Artigo de 2019 de Sophia Pinheiro, originalmente para a Revista Teoria e Cultura v.14, n.2 do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFJF.

Corpo-Campo: nosso encontro através das imagens

Esse artigo é fruto de minha pesquisa de mestrado, no programa de Antropologia Social da Universidade Federal de Goiás. A pesquisa traçou a trajetória da cineasta indígena Patrícia Ferreira Pará Yxapy, da etnia Mbyá-Guarani, desde sua primeira oficina audiovisual com o Coletivo Mbyá-Guarani de Cinema e Vídeo nas Aldeias, em 2007, até o ano de 2017, ano de defesa da dissertação. Pesquisei sua trajetória nesses 10 anos a partir das relações que ela estabelece com as imagens a fim de contribuir com os estudos sobre mulheres e cineastas indígenas e, a partir daí, compreender os caminhos de uma mulher indígena cineasta no Brasil. Realizo trabalho de campo com ela e sua família desde 2015 e atualmente o “estranho” me é muito familiar, visto que ela é minha xeryke’i (irmã mais velha). Patrícia é atualmente uma das mulheres relevantes para o que nós – juruá kuery – chamamos de cinema indígena brasileiro. Nomeação e caminho que sigo no doutorado, agora em Cinema e Audiovisual na UFF (RJ).

A pesquisa procurou responder cinco perguntas para a composição da paleta da minha relação com Patrícia:

1. O que é ser uma mulher indígena cineasta?

2. Como a produção imagética é pensada e realizada por uma mulher indígena?

3. Qual a importância do fazer cinema para ela?

4. Quais potências as imagens podem causar, combater ou afirmar no contexto de Patrícia?

5. Qual a especificidade da mulher indígena cineasta se comparada aos homens indígenas?

Levantando a seguinte hipótese: por meio do cinema, Patrícia performa a sua auto-etnografia e auto-mise-en-scène, manipulando o documentário indireto enquanto agente histórica, ou seja, escolhe os meios e as formas de se mostrar, exercendo um espaço de liderança por meio de seu trabalho que tensiona alguns processos da produção artística hegemônica. Aqui neste fragmento da pesquisa, contextualizo o fazer cinema de Patrícia em seu enquadramento cosmológico e social, o atual “estado das coisas” no cinema indígena brasileiro feito por mulheres e as representações imagéticas de Patrícia e de outras cineastas indígenas.

A produção de Patrícia afasta-se da visão romantizada e exótica (“da outra”) por meio das apropriações de seus discursos, empreendendo sua própria agência artística na produção de uma cinematografia indígena feminina. Desse modo, deparamo-nos com uma tensão entre fronteiras e suas possibilidades discursivas abertas pela apropriação de tecnologias audiovisuais constitutivas das posições hegemônicas. Foi a partir dessa fissura que fizemos uma experiência etnográfica de vídeo-cartas: trocas de mensagens videográficas dos mais diversos temas entre nós duas. Como poética de minha dissertação de mestrado, essa troca deu-se a fim de mostrar com imagens e sons nossa relação. Como afirma Patrícia: “o que pus para fora estava dentro de mim” e assim nos mostramos.

“Tudo era uma grande aldeia antes de ter fronteira”

 É muito difícil dissociar a luta pela terra e a luta econômica e social da luta pelo respeito e pela representação por serem mulheres. A terra é episteme central para as diversas etnias do Brasil e para as pessoas que trabalham e vivem dela. Se pensarmos na poética da terra com as mulheres, acionamos a potência dos corpos e das políticas desse imaginário. A relação mulher, terra e imagem, revela memórias vivas e apreensões cosmológicas de suas alteridades. Nos últimos anos, cada vez mais vídeos e imagens têm sido realizadas pelos movimentos sociais, povos indígenas e trabalhadores/as e, sobretudo, pelas mulheres. Há um avanço em relação à agência artística das indígenas brasileiras e mulheres do campo, suas práticas cotidianas caminham no sentido da autonomia das mulheres, autonomia essa que não possui relação direta com as questões teóricas feministas ocidentais. Nesse sentido, para essas mulheres, é mais importante a prática “empoderadora” cotidiana do que a ideia de se estar dentro de um quadro teórico. Enquadrar essa autonomia em um conceito pode ser limitador e reducionista, pois a luta das mulheres indígenas, camponeses e quilombolas vai muito além do gênero e abarca várias frentes, como a luta pela terra e contra o preconceito sociocultural. O momento histórico e o contexto social em que essas mulheres intimamente ligadas à terra no Brasil vivem, impulsiona esse movimento de apropriação imagética da autorrepresentação. Lutando contra as violências simbólicas e físicas, o desenvolvimento da apropriação das imagens e das mídias pelas mulheres em contexto agrário. As demandas das ocupações tradicionais Mbyá-Guarani na região missioneira são relatadas nos filmes Desterro Guarani (2011) e Duas aldeias, uma caminhada (2007). O trânsito entre aldeias, o jeguatá, é traduzido por diversas/os autoras/ es e pelas/os Mbyá com os quais convivi como “caminhada” (NIMUENDAJU UNKEL, 1987). O jeguatá8 é fundante na cosmologia Guarani e está presente tanto no nhanderekó – usualmente traduzido como “nosso sistema”, “nosso jeito”, “nossa tradição”, “nosso modo de ser” – quanto na busca da Yvy marã e’y, ou “terra sem males”. As fronteiras do Brasil estão consolidadas pelo Estado e ocupadas por não indígenas há muito tempo – um período muito menor se comparado ao tempo em que os povos tradicionais ocupam a terra. Poder caminhar, exercer o nhanderekó, é um poder. Para o povo Mbyá-Guarani, não há fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai, tampouco existem fronteiras entre os estados brasileiros; o deslocamento é livre, assim como a natureza e seus ciclos de reprodução. Todo esse território faz parte da espiritualidade Guarani. Os deslocamentos territoriais, isto é, as mudanças recorrentes de aldeia, são divididos em três categorias: mobilidade inter-aldeias, migração tradicional e migração por expropriação (MELLO, 2001). Patri escreve em seu texto “Fronteira, espaço e paisagem” (2017):

Se uma pessoa sonhou com um lugar específico, ela simplesmente não pode ir. Não é possível se deslocar livremente de um lugar para o outro porque a maioria dos espaços já são de alguém, já é propriedade privada. Se a pessoa está na Argentina, por exemplo, e quer vir ao Brasil, enfrenta a fronteira, precisa de documento e de outras burocracias para atravessar a fronteira entre esses países. Não fomos nós que colocamos essas fronteiras, por isso se torna muito difícil de entendê-las, principalmente para os mais velhos. Coisas simples para nós, como ir do Brasil pra a Argentina pra buscar alguma planta, sementes, algum material para artesanato, se torna complicado pois na maioria das vezes somos barrados na fronteira porque ou faltam alguns documentos, ou vão crianças sem os pais, coisas que antes dos brancos aconteciam e agora isso não podem mais acontecer. Isso atrapalha a troca que sempre existiu. Tudo era uma grande aldeia antes de ter fronteira. As fronteiras entre Argentina, Paraguai e Brasil, não chamamos assim, chamamos de ovaire (do outro lado). As pessoas de lá falam assim para se referirem ao Brasil e a gente fala assim no Brasil para se referir à Argentina, o outro lado do rio.

