a promover a descentralização, uma vez que o programa ampliou os olhares para as produções independentes de todos os estados do país, promovendo a regionalização do audiovisual brasileiro. Essa reparação teve início no primeiro mandato do governo Lula e, segundo Santos (2010, p.11), Lula cumpriu o compromisso assumido em 2003, tratando a cultura como política de Estado, comprometendo-se em dar maior atenção ao eixo estruturante da cultura, relacionado com formação e identidade cultural.
Antes de chegarmos à primeira década do século XXI, muitos foram os caminhos para que a cultura pudesse ser tratada como política social, e mesmo assim não nos livramos dos retrocessos implementados pelos governos posteriores, principalmente na vigência do bolsonarismo (2019-2011).
Agora, vamos fazer um recuo no tempo, localizando aquilo que pode ser considerado o primórdio, os primeiros passos do que viria a ser política pública, e trazer a pesquisadora Lia Calabre, que fez um balanço de todo o processo de surgimento das políticas culturais no Brasil. Segundo Calabre (2007, p. 1), nas décadas de 1930 e 1940 existe um número razoável de trabalhos que tratam da ação do estado sobre a cultura. Ela ressalta que, na maioria dos casos, as ações não são necessariamente tratadas como políticas culturais.
A política cultural como uma ação global e organizada é algo que surge no período pós-guerra, por volta da década de 1950. Até então, o que se verificava eram relações, de tensão ou não, entre o campo do político e o da cultura e da arte em geral, gerando atos isolados. A institucionalização da política cultural é uma característica dos tempos atuais (Calabre, 2007, p. 14).
Segundo a pesquisadora Lia Calabre (2007, p. 14), durante o governo Vargas (1930-1945) foram implementadas o que se pode chamar de primeiras políticas públicas de cultura no Brasil. Nesse período foi criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). No período seguinte, até 1964, o grande desenvolvimento na área cultural se deu no campo da iniciativa privada. Algumas instituições privadas, como o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o Museu de Arte de São Paulo, a Fundação Bienal, entre outras, foram declaradas de utilidade pública e passaram a receber subvenções do Governo Federal, porém sempre de maneira descontinuada, nada que se possa chamar de uma política de financiamento.
No final do governo Médici (1969-1974), foi elaborado o Plano de Ação Cultural (PAC), “apresentado pela imprensa da época como um projeto de financiamento de eventos culturais” (Calabre, 2007, p. 4). Já o governo Geisel (1974-1978) foi um período de efetivo fortalecimento da área cultural, com a criação de órgãos estatais, como o Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA), o Conselho Nacional de Cinema, a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro e a Fundação Nacional de Arte (Funarte). Em 1985, no governo Sarney, foi criado o Ministério da Cultura, que seria extinto em 1990 pelo governo Collor.
Segundo a pesquisadora, em 23 de dezembro de 1991, foi promulgada a Lei n. 8.313, que instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura. “A nova lei, que ficou conhecida como Lei Rouanet, era um aprimoramento da Lei Sarney e começou, lentamente, a injetar novos recursos financeiros no setor por meio do mecanismo de renúncia fiscal” (Calabre, 2007, p. 7). Em 1992, no governo Itamar Franco, por meio da lei nº 8.490, o Ministério da Cultura é retomado. Em seguida, em 1993, foi criada uma lei de incentivo específica para a área do audiovisual, com foco especial no cinema. “Os primeiros quatro anos de gestão do Ministro [Gilberto] Gil foram de construção real de um Ministério da Cultura”. (Calabre, 2007, p. 10). Foi nesse período que tivemos a implantação do DocTV, que fez valer aquilo que Calabre ressalta como importante para uma democracia participativa, em que a cultura deve ser encarada como expressão de cidadania; para tal, um dos objetivos de governo deve ser
a promoção das formas culturais de todos os grupos sociais, segundo as necessidades e desejos de cada um, procurando incentivar a participação popular no processo de criação cultural, promovendo modos de autogestão das iniciativas culturais. A cidadania democrática e cultural contribui para a superação de desigualdades, para o reconhecimento das diferenças reais existentes entre os sujeitos em suas dimensões social e cultural. Ao valorizar as múltiplas práticas e demandas culturais, o Estado está permitindo a expressão da diversidade cultural (Calabre, 2007, p. 14).