(…)

Há uma grande diferença das modificações espaciais feitas pelos homens brancos e os povos tradicionais. Dessas modificações, as mais drásticas e visíveis para mim são os avanços das cidades, em que cada espaço é como um quadrado cercado, individual e gerador de lucro. Creio que a criação desses espaços individuais foram perpetuadas desde a chegada do primeiro homem branco em nossas terras, um grande exemplo são as capitanias hereditárias. Na cosmologia Mbyá-Guarani, a terra não pode ser vendida nem ser de ninguém. O espaço não pode ser capitalizado. Mesmo que cada família tenha sua casa, esse espaço não pertence a ela, como propriedade, mas como um espaço de partilha com a própria terra. A respeitamos e respeitamos cada ser que usufrua de seu espaço, como animais e plantas. Atualmente temos que lutar para ter nosso espaço coletivo, se não há demarcação, não há terras para nós. No mundo branco, cada quadrado é de alguém. Para os não-indígenas existem diferentes categorias para os espaços, para nós Mbyá, não existe separação entre espaço, território, paisagem, lugar e região. Tudo isso para gente é a Yvy Rupá. Também não existe a separação entre natureza e o humano. Para nós não existe espaço individual e antigamente não existia um território delimitando, ou seja, demarcado, definido de forma que essa delimitação obedeça à uma relação de posse ou de poder. (FERREIRA, 2017, p.55).

As fronteiras na realidade não existem – são imaginadas, impostas pela colonização para o controle identitário, político e territorial dos povos tradicionais. A fronteira não é meramente espacial, é um afastamento da compreensão do Outro. A ação policial do indigenismo brasileiro reprimia a mobilidade das famílias indígenas forçando-as apenas para o interior de terras demarcadas. Foi a Constituição Federal de 1988 que, na teoria, garantiu o direito de ir e vir a toda/o cidadã/ão brasileiro, e o respeito à mobilidade tradicional Mbyá começou a ser discutido. É preciso caminhar para descolonizar. Como me disse Ariel: “o que vivemos é um suposto processo de colonização porque enquanto tivermos mato e floresta nunca seremos colonizados”. Assim, esse imaginário simbólico violento que aciona imagens estereotipadas dos povos indígenas é fomentado desde o início da colonização. Tais imagens corroboram os preconceitos, a violência física e o desterro da população indígena brasileira.

Diante da divisão racial do espaço (GONZALES, 1984), é justamente nesse contexto de opressão étnica, social e de gênero que Patrícia dicidiu fazer (e faz) cinema e que usa a imagem como arma. É a partir do diálogo entre etnologia, gênero e imagem que contextualizo o lugar de onde ela produz imagens, em conformidade com Bell Hooks: “quando eu penso na política do ver – como nós percebemos o visual, como nós escrevemos e falamos sobre isto – eu entendo que a perspectiva de onde nós abordamos arte é sobre determinada pela localização” (1995, p. 1-2). Localizemos, então, as imagens de Patri dentro das políticas do ver.

As mulheres indígenas no audiovisual brasileiro

Imagem Acima – Frame das imagens brutas do primeiro longa-metragem de Patri. Nele, ela conversa com Elsa, sua mãe. O frame foi feito quando estávamos com Ana Carvalho na ilha de edição do Vídeo Nas Aldeias em Olinda (PE), para assistirmos a todas as imagens captadas para o filme e acompanhar o início do processo de montagem.

Se me pedissem para expressar em uma imagem toda a complexidade, potência e tensões que o cinema indígena exibe, certamente seria essa. É com tal imagem e a pergunta “E se você fosse uma cineasta, o que você mostraria?” que inicio essa discussão, para que esse momento possa provocar em você, leitora e leitor, o que provoca em Patrícia quando ela decide o quê e como filmar. Quando pergunta à sua mãe o que ela mostraria, ao conversarem sobre o filme que Patrícia está fazendo, trata-se, a meu ver, de um exercício de autoconhecimento do próprio fazer cinema para ela. Na pergunta está uma questão de escolha da cineasta, sobre o que mostrar, evidenciando o poder que a/o cineasta detém quando toma essa decisão. Ao mesmo tempo, é uma atitude que traduz um deslocamento de poder de Patrícia, ao querer saber o que Elsa mostraria caso fosse uma cineasta como ela. O modo como Patri está sentada ao lado de Elsa e a olha é uma posição corporal que expressa intimidade, com uma pergunta de desejo e curiosidade para ouvir a mãe e suas sábias palavras. É um momento muito comum na aldeia. Um encontro de aprendizado pessoal e que acrescenta algo ao que ela quer mostrar, sem dissociar a Patrícia mulher Mbyá-Guarani e a Patrícia cineasta. Se você, leitora ou leitor, fosse uma/um cineasta, o que mostraria? Patrícia, segundo ela mesma, quer o seguinte:

Mostrar para os não-indígenas o erro daquela velha história do índio “CONGELADO” e que nós aparecemos somente na HISTÓRIA da época do Caminha, dos jesuítas e dizer que NÓS não ficamos congelados em 1500, que NÓS estamos em 2016 e precisamos urgentemente falar sobre nós indígenas atuais e dizer que NÓS não somos folclore como conta nos livros de História do Brasil.

Com o domínio da linguagem e da tecnologia do cinema, o que é ser uma mulher indígena cineasta? Quando se filmam, elas tornam-se personagens e cineastas do próprio filme. Entram, assim, nesse jogo de realidade e performance estabelecido pelo documentário[1]indireto, uma hibridização entre documentário e ficção, deixando um movimento matizes entre eles, várias nuances entre linguagens, várias camadas. Como o fazer cinema e a produção imagética são pensados e realizados por uma mulher indígena? Qual a importância disso para ela? Quais potências as imagens podem causar, combater ou afirmar nesse contexto? Tais perguntas são intermediadas pelo ponto de vista de Patrícia e pelas novas representações que ela assume diante das múltiplas relações que seu povo estabelece com o Estado, o que a torna uma atriz social diversa (SACCHI; GRAMKOW, 2012). A imagem, para Patri, é “nossa flecha, nossa arma, que aprendemos a usar assim como o papel”. Turner (1992) revela o que está por trás do ato de filmar: há quem filma e o que se filma, e essas são preocupações que fazem sentido e são responsáveis pelos temas e narrativas privilegiadas (MARIN; MORGADO, 2016). Ainda nas palavras de Patri, quando a perguntam o motivo que a levou a usar a câmera:

Eu tenho as minhas respostas para a pergunta de várias pessoas: o motivo que me levou a usar as câmeras. Trabalhar com audiovisual (estar junto com os meninos do coletivo), sendo mulher indígena, e além de trabalhar como uma professora na escola, a resposta é simples: primeiro, dar minha pequena contribuição e acompanhar as lutas diárias das nossas lideranças indígenas; para provocar os espectadores sejam indígenas ou não-indígenas e também nos motivar, nos inspirar a produzir nossos próprios vídeos, documentários, entre outros; sermos autores das nossas próprias histórias, onde possamos falar sobre nossas vivências, experiências, problemas e que possamos trocar informações e visões sobre cultura indígena e identidade indígena no Brasil e no mundo. E também porque eu estava cansada de ver quando aparecia na mídia – feita pelos juruá kuery – sobre os indígenas, a maneira equivocada com seu olhar dá uma informação errada, vai criando ainda mais o preconceito aos poucos que possuem acesso aos vídeos sobre indígenas. E também partindo um pouco desse mundo em que vivo, da minha realidade, da forma como as pessoas nos olham, percebo que, de forma geral, as pessoas não- indígenas sabem muito pouco sobre NÓS. E que não sabem, aliás, que vivemos aqui desde muito antes do “destruimento do Brasil” ou melhor, “destruimento da América”.

O cinema indígena é heterogêneo. São muitos povos com linguagens, demandas e produções específicas. Utilizar as câmeras como uma arma de luta e resistência tem sido uma das grandes forças do movimento indígena contemporâneo, seja em produções para a própria aldeia como forma de documentar e guardar práticas culturais, seja como registro político de alguma atividade da militância indígena e do uso da imagem como documento14, no uso particular da câmera (principalmente nas redes sociais), como experimento e/ou como cinema. A produção do saber e o deslocamento de poder que essa outra maneira de pegar a câmera e olhar através dela provoca são desestabilizadores para a concepção de imagem, para as representações e os formatos acadêmicos e técnicos das realizações de imagens ocidentais. Nesse sentido, Ginsburg (2002) versa sobre structures of feeling (redes de afetos) das tecnologias da imagem (filme, vídeo, televisão) que contam uma série de possibilidades e podem ser uma linguagem de valor para as minorias perante a condição impositiva da linguagem e da identidade da cultura dominante. Essas imagens contêm categorias criadas pelos próprios indígenas, que refletem e transformam suas condições de vida. Ginsburg (2002, tradução nossa, grifo da autora) destaca: “alguns ativistas indígenas chamam [isso] de uma bomba neural cultural em potencial”. Como salientou Patri, ela está cansada de ver a grande mídia e o olhar não indígena representarem de maneira equivocada as/os indígenas. Vincent Carelli não nos deixa esquecer que, “quando os filmes rompem o cerco da distribuição para os ‘amigos dos índios’ e ganham reconhecimento e difusão num espaço mais amplo no cenário audiovisual brasileiro, estes sentimentos conflitantes vem à tona com clareza” (2011, p. 49). Há filmes que ficam dentro da própria aldeia e cumprem seu papel final, enquanto outros são para além dela, visando à participação no circuito externo de festivais e exibições. Não existe uma classificação em cinema, vídeo ou “cinema” dentro da produção indígena. Essa vontade de qualificar “cinema indígena” não se coloca para as/os indígenas como uma preocupação ontológica, mas como resultado de mais um processo de enfrentamento político e cultural com a sociedade envolvente (MARIN; MORGADO, 2016). Logo, as produções aqui tratadas extrapolaram a aldeia indígena e o âmbito privado. Ana Carvalho, pesquisadora e colaboradora do VNA, afirma:

O cinema indígena é múltiplo em suas formas de construção e na sua estética, particular de cada povo. É um cinema imenso, contemporâneo, e que vem romper com um certo modo de se fazer cinema. A começar pela diluição do conceito de autoria: são filmes que nascem colaborativos, uma colaboração entre índios e não-índios e na coletividade da comunidade e território onde são gestados. As imagens produzidas por esses cineastas e coletivos de cinema desestabilizam lugares considerados muito sólidos no cinema e nas artes e constituem, como bem colocou Diego Matos no catálogo da Bienal, um novo corpo de pensamento audiovisual, que complexificam e deslocam os próprios saberes e visões contemporâneas do mundo ocidental.

A partir dessas desestabilizações, não há como esquecer as alteridades das mulheres indígenas que possuem aspectos culturais próprios, baseados em tradições ou costumes bem específicos. O discurso da representatividade está muito presente no audiovisual atualmente, em exemplos como o Oscar, sites, palestras, conferências, festivais e eventos que discutem o espaço das mulheres (negras, trans, indígenas, brancas) à frente das imagens e sobre suas representatividades dentro do cinema. Muito se indaga: esse olhar feminino existe? Patri exibiu o processo do seu longa-metragem durante a Mostra Olhar: Um Ato de Resistência, parte do Forumdoc. BH 2015, realizado em Belo Horizonte. No debate sobre as imagens, ela disse:

Desde o começo, desde o começo não, quer dizer, eu participei do processo (do filme Duas aldeias uma caminhada), filmagem, vi a montagem, gravações e suas dificuldades, depois eu vi o material que eles fizeram… Eu fiquei pensando assim, nesse primeiro filme duas aldeias, eu pensei que eu poderia fazer; foi nesse sentido que eu entrei para fazer parte desse coletivo como mulher, eu percebi que os meninos estavam filmando e nós mulheres guarani somos muito fechadas assim, por mais que chegam, ah… mas não conversávamos muito com homem, com todo mundo, com as próprias mulheres… Mas pensando nisso eu fiz parte para poder ajudar os meninos a fazerem filmes, a filmar. Eu senti que havia uma necessidade de um olhar feminino e de um ouvido feminino, foi por isso que entrei e com certeza com esse filme eu aprendi muito mais, assim, como é bom ter uma mulher para mulher.