É inegável que o DocTV, que foi uma iniciativa do governo Lula, atendeu às prerrogativas que Calabre chama atenção; dentre tantas, o reconhecimento das diferenças, pois, por meio da descentralização e da regionalização promovidas pelo projeto, foi possível ter essa dimensão dos Brasis. Aqui fazemos uma conexão com a pesquisadora Verena Pereira (2009), que elegeu o DocTV como tendo sido o principal instrumento de produção de documentários no Brasil, que contou com recursos significativos repassados pelo Governo Federal. O DocTV foi, segundo ela, o maior programa de fomento à produção e teledifusão do documentário brasileiro. O DocTV se insere no contexto da tradição cinematográfica brasileira, com os principais objetivos, que são, segundo Pereira:
1) Promover a regionalização da produção de documentários; 2) Articular um circuito nacional de teledifusão através da Rede Pública de TV; 3) Propor um modelo de negócio que viabilize mercados regionais para o documentário; 4) Incentivar a parceria de produtores independentes com as TVs públicas; 5) Valorizar e promover a diversidade cultural brasileira ampliando o conhecimento das diferentes expressões regionais em todos os estados; 6) Dar oportunidade a um maior número de realizadores ao apresentar os talentos locais a outros estados brasileiros, gerando uma descentralização da produção do eixo Rio – São Paulo; 7) Criar núcleos de realizadores e produtores independentes nos estados (Pereira, 2009).
Tais objetivos demonstram quão importante foi o DocTV, que promoveu, em suas quatro edições, entre 2004 e 2010, uma verdadeira revolução na produção independente do país, dando oportunidade de ver expresso, em cada filme, a cultura local, a característica regional de cada produção, descentralizando o foco para outras regiões que estão fora do eixo.
2. Descentralização da cultura e política pública no DocTV
A regionalização está diretamente relacionada com a descentralização, pois, a partir do momento em que a comunicação pública, por meio da teleradiodifusão, promove encontros e trocas culturais, apresenta o Brasil para os Brasis, sai do eixo hegemônico e traz para o primeiro plano outras realidades culturais desconhecidas ou ignoradas pelos que estão mais em evidência nas telas da televisão pública. Desta feita, não é sabido nenhuma outra iniciativa que fosse capaz de promover a descentralização e regionalização como o “Programa de fomento à produção audiovisual independente”, ou seja, o DocTV, que foi o maior exemplo de implantação de política pública na televisão pública brasileira.
Algumas emissoras públicas do Nordeste não conseguiram participar de todas as edições, como foi o caso da TV Antares, do Piauí, que ficou de fora da primeira edição. Já a TVU RN participou das quatro edições do DocTV, que foi promovido pelo Ministério da Cultura, por meio da Secretaria de Audiovisual, TV Cultura e Associação Brasileira de Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (Abepec). No Rio Grande do Norte, assim como nos demais estados da região Nordeste e do Brasil como um todo, as televisões públicas de cada localidade foram parceiras do projeto No nosso caso, a TV Universitária do Rio Grande do Norte viabilizou a produção e difusão das quatro edições.
O DocTV I contemplou o documentário “Fabião das Queimadas, o poeta da liberdade” (Buca Dantas, 2004); o DocTV II, “Hermógenes – Deus me livre de ser normal” (Marcelo Buainain, 2005); DocTV III, “O vôo silenciado do Jucurutu” (Paulo Laguardia, 2007) e o DocTV IV, “Sangue do barro” (Mary Land Brito e Fabio DeSilva, 2009). Iremos centrar na primeira e na quarta edição, os DocTVs I e IV.
A escolha entre as duas edições tem como objetivo mostrar as mudanças e o amadurecimento daquilo que foi idealizado e realizado no início do projeto e como o processo se desenrolou na quarta e, até agora, última edição do DocTV.