Em muitas de nossas conversas, Patri diz ainda que a questão da mulher Mbyá-Guarani lhe fomenta muitas perguntas, como: “Por que só eu trabalho com isso? Ou só eu me comunico mais com não indígenas?” As indagações de Patri confirmam o que Ana Carvalho e Vicent Carelli me informaram em novembro de 2016, durante meu trabalho de campo no VNA: ela “é a única realizadora realmente mais substantiva formada pelo VNA”, a mulher indígena mais atuante no Brasil dentro do cinema indígena. Seja por ter uma produção audiovisual pulsante, seja por sua presença em diversos festivais de cinema, como convidada e/ou apresentando filmes em exibição, seja pelos prêmios que já ganhou.

Ocupando quais espaços? A participação das mulheres indígenas no cinema brasileiro de maior bilheteria.

Algumas pesquisas recentes sobre as relações entre cinema, raça, etnia e gênero no Brasil apontam uma ausência de mulheres e homens indígenas na produção audiovisual nacional. A fim de situar o contexto no qual mulheres indígenas fazem seu cinema – onde o cinema indígena se insere – e o contexto onde se encontram asiáticas, negras e brancas, analisei algumas pesquisas: uma publicada em 2016 pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) e as outras em 2014, 2016 e 2017 pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Elas explicitam a alarmante desigualdade de representação de gênero e etnia/raça no audiovisual brasileiro. Friso que possuo compreensão acerca das dimensões marcadamente distintas, violências e oportunidades a que essas diferenças étnico-raciais entre as mulheres aludem. Entretanto, nesse momento, coloco-as em diálogo para criar um panorama das desigualdades entre etnia/raça e gênero no cinema brasileiro.

As pesquisas da Ancine e do Gemaa demonstram que homens brancos são os maiores detentores do poder de fala e de representação. Ou seja, “o fato de os filmes assumirem que há maior interesse em narrativas de homens e de brancos em relação às associadas a mulheres e pessoas não brancas é fator preocupante” (CANDIDO; CAMPOS; FERES JÚNIOR, 2016, p. 18), particularmente se se levar em conta “a intensa participação do Estado no financiamento da produção cinematográfica nacional”. Diante disso, o substrato das pesquisas também corrobora a hipótese da criação de narrativas conservadoras, estereotipadas e preconceituosas. Sendo assim, de acordo com as pesquisas, “o cinema de maior público tem raça, gênero, região de procedência e orientação sexual: branco, masculino, sudestino, algumas vezes nordestino, mas mais europeu do que nortista ou sulista, e heterossexual” (CANDIDO; CAMPOS; FERES JÚNIOR, 2016, p. 19).

A forma simbólica dessas construções do “outro” apresenta uma versão de Brasil eivada de sexismo, branquitude e preconceito regional. Por conseguinte, o cinema brasileiro apresenta desigualdades de raça e gênero, com intensa sub-representação de mulheres negras (CANDIDO; CAMPOS; FERES JÚNIOR, 2016) e, complemento, com uma também intensa sub[1]representação de mulheres e homens indígenas. Portanto, aludindo à imagem que abre o item anterior, se homens, brancos, heterossexuais, com estéticas mais europeias que brasileiras, são os cineastas, o que eles mostram? Se os filmes que chegam à maioria da população são realizados por eles e eles escolhem mostrar esse discurso, quem eles invisibilizam? O quê e como mostram? Pode o homem branco calar-se? O que o cinema nacional de mercado mostra e reproduz quando se trata de mulheres e homens indígenas, principalmente, é uma total aniquilação. Uma total invisibilização. Estar dentro da grande bilheteria ou não, isso quem decide são as/ os próprias/próprios cineastas; a questão é como essas imagens são e foram construídas ao longo da história brasileira. Mulheres e homens indígenas devem reivindicar o espaço televisivo, cinematográfico e da internet como quiserem.

Fazer filmes e fazer-se: o modo de ser cineasta

Diante destas/es indígenas que produzem cinema, a sociedade ocidental moderna depara- se com o outro que constrói suas próprias imagens e se empodera de seus discursos através do audiovisual. Os filmes produzidos pelos próprios indígenas, muitas vezes, já não se restringem a abordar cultura indígena, mas também questionam e reclamam determinados “valores”, como afirma Caixeta de Queiroz (2004) em texto no site do VNA:

Nunca foram fáceis a execução desta proposta e a sua aceitação pelo público. De um lado, temia-se que os índios (mais uma vez) não fossem capazes de dominar a linguagem audiovisual e oferecessem um produto de baixa “qualidade” e, de outro lado, temia-se que o vídeo (a imagem, a televisão) introduzido no seio das comunidades indígenas funcionasse como um vírus desintegrador de uma tradição cultural original. […] Na verdade, os dois temores escondiam e escondem um velho preconceito sempre presente na sociedade ocidental, no caso, a sociedade brasileira, que, ao mesmo tempo, alega a incapacidade “natural” dos índios (para o pensamento e as artes) e afirma como universal os valores e a estética do homem branco.

As/os índias/índios tornam-se menos “indígenas” por utilizar aparatos contemporâneos como a internet e celulares com câmeras, por cursar faculdade, morar na cidade ou ainda realizar filmes? O professor e realizador audiovisual Ashaninka Isaac Pinhanta (2004) responde: “tem gente que diz: ‘Ah! Vocês querem ser branco, né?’ Todo o povo hoje domina a tecnologia do japonês, mas o japonês não é brasileiro, nem brasileiro é japonês. É a mesma coisa”. Bruno Huyer (2014) conclui em sua pesquisa com as/os Mbyá do Cone Sul que “é mais fácil transformar- se em onça do que em branco, pois o risco que se corre com esse último parece ser aquele do etnocídio” (2014, p. 4, grifo nosso). Como certa vez me disse Patri: “A gente se olha como a gente tá indo através da tela… A gente se olha como um espelho”.

Em algumas das minhas visitas na aldeia, Patri me explicou que “imagem” em Mbyá-Guarani é ta’angá. A imagem na cosmologia Mbyá chama ao que se vê, Jaexá va’e, é tudo o que enxergamos. Nhande Retere jaexá va’e é o que nós vemos no nosso corpo. A partir do que vemos e de como criamos o que vemos, de que maneira Patri narra sua história através de seus filmes? Como é sua relação com a aldeia na condição de cineasta? Essa relação perpassa seu eu-mulher e seu eu-professora Mbyá?, ao pesquisar a autobiografia e o sujeito histórico indígena, questiona que “nunca um indígena brasileiro decidiu-se ou foi solicitado a relatar sua vida, e não o mito ou a história do seu povo” (SÁEZ, 2006, p. 181, grifo do autor). Recentemente, os livros A queda do céu (KOPENAWA; ALBERT, 2015) e Ailton Krenak (COHN, 2015) vieram à luz para suprir um pouco esta lacuna biográfica. Sáez (2006) salienta a importância das memórias pessoais e do discurso biográfico para a compreensão da noção de pessoa, partindo da experiência individual para a coletiva, por meio de uma grande espiral retórica. Citando Viveiros de Castro (1986) em sua análise do xamanismo Araweté, Sáez afirma que, embora o discurso seja regido por um “eu”, o enunciado pode estar emprestando sua voz a uma longa série de outros; ele aborda também o conceito de divíduo criado por Strathern (1988), que descarta um sujeito separado das relações: “as coisas não se dizem em absoluto, mas de alguém para alguém por alguém” (SÁEZ, 2006, p. 188). Sáez exemplifica, através das práticas xamânicas de seus interlocutores, que em seus depoimentos dificilmente se dedicavam a formular as convenções ou as origens míticas de um paradigma xamânico. Centravam-se nos percalços do aprendizado (memória individual), via de regra frustrado pelas tensões entre o aprendiz e o iniciador; muitas vezes um pai lamentava esse mesmo desinteresse no aprendizado que o filho lamentaria mais tarde (SÁEZ, 2006). Segundo Krenak, em entrevista para a revista Carta Capital (MILANEZ, 2015):

Através da trajetória dessas pessoas a gente conta a história de vida desses sujeitos, mas também de seu grupo e do contexto que eles viveram e tiveram que se reorganizar para viver a vida. (…) As biografias são fundamentais para a gente continuar tendo a presença desses indivíduos coletivos. Digo coletivos porque eles não viveram para eles sozinhos, mas para suas famílias, seus povos. Não são histórias e memórias de indivíduos, mas de coletivos.

A relação de Patri como cineasta perpassa seu eu-mulher e seu eu-professora e é uma das múltiplas relações criadas através das imagens. O que a imagem e o cinema estabelecem como relações, mesmo em suas cadeias produtivas ocidentalizadas, também opera, mas de outra forma, na imagem e no cinema indígena, pois essas relações formam opiniões, constroem conhecimento e trajetórias, visibilizam lutas e pessoas. Ao abrir o espaço cinematográfico do outro, muitas perguntas ainda ecoam. Que tipo de recepção se espera das/ dos cineastas? A quem se destina os filmes indígenas? O que caracteriza o cinema indígena? Um indígena fazendo um filme, isso é o cinema indígena? Muitas delas nem mesmo Vicent Carelli consegue responder de pronto. Em nossa conversa no VNA, perguntei a ele, “O que é o cinema indígena?” Ele me disse: “Eu não sei”. Crendo que esses olhares descortinam algo sobre nós mesmos (não indígenas) de maneira muito autoral e inspirada no texto de Gallois e Carelli (1995), indaguei-o sobre esse possível “algo”. O que ele acha que fascina tanto os não indígenas na linguagem cinematográfica realizada pelas/os indígenas e se há, na visão dele, alguma contribuição dessa linguagem e das maneiras de filmar para o cinema ocidental:

O cinema indígena, por um lado, abre um mundo um pouco hermético para nós, de uma maneira muito de dentro e isso para quem se envolve é fascinante. Acredito que seja isso que as pessoas sentem. Agora, se o cinema indígena contribui para uma linguagem cinematográfica… Bom, eu nunca foco muito no cinema. Eu acho que o que toca são as questões mais amplas de formação de opinião, conhecimento e da visibilidade mais do que se as/os cineastas indígenas estão contribuindo. E, é evidente que estão. É uma atividade ainda embrionária, existem poucos cineastas com uma afirmação de estilo.

Cinema indígena feminino e representações

Bahri (2013), autora de estudos pós-coloniais, concebe “representação” como um termo com múltiplas e, às vezes, confusas conotações. Ao significar presença, reprodução, semelhança, formação de uma ideia na mente ou até mesmo presença por representação no sentido político de um “falar por”, o termo está no centro de muitos debates da teoria pós-colonial e/ou feminista. Então, Patrícia fala por outras mulheres indígenas e pelas mulheres Mbyá-Guarani? Não há homogeneidade, pois trata-se de várias etnias, contextos sociais e trajetórias de mulheres indígenas que não possuem esses espaços de fala. Essa representação específica não se aplica a uma “cultura” inteira ou às “mulheres indígenas”, mas tais espaços precisam existir.

A câmera – mesmo que seja de um telefone celular – pode ser uma arma poderosa nessa disputa midiática, um recurso cada vez mais necessário aos povos indígenas para lutar e resistir. O uso da câmera pelas populações indígenas também é um meio para difundir a diversidade cultural, para a própria etnogênese na importância da manutenção das tradições e do vídeo como grande aliado nesse processo (CAIUBY NOVAES, 2000), bem como para o controle sobre a sua autoimagem atrelado ao combate às imagens estereotipadas que foram e são construídas por não indígenas. Nesse sentido, Patri revela o motivo que a levou a usar a câmera e a ser cineasta:

Para pensar e refletir sobre a nossa própria história. E assim, quebrar um pouco aquelas coisas-ruins que a gente escuta por aí das pessoas ignorantes que falam com seus comentários ou críticas preconceituosas quando a questão é indígena. Uma ideia que a maioria dos não-indígenas tem sobre NÓS é que o índio é uma coisa só, compartilhando a mesma cultura, as mesmas crenças, a mesma língua, enfim… E aí vem estas frases mais famosas… “ainda são” e os que “não são mais”, “muita terra para pouco índio”, “índio verdadeiro”, “o índio sem roupa, na selva, em plena harmonia com a natureza”, o “índio autêntico” é o índio de papel da carta do Caminha. Essa imagem foi CONGELADA, na cabeça dessas pessoas e, quando o índio não se enquadra nessa imagem, quando aquele índio que está hoje no meio das cidades seja para estudar, trabalhar, REIVINDICAR os direitos ou simplesmente sair da aldeia para comprar as suas necessidades, provoca estranhamento.

 

Aí logo vem essa: “Ah! Este aí não é mais índio, já está civilizado”. Muitos políticos para impedir a demarcação das terras ou simplesmente violar os direitos indígenas, usam esse argumento preconceituoso, “esses aí não são mais índios, já estão usando roupas, óculos, relógios, computador, telefone, televisão, rádio, já estão falando português”, etc. Os EX-índios.