Além das dificuldades que a TV pública local enfrentava e enfrenta, creio que não foi apenas a TVU RN, e sim a grande maioria pela falta de recurso para investir, visto que era preciso arcar com 20% do investimento total. De acordo com a coordenadora do DocTV do Rio Grande do Norte, Joana Régis, a negociação entre a TVU RN e a coordenação nacional logo no início, no primeiro ano do projeto, foi bastante complexa. Segundo ela, dos R$ 100 mil destinados à produção do projeto, 20% caberiam à emissora pública. Isso significou um impasse para a TVU RN atender.
Para ela, reconhecer a participação das TVs públicas na coprodução desses documentários é fundamental, uma vez que fortalece a identidade da cultura local, contudo a responsabilidade pela captação e recursos de parte do orçamento para a produção ficar para a TV local poderia ameaçar a execução do programa, pois: “A dificuldade que a TVU RN, vinculada a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, enfrenta na captação de recursos, seja de patrocínio ou apoio cultural, não nos credencia a pensar positivamente” (Relatório DocTV I – 2003). O resultado desse impasse foi que o erário da contrapartida da TVU RN foi repassado pelo Banco do Nordeste, o que significou uma vitória, pois certamente a emissora potiguar teria ficado de fora do programa, assim como outras ficaram, para além da região Nordeste.
Outras questões em relação ao primeiro ano do projeto e o último precisaram ser modificadas e amadurecidas, como comenta a pesquisadora Karla Holanda:
A partir da 1a edição, o Programa constatou que havia se igualado a uma série de concursos que elegem o melhor tema e não a melhor proposta de relação com o tema. Enquanto nas primeira e segunda edições, no tópico referente ao objeto do edital, diziam-se que se tratava de seleção de projeto sobre temas relativos à diversidade cultural do estado, no DocTV III essa frase foi retirada e acrescentou-se: O concurso DocTV III selecionará projetos de documentários que proponham uma visão original a partir de situações, manifestações e processos contemporâneos no estado (Holanda, 2013, p. 41).
As mudanças e o amadurecimento foram acontecendo e já era considerável no DocTV III, como menciona Holanda, e a 4ª edição teve um aumento não só no número de projetos selecionados, mas também no valor destinado à produção do documentário, que passou de R$ 100 mil para R$ 110 mil, de acordo com o edital do DocTV IV. Além dos 35 projetos selecionados, essa edição contou com uma novidade: as chamadas Carteiras Especiais, que teriam apoio das TVs públicas, e mais 22 projetos foram contemplados e distribuídos entre alguns estados do Nordeste: Pernambuco e Maranhão (1), Sergipe (2) e Bahia (4); os demais foram alocados em outras regiões. Enquanto essa edição quase dobrou a quantidade de produções, na primeira edição, um total de oito unidades federativas não participaram, dentre elas o Distrito Federal; na região Nordeste ficaram de fora os estados da Paraíba e do Piauí. Além desses, os estados do Acre, Goiás, Roraima, Amapá e Rondônia.
As alterações nos regulamentos foram acontecendo, fazendo com que “a preocupação com a construção estética do filme sobrepujasse a importância do tema. Entretanto o regulamento continuou a exigir que os filmes tratassem de assuntos relacionados aos próprios estados, estimulando, assim, a autorrepresentação” (Holanda, 2013, p. 113).
As diferenças entre a primeira e quarta edições do projeto foram muitas, não só em investimentos como em proposta conceitual, narrativa e maior alcance, uma vez que na última edição alguns estados foram contemplados com mais de um documentário vencedor, dentre outras iniciativas. Os resultados positivos nos fazem perceber como é preciso que a regionalização e a descentralização sejam práticas da televisão pública e sejam ações permanentes e contínuas, com a promoção de políticas públicas, que são grandes impulsionadoras de apoio à diversidade cultural do país. Que seja uma ação constante, longeva, não apenas pontual, embora tenha tido quatro edições, como foi o DocTV. Não obstante, é a quebra da continuidade que interrompe ciclos e nos resta outro tipo de esperança: a de que volte, afinal passaram-se 20 anos desde a primeira edição. São necessárias ações permanentes, como o DocTV, que foi sucesso; basta olharmos para os resultados, o inconteste crescimento do programa ao compararmos a primeira e a quarta edições. “A descentralização da produção e da exibição praticada pelo DocTV é uma das metas mais propaladas pelo Programa” (Holanda, 2013, p. 101).
3. A poesia da liberdade e prisão da violência
Além das diferenças apontadas entre a primeira e a quarta edições, e sua consequente evolução em todos os campos, tivemos temas também completamente distintos, diante da modificação realizada nos editais, como apontado acima. Aqui no RN, fica clara essa mudança conceitual, pois, de um lado, temos o poeta e escravo Fabião e sua luta pela liberdade, e, de outro, a cultura da violência como espetáculo. O projeto contemplado no DocTV I foi “Fabião das Queimadas: o poeta da liberdade”, do diretor Buca Dantas; e a edição IV contemplou “Sangue do Barro”, de Mary Land Brito e Fabio DeSilva.
Fabião da Queimadas foi um cantador e poeta popular, um dos mais expressivos do Rio Grande do Norte. Era escravo do fazendeiro José Ferreira da Rocha e, durante a lida, aprende a tocar a rabeca, começa a compor e a cantar. Assim, passou a vida a juntar dinheiro para comprar sua alforria. Consegue comprar a liberdade não só de si mesmo, mas da mãe e da irmã. Ele viveu entre os anos de 1848 e 1928, no agreste potiguar.
O documentário narra a sua história por meio de depoimentos de estudiosos e pesquisadores, como Deífilo Gurgel e Tarcísio Gurgel. Além dos depoimentos, a narrativa lança mão da dramatização, utilizando-se do recurso do docudrama. Para Buca Dantas, o DocTV teve todo um impacto não só em sua vida como realizador, bem como na do roteirista Geraldo Cavalcanti, mas também em toda a equipe, que chegou a ter quase 100 pessoas envolvidas e contratadas. Dantas comemora a oportunidade de geração de emprego: “Foi nossa primeira realização cinematográfica com um modelo de produção condizente com as reais necessidades na área, empregando quase uma centena de profissionais. Foi uma experiência bastante exitosa”[1].
O DocTV IV trouxe uma temática completamente diferente, dentro já das modificações propostas pelas mudanças que foram ocorrendo nos editais ao longo do período, entre a primeira e a até então última edição do projeto. O documentário “Sangue do Barro”, dirigido por Mary Land Brito e Fabio DeSilva, traz como tema a exploração da violência proporcionada pela mídia sensacionalista, que mira a espetacularização sem medir as consequências que isso poderá trazer. A narrativa gira em torno Genildo Ferreira de França e se passa em Santo Antônio do Potengi, Distrito de São Gonçalo do Amarante, no estado do Rio Grande do Norte.
A personagem central manda uma carta para um programa dessa natureza solicitando espaço para se manifestar. Não obtendo resultado algum, resolve criar, ele mesmo, esse espaço e parte para cometer o maior assassinato em série do qual o Rio Grande do Norte teve notícias. Ele mata 15 pessoas e, após a tragédia, finalmente consegue o espaço tão desejado que havia pedido na mídia. Uma observação em relação ao barro no nome do filme, para quem não assistiu: a cidade em que ocorreu o crime tem um marco histórico em relação ao barro, ou seja, a fabricação da cerâmica, do tijolo. A olaria que há no local é considerada a que produz o melhor tijolo do estado. Daí a relação do sangue e do barro.
Para Mary Land Brito, diretora do filme, o DocTV foi extremamente importante, pois, além de incentivar a produção, também deu formação e acompanhamento. “Ser orientado por renomes do cinema brasileiro e ainda ser acompanhado foi muito importante. Você sabia que podia colocar as ideias em prática porque sabia que tinha orçamento”. Ela enfatiza a importância do projeto para a produção regional, uma vez que foi uma oportunidade de trazer os diversos olhares dos realizadores, e não apenas de pessoas do eixo Sul-Sudeste.
As pessoas puderam contar suas histórias como queriam mostrar, com o seu sotaque. É muito importante dar espaço para a diversidade e identidades que existem em cada estado. O Brasil é um país muito grande, então, para a produção regional independente foi um grande ganho porque mostramos o Brasil da forma que queríamos. O profissional de cada estado pôde contar suas histórias e levar seu olhar para o Brasil inteiro. Acho muito importante essa diversidade de olhares.