Complemento a fala de Patrícia e a concepção de Bahri (2013) com a de Lasmar, quando afirma que “o nativo sul-americano foi transfigurado numa categoria genérica vazia, sem existência histórica, sujeita à investida de representações equivocadas e estereotipadas” (1999, p. 145). Há uma continuidade dessas representações, que percebem as mulheres indígenas como pessoas carentes, necessitadas de assistência, sem opções e agências próprias. Lasmar discorre ainda a respeito das surpreendentes distorções contidas na visão do senso comum para o “ser índio”, visão que se potencializa e assume uma especificidade quando essas distorções incidem sobre as mulheres indígenas:

A imagem que delas se veiculou e a forma como foi pensada sua contribuição para a formação histórica da sociedade brasileira, por exemplo, são casos bastante reveladores da pregnância do estereótipo modelando a figura da índia genérica. Em pesquisa recente sobre esse tema, examinei uma das representações das mulheres indígenas mais difundidas na história do Brasil, aquela que as reduz a seres de sexualidade priápica. Como desdobramento inescapável desse tipo de aproximação, a experiência humana e social dessas mulheres foi obscurecida em detrimento de uma idealização insensível à diversidade étnica e cultural dos povos indígenas da América do Sul (1999, p. 145)

Frequentemente é atribuído à mulher o lugar de indivíduo passivo em relação ao fazer artístico, dentro de uma relação ativa/passiva. No artigo “Visual pleasure and narrative cinema”, Laura Mulvey discorre a respeito da mulher como imagem (indivíduo passivo) e do homem como portador da câmera (indivíduo ativo): “num mundo governado por um desequilíbrio sexual, o prazer do olhar foi dividido entre ativo/ masculino e passivo/ feminino” (1975, p. 444, tradução nossa). É claro que, no contexto indígena, essas relações de gênero são muito mais complexas e o cinema nacional é muito diferente do cinema hollywoodiano, por exemplo. Todavia, o cinema nacional de mercado ainda representa a ótica dominante. Exercitemos então, nosso “olhar opositivo” ao qual hooks (1995) se refere, um olhar que resiste a essas imagens tão depreciativas da mulher em extremos, ora fetichizada e hiper-sexualizada, ora casta e submissa.

Desse modo, o conjunto de saberes construídos sobre a/o outra/outro constitui um campo de imagens. Esse mesmo olhar ativo/ passivo pode ser deslocado aos textos missionários, por exemplo. Os jesuítas representavam as mulheres indígenas do Cone Sul como “bestas de carga”, “escravas”, “maternais”, “passivas”, “tímidas”, “dóceis”, “injustiçadas”, “frágeis” (BIRABEN, 2012; GÓMEZ, 2012; LASMAR, 1999), colaborando para a constituição de um retrato único. Um olhar que “coincide em descrever (construir) uma feminilidade indígena curiosamente familiar para os cânones do cristianismo sobre a mulher, o matrimônio e a família” (GÓMEZ, 2012, p. 33, tradução nossa).

Na revisão bibliográfica sobre mulheres indígenas Guarani e do Cone Sul, muitas antropólogas que pesquisam mulheres indígenas aludem à questão da representação política e falam dessas imagens construídas. Reiteram que essas representações imagéticas contribuem para a construção de imagens sociais. Quando falam da imagem, as antropólogas referem-se ao imaginário construído: “recuperar e contextualizar as imagens construídas sobre as indígenas” (GÓMEZ, 2012, p. 28, tradução e grifo nossos); “Estas representações resgatam a imagem de uma mulher como um ser débil, passivo e submisso, mas também acrescentam outras que a retratam como marginal e pobre” (BIRABEN, 2012, p. 241, tradução e grifo nossos); “de maneira geral, essa idealização se torna efetiva através de duas vertentes, uma ‘positiva’, a propalada imagem do índio como ‘reserva moral da humanidade’, outra negativa, que o recobre com as tintas nefastas do ‘bárbaro’” (LASMAR, 1999, p. 145, grifo nosso). Assim sendo, temos um aspecto epistemológico demasiado complicado, uma vez que as imagens (representações que constituem imaginários) são construídas e expressam – novamente, assim como no cinema – o olhar ativo do homem europeu colonizador que generaliza por meio de estereótipos “típicos”. Então, a utilização da autoimagem e da autorrepresentação auxilia no combate à reprodução desse padrão ocidental e hegemônico. São imagens que combatem imagens.

As representações contemporâneas das mulheres indígenas no cinema e a agência feminina nos diversos níveis de atuação e nas diferentes instâncias “indicam os novos posicionamentos e configurações do feminino e do masculino no universo indígena, tanto no interior como fora do espaço comunitário” (SACCHI; GRAMKOW, 2012, p. 17). As mulheres indígenas que mostram os mundos visualmente por meio de uma “sensibilização audiovisual” (MARIN; MORGADO, 2016, p. 91) se afastam dessa visão pejorativa e exótica (“do outro”) por meio da apropriação de seus discursos, sendo sua própria agência artística na produção de uma cinematografia indígena feminina. Contudo, como indaga Bentes (2004) em texto nos arquivos do VNA, “o lugar do realizador é um lugar de poder. E isso fica claro na pergunta: por que só homens filmam? São poucas as realizadoras indígenas”.

O número reduzido de mulheres realizadoras parece indicar uma possível dificuldade das mulheres indígenas – bem como de mulheres negras e brancas, cada qual com seu recorte social –, ao se apropriarem de uma atividade “artística” para além daquelas destinadas às suas dinâmicas tradicionais. Tendo em vista que, ao ser designadas para tal realização, agrega[1]se também a elas um status político e social na relação de convívio na aldeia (TURNER, 1992), no caso específico das mulheres indígenas, por meio do empoderamento étnico e de gênero através das mídias audiovisuais. Portanto, usar a câmera é portar uma forma de poder, é adquirir, como afirma Turner, um status social e político. Ou seja, no limite, portar a câmera é também assumir um papel de liderança. Durante meu trabalho de campo, Patrícia afirmou que se considerar uma liderança na aldeia por conta dos projetos audiovisuais que desenvolve e por ser professora. Principalmente na escola, com as/os alunas/os, ela disse sempre pensar nas palavras que usa e desejar ser um espelho para as crianças.

Como dito, a utilização e reinvenção da linguagem audiovisual para suas próprias demandas é poder. Poder como capacidade e possibilidade de agir e falar. Poder da invenção, produto da experiência coletiva. Poder para as mulheres indígenas e suas demandas políticas e estéticas. Segundo Geertz (1997), as relações são antes de tudo combativas. Patri está agindo ela mesma a favor de suas reivindicações, contrapondo-se ao pressuposto lugar de passividade que lhe “figuram”. Os campos simbólicos de poder e do cinema, como sistema de representação, podem ajudar a romper os silenciamentos e as opressões resultantes das marginalizações impostas às mulheres indígenas? Segundo Patri, em texto postado no Facebook:

Muito dos trabalhos realizados pelos indígenas cineastas atualmente, dos documentários entre outros tipos de mídia, é justamente para ter um olhar diferente com a questão indígena. Tem vários filmes por aí para assistir e entender melhor quem somos nós (indígenas) e que problemas enfrentamos todos os dias (PINHEIRO, 2017, p. 56).