Brito também enfatiza um ponto importante: o DocTV dava indício do que era uma política pública, pois, segundo ela, política pública é continuidade, é quando submetemos um projeto que às vezes não é aprovado, mas sabemos que, no ano seguinte, haverá uma segunda chance. “Eu sei que ano que vem vai ter de novo, então vou aprimorar para dar certo. Isso faz a gente ter esperança. Foi uma pena não ter tido continuidade, mas a gente experimentou uma política pública”.
Ela destaca que a exibição dos documentários na televisão pública e em rede nacional foi algo de incomensurável importância, visto que a produção em virtude dessa exibição teve um grande alcance e pôde ser vista por milhares de pessoas de todo o país. “O DocTV abriu muitas portas e, além de tudo, o filme foi exibido nas TVs e muitas pessoas viram o que a gente produziu aqui no RN em rede nacional de televisão”.
4. Espaço periférico na cena potiguar
O pesquisador Omar Rincón diz que a televisão é um dispositivo expressivo, e não temos dúvida disso. É um lugar de encontros culturais e sociais em que as mais diversas expressões artísticas ou não podem e devem ser mostradas a um número grande de receptores, e muitas vezes de uma só vez. Rincón (2002, p. 315) nos diz que a televisão pública deve, sim, competir com a nova paisagem televisiva, determinando sua participação dentro do mercado audiovisual, e, para isso, “os canais devem se converter num lugar para o intercâmbio de sensibilidades e identidades; um lugar que promova a convivência, outorgue visibilidade aos diferentes atores da sociedade” (Rincón, 2002, p. 316).
Partindo do pressuposto citado por Rincón, de que a televisão pública é um lugar de encontros culturais e sociais e que deve se converter em um lugar de trocas, de intercâmbios, de mistura de sotaques, como o que aconteceu com o DocTV, que proporcionou essa troca, veiculando a cultura regional para o país inteiro, temos, em cada localização, mesmo na mesma região, manifestações culturais diferentes, até mesmo o sotaque difere entre os estados. Partindo do local, recobramos Nestor Garcia Canclini, ao dizer que
ser cidadão não tem a ver apenas com os direitos reconhecidos pelos aparelhos estatais para os que nasceram em um território, mas também com as práticas sociais e culturais que dão sentido de pertencimento, e fazem que se sintam diferentes os que possuem uma mesma língua, formas semelhantes de organização e de satisfação das necessidades (Canclini, 2006, p. 35).
É nessa perspectiva de que as práticas sociais e culturais dão todo o sentido de pertencimento e uma consequente valorização de si e do coletivo que se lhes assemelha que trazemos exemplos de duas produções da TVU RN que ganharam outros espaços além da fronteira potiguar, valorizando o reconhecimento de tais direitos. A televisão pública pertence ao público, ao povo e aos seus interesses enquanto cidadãos. Traremos duas produções que se encaixam dentro da visão trazida por Canclini.
O interprograma “Cena Potiguar”, que é um microdoc de no máximo três minutos, veiculado na programação da emissora, ganhou visibilidade nacional e foi veiculado na rede, na TV Brasil, no ano de 2018; agora, na nova gestão, em 2023, ele será mais uma vez veiculado nacionalmente. O “Cena Potiguar” foi pensado para contemplar todas as categorias de arte e cultura do estado do Rio Grande do Norte. Teve início em 2016 e seguiu até o ano de 2019; teve mais de 130 edições, contemplando 12 áreas da arte e cultura. Como servidora da TVU RN e estando à frente do “Cena Potiguar”, assim como do “Programa Peri”, acredito que está em nossas mãos, como agentes inseridos dentro da instituição pública e enquanto partícipes da comunicação pública, ir além da pesquisa, ou seja, sermos peça de engrenagem de uma mudança social, como aponta Martín-Barbero, ao dizer que a televisão pública serve à mudança social quando promove a expressão, a educação do cidadão e a conexão social em torno de referências comuns, quando se converte na janela para que as pessoas enviem suas mensagens à sociedade; quando se desenvolve um projeto de acesso a produções locais, “é preciso produzir local para vender global” (Barbero, 2002, p. 330). Como dito por Barbero, é necessário ser janela para que a produção local tenha visibilidade; o local precisa ser conhecido a fim de ganhar proporções em exibições maiores, e a televisão pública tem esse compromisso de valorização da cultura, que também pode ser chamada de periférica, por estar fora dos olhos e da valorização hegemônicas. Sim, é preciso ser local para ser regional, nacional, global. Pertencer é ser.