Diante da problemática de invisibilização e violências contra os povos indígenas no Brasil, qual seria então a especificidade da mulher indígena cineasta se comparada à dos homens indígenas? Com um recorte de gênero, o que Patri e outras realizadoras indígenas produzem vai além da própria linguagem cinematográfica e artística. Assim como não é “o branco” que representa a/o indígena, não é o homem indígena que representa a mulher indígena, mas é ela que se faz agora protagonista de sua autoimagem e história. Esta pesquisa não pretende ocupar o lugar binário dos padrões ocidentais, segregando mulheres e homens indígenas. Pretende, sim, visibilizar o cinema e algumas produções de imagem feitas por mulheres indígenas. Por isso, compartilho da ideia de dualidade elucidada por Segato, dentro do processo fílmico entre homens e mulheres indígenas:

O gênero, assim regulado, constitui no mundo[1]aldeia uma dualidade hierárquica, na qual ambos os termos que a compõem, apesar de sua desigualdade, têm plenitude ontológica e política. No mundo da modernidade não há dualidade, há binarismo. Enquanto na dualidade a relação é de complementaridade, a relação binária é suplementar, um termo suplementa o outro, e não o quer dizer, de representatividade geral, o que era hierarquia se transforma em abismo, e o segundo termo se converte em resto e resíduo: essa é a estrutura binária, diferente da dual. (SEGATO, 2010, p. 122)

Adiciona-se à ideia de dualidade o conceito de complementaridade entre mulheres e homens Mbyá-Guarani, que se põem em relação e se complementam na produção e na reprodução da vida social (PISSOLATO, 2006). Para Ciccarone, a etnologia Guarani desenvolveu-se a partir de “categorias hierarquizadas, dicotômicas e morais (sagrado/ profano; vida extraordinária/ vida ordinária; mente/ corpo, masculino/ feminino)” (2001, p. 82). Patri, por diversas vezes, afirmou não haver desigualdades na criação de homens e mulheres Mbyá, mas sim distinções. Entretanto, ambos os grupos são criados para cuidar da casa, das crianças e do relacionamento afetivo. Em uma de nossas vídeo-cartas, abordamos muito esse tema. Feitas essas ressalvas, é preciso dizer ainda que a importância do diálogo entre etnologia e estudos de gênero não está ancorada unicamente na desconstrução de um bias masculino, mas principalmente em visibilizar novos olhares e trajetórias de vida, dantes ocultas na antropologia e nas imagens:

Isto posto, olhando para clássicos da etnologia guarani e clássicos dos estudos de gênero, percebemos que na perspectiva dos estudos iniciais da antropologia feminista, a literatura sobre os Guarani poderia ser lida atribuindo o espaço privado/ doméstico à mulher, aproximando-a da natureza; e o espaço público ao homem, aproximando-o da cultura, dado que conforme mencionei acima, a tarefa de falar com interlocutores externos e a resolução de assuntos políticos mostra-se como uma tarefa masculina, enquanto as mulheres estariam mais vinculadas ao processo de criar crianças, que se dá no âmbito privado. […] Nesse sentido, a etnologia guarani soma-se à crítica feminista, mostrando que se a natureza, para os Guarani, não é desprovida de agência, tanto masculinidades quanto feminilidades são produzidas em relação à natureza – uma natureza que é também cultura. Isso significa não apenas repensar a associação mulher/ natureza, mas reconsiderar uma ideia de natureza sem agência. Do mesmo modo, nos permite analisar o espaço doméstico e os modos de criar criança sob outro prisma, sem reduzi-los a uma esfera de subalternidade (JESUS, 2015, p. 34-36).

Autoras como hooks (2000) e Simone de Beauvoir (1949) afirmam que demandas individuais – por exemplo, aquela referente a salários iguais para as atrizes de Hollywood, que ganham menos que seus pares – são facilmente respondidas e cooptadas pelo capitalismo. As lutas coletivas são o que verdadeiramente o ameaçam e ameaçam as reproduções das opressões. Assim, elas aproximam-nos, de fato, da liberdade. Portanto, as demandas coletivas feitas pelas mulheres indígenas importam e podem auxiliar no combate a essas opressões. Nas palavras de Caiuby Novaes (2000), “a imagem é importante porque torna visível, e, sabemos o quanto a visibilidade é um dado fundamental para a identidade de povos ou segmentos populacionais que pertencem a uma minoria”. Visibilizar a produção audiovisual de Patrícia e sua trajetória é trazer à luz o que ela quer mostrar, é expor a invisibilidade e as imagens de representação violenta das mulheres indígenas no Brasil. De acordo com Marin e Morgado, a visibilidade ainda faz parte “da agenda da grande maioria dos povos indígenas e o sucesso de sua produção audiovisual (filmes e informações pensadas para a web) depende desse complexo movimento, ancorado nas vicissitudes políticas e no modo como cada sociedade reage a elas” (2016, p. 106). Patrícia é a protagonista deste artigo porque, além de ser a mulher indígena cineasta mais atuante do Brasil no que concerne à produção audiovisual, à participação em festivais de cinema e às premiações de seus filmes, sua produção artística tenciona tanto os modos de produção quanto os modos de ver dos “donos do olhar”.

A palavra é pensadora. O falar poético Mbyá-Guarani é traduzido em imagens por uma mulher Mbyá através de um espaço de expressão, o cinema. Tudo que Patri expressa através das imagens é penetrado pela cosmologia Guarani, suas “imagens sagradas”. Dessa forma, é na busca pela representação de um outro imaginário de mulheres indígenas, que as mulheres indígenas demarcam seu espaço nas telas. Sendo assim, uma das ferramentas para investigar a participação das mulheres indígenas na liderança visual é compreender a correlação entre o universo comunitário e aquele exterior a ele, nos quais se inter-relacionam o bem comum e as demandas individuais. Aproximando-se, nesse sentido, do slogan feminista “o pessoal é político”, “temas privados aparecem, para elas, inter-relacionados a problemas de ordem pública” (SACCHI; GRAMKOW, 2012, p. 20). Ainda de acordo com Sacchi e Gramkow, é a partir desta perspectiva que se compreende a dinâmica da mobilidade indígena “como articuladora de redes de parentesco, fluxos de bens e pessoas situadas entre comunidade e cidades. Deste modo, há uma correlação entre modos de vidas distintos, comunitário e citadino, e os valores tradicionais e os da modernidade” (2012, p. 121).