Quem senão a televisão pública para trazer, do anonimato, as expressões da cultura popular, dos que não têm espaço na grande mídia? Como disse Rincón, a televisão pública é esse lugar de identidade, de promover a visibilidade aos diferentes atores sociais, ser, de fato, um espaço público, do público, dos que estão à margem, na periferia, em todos os sentidos e aplicabilidades que a palavra sugere. O pesquisador citado, Tiaraju D’Andrea (2020), coloca como palavras-chave a violência e a pobreza, vocábulos que precisam ser ressignificados ao se referenciar sobre a periferia. D’Andrea (2020, p. 23) diz que é preciso ressaltar que as significações para periferia não foram construídas de maneira isolada, mas sim a partir de sua sensibilidade e de como esta interagia e captava anseios difusos entre a população periférica. População essa que experiencia vivências e produz conhecimentos, reconhecendo, no grupo, os intelectuais orgânicos que melhor formularam uma narrativa de sua história em dado momento histórico.
De acordo com D’Andrea (2020), obedecendo a todo um processo de mutações, em decorrência de procurar romper com dois dos estigmas mais contundentes em relação à periferia, como dito: pobreza e violência. Os termos, segundo ele, vão se modificando e adquirindo novos sentidos e significados, como a aliança com a arte, a cultura e a consciência de pertencimento, de ser local. “No momento em que o termo ‘periferia’ se torna conceito, ao não possuir profundidade teórica, ganhava em abrangência, sua fragilidade se tornava sua fortaleza” (D’Andrea, 2020).
E por falar em periferia, outra produção da TVU RN é o programa “Peri”, que teve, até o momento, uma única temporada, em 2018, e contou com oito episódios temáticos. “Peri” é uma produção de 26 minutos com dois blocos e traz a periferia de Natal para a frente das telas pelo viés da arte e da cultura praticadas nas comunidades pelos agentes periféricos. Mostrar a periferia desta forma e em uma linguagem diferenciada para os padrões adotados era o objetivo. O programa não tem apresentador; a cada episódio, novas personagens assumem o protagonismo de suas histórias e práticas artísticas.
O programa tem uma linguagem de documentário aliada ao videoclipe, pois preza pelo movimento e pelas cores. A periferia é vista com olhar de alegria, do encanto da arte e da cultura, não como o lugar estigmatizado pela violência, comumente exibidos pela mídia de maneira geral. Há, inclusive, certa personificação do lugar, em que o próprio espaço físico vira personagem em dado momento de um episódio específico; no episódio “Cor”, essa personificação periférica é evidente. Além desse episódio, tivemos os episódios “Resistência”, “Batalha”, “Sabor”, “Alegria”, “Corpo”, “Som” e “Movimento”. Em cada um desses episódios há pelo menos cinco personagens que são da própria periferia, que se autorrepresentam, sem o filtro do apresentador. Pensar em “Peri” é trazer a periferia de Natal, não essa ou aquela figura como apresentador ou condutor. Há, no programa, o lugar de fala, a voz off é da periferia, que ocupa todos os espaços da tela — todos, sem exceção. A equipe só aparece na legenda. É assim que pensamos a representatividade, esse lugar de exercer a cidadania, de promover visibilidade, identidade e pertencimento. Ser local para ser nacional.
Ambas as produções foram premiadas no Festival Aruanda do Audiovisual Brasileiro, na categoria que premia as melhores produções das televisões públicas do Brasil. Em 2016 e 2017, o “Cena Potiguar” venceu como Melhor Interprograma; e em 2019, “Peri” levou o prêmio de Melhor Programa de Televisão Pública.
Antes de nos encaminharmos para o último item, ou seja, a conclusão, recorremos mais uma vez a Canclini (2006, p. 241), a fim de fecharmos essa parte em total consonância com ele quando coloca que, no interior dentro de cada nação, só se pode esperar um desenvolvimento multicultural democrático caso se estabeleçam condições favoráveis para a expansão de rádios e televisões regionais, de grupos étnicos e minorias, ou “ao menos de tempos de programação em que diferentes culturas possam se expressar, sujeitando-se mais ao interesse público coletivo do que à rentabilidade comercial”.
5. Pertencer para pode ser
Há uma questão bastante decisiva quando se trabalha a identidade. Somos uma parte desse todo que é a televisão pública, somos da nossa região, somos na nossa localidade e, no final, somos uma rede. Rede pressupõe junção, comunicação, diminuição de distâncias. Não importa se eu falo com esse ou aquele sotaque; no final, devemos nos entender. Talvez esteja sendo utópica, mas acredito que estamos aqui para isso. É assim que pensamos a rede pública de televisão brasileira, que, ao nosso ver, ainda vai percorrer um longo caminho. Não podemos estar à mercê de mudanças políticas, seja isso no macro ou no micro, no nacional ou local. Pois infelizmente tal quesito ainda se reflete na maneira como a instituição é conduzida; proposição defendida por Bustamante, quando menciona que, embora a missão do serviço público mantenha lastro econômico com as televisões estatais, “as mudanças constantes dos dirigentes das televisões por razões políticas, impede com frequência uma razoável estabilidade nas gestões” (Bustamante, 1999, p. 59). Este seria um ponto a considerar.
Quando propomos a mistura de sotaques que dialoga com a descentralização e a regionalização, ela nos remete à regulamentação, pois, a partir do momento em que as fatias desse bolo chamadas “concessão” e “outorga” estiverem equilibradas entre as televisões públicas e as comerciais, em que a parcela de produção local, regional, periférica seja uma realidade, essa rede vai funcionar, de fato, como rede. Quando nos referimos à periferia é no sentido ampliado; pois os espaços periféricos comumente são aqueles mais afastados do centro dos acontecimentos, longe da hegemonia, e isso se estende para as regiões periféricas. Assim, é fácil concluir em que categoria está o Nordeste, o Norte, entre outras. Segundo Angela Prysthon (2003, p. 43), a produção cultural da periferia, assim como o debate em torno do tema, tem se consolidado como tendência que só tende a aumentar dentro da teoria crítica, em que o discurso da diferença tem gerado como um tipo de política cultural das periferias. Prysthon aponta que “as diferenças culturais trouxeram um imperativo para o teórico da cultura, que é preparar uma moldura conceitual que redefina o papel das minorias, dos subalternos, dos “deserdados da terra” (lembrando Fanon), (Prysthon, 2003, p. 44).
Falar em DocTV foi lembrar de que tivemos um programa que cumpre com uma das finalidades da televisão pública: a descentralização e a regionalização. Narrativas audiovisuais de todos os lugares do país estavam em nossas casas e em horário nobre, uma oportunidade de se reconhecer o brasileiro. Outrossim, acredito que seja preciso estimular o fortalecimento identitário, saber que se pertence a um dado lugar, a uma dada cultura.
Não podemos deixar de pensar na abrangência do termo “periférico”; desta feita, a periferia são as minorias, inclusive culturais, e a produção audiovisual independente se encaixa no conceito, assim como os artistas, as artes, as culturais que estão à margem. Se as televisões privadas não têm nenhuma obrigatoriedade de ter, dentro de sua programação, esse fortalecimento regional por pura falta de regulamentação, cabe ainda mais a emissoras públicas esse compromisso com a promoção da identidade cultural local e regional. Raymond Williams sugere que se pode mesmo chegar à conclusão de que as instituições de serviço público “só serão salvas de sua provável derrota ou da absorção por novas instituições comerciais internacionais se forem transformadas em empresas totalmente democráticas e experimentais” (Williams, 2016, p. 160).
REFERÊNCIAS
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