De acordo com essas ferramentas e com o fato de que as mulheres ocupam diferentes espaços e vivenciam diferentes experiências, estabelece[1]se uma compreensão do perfil de liderança indígena feminina desejável. Uma liderança que compreenda a inter-relação dentro/ fora e público/ privado, e a interculturalidade como conceito para apoderar-se de suas reivindicações e das tecnologias. De acordo com texto de Patrícia no Facebook, habita-se múltiplos mundos sem deixar de ser quem é. Assim, ela se faz:

Quando veem que nós mantemos a nossa cultura, continuamos com os nossos saberes, espiritualidades, ciências, arte, música, entre outras, nas aldeias, outra ideia surge: “as culturas indígenas são ATRASADAS”. Nossas culturas não são atrasadas como muita gente pensa. Acho que as pessoas, no entanto, confundem muitas vezes a cultura ocidental que na estrutura social ocupa uma maior parte, por ser uma maior população em relação às culturas indígenas, dando a falsa impressão de que a cultura branca é superior. Também faço a pergunta: existe EX-português, EX-espanhol, EX-alemão…? Só por usar coisas que não foram inventadas na própria cultura? Por exemplo, muita gente aqui no Brasil usa algum tipo de roupa, entre outras coisas, que foram inventadas em outros lugares e mesmo assim continuam sendo “brasileiros”! Então, os NÃO-INDÍGENAS podem usar coisas produzidas por outros povos mas nós índigenas, quando fazemos exatamente igual, usando as mesmas coisas que vocês, deixamos, então, de ser índio? Quer dizer que nós não temos direito de entrar em contato com outra cultura? E o que é a interculturalidade então? É justamente o resultado da relação entre culturas, da troca que se dá entre elas. A outra ideia também que falam por aí é que “os índios fazem parte do passado”, nós não estamos somente na história, estamos aqui LUTANDO desde 1500 até hoje pelos nossos direitos, para garantir a nossa sobrevivência, garantir o futuro das crianças e até agora conseguimos muito pouco. Por último, quero dizer aos não-indígenas que dizem não considerar a existência do índio na formação de sua identidade, há 500 anos atrás, não existia aqui o povo chamado “brasileiro”. Esse povo foi formado nos últimos cinco séculos! O começo do destruimento e a usurpação da América pelos europeus e espanhóis que com suas dominações políticas e militares foram dizimando os demais povos. Depois, as imigrações de outros povos vieram para aumentar a população, os colonizadores tiraram tudo o que era nosso e se identificaram como superior. No entanto, estamos aqui vivendo, aliás sobrevivendo, porque para viver realmente em harmonia com a natureza precisamos de terras, matas, animais e tudo foi tirado da gente.

Referências bibliográficas

BAHRI, Deepika. “Feminismo e/no pós-colonialismo”. In: Estudos Feministas, Florianópolis, v. 21, n. 2, maio-ago. 2013, p. 659- 688.

CAIUBY NOVAES, Sylvia et al. (Org.). Escrituras da imagem. São Paulo: Edusp, 2004.

CAIUBY NOVAES, Sylvia. Quando os cineastas são índios. 2000

CAIXETA DE QUEIROZ, Ruben. Entrevista com Vincent Carelli. Forumdoc.BH.2009. [Catálogo],p.149-160, 2009. Disponível em: . Acesso em: 20 maio 2017.

CARELLI, Vincent. Um novo olhar, uma nova imagem. In: CARVALHO, Ana; CARVALHO, Ernesto; CARELLI, Vincent (Org.). Vídeo nas Aldeias: 25 anos. São Paulo: Itaú: Natura, 2011.

CICCARONE, Celeste. Drama e sensibilidade: migração, xamanismo e mulheres Mbya Guarani. 2001. 468 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Programa de Estudos Pós- Graduados em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2001.

GINSBURG, Faye. Screen Memories: Resignifying the Traditional in Indigenous Media. In: GINSBERG, Faye; ABU-LUGHOD, Lila; LARKIN, Brian (Ed.). Media Worlds: Anthropology on New Terrain. Oakland, CA: University of California Press, 2002. p. 39- 57.

GÓMEZ, Mariana D. Bestias de carga, amazonas y libertinas sexuales. Imágenes sobre las mujeres indígenas del Gran Chaco. In: SACCHI, Ângela; GRAMKOW, Márcia M. (Org.) Gênero e povos indígenas. Rio de Janeiro: Museu do Índio/ GIZ/Funai, 2012. p. 28-49.

GONZALES, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. In: Revista Ciências Sociais Hoje, São Paulo, 1984, p. 223-244

hooks, bell. Art on my mind: visual politics. New York: New York Press, 1995. Tradução de Manoela Afonso. Disponível em: . Acesso em: 20 maio 2017.

HUYER, Bruno N. Transformação, diferença e os juruá: reflexões antropológicas entre os Mbyá- Guarani no Cone Sul. 2014. 60 f. Monografia (Bacharelado em Ciências Sociais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014.

LASMAR, Cristiane. “Mulheres indígenas: representações”. In: Estudos Feministas, Florianópolis, v. 7, n. 1 e 2, 1999, p. 143-156.

MILANEZ, Felipe. “Se o bicho avançar, vamos encarar de pé”, diz Ailton Krenak. Carta Capital, 10 abr. 2015. Disponível em: . Acesso em: 3 de Junho de 2020.

MULVEY, Laura. Visual Pleasure and Narrative Cinema. Screen, v. 16, n. 3, p. 6-27, Autumn 1975.

O SEGUNDO SEXO 25 anos depois – entrevista com Simone de Beauvoir. [20–?]. Disponível em: . Acesso em: 5 nov. 2016.

PINHANTA, Isaac. Você vê o mundo do outro e olha para o seu. Vídeo nas Aldeias, abr. 2004. Disponível em: . Acesso em: 20 de maio de 2020.

PINHEIRO, Sophia. A imagem como arma: a trajetória da cineasta indígena Patrícia Ferreira Pará Yxapy. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Programa de Pós[1]Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Goiás, Goiás, 2017

PISSOLATO, Elizabeth P. A duração da pessoa: mobilidade, parentesco e xamanismo Mbya (Guarani). 2006. 366 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Programa de Pós[1]Graduação em Antropologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

SACCHI, Ângela; GRAMKOW, Márcia M. (Org.). Gênero e povos indígenas. Rio de Janeiro: Museu do Índio/GIZ/Funai, 2012.

SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida e Marcos Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010.

TRINH, Minh-ha T. Diferente de você/ Como você: mulheres pós-coloniais e as questões interligadas da identidade e da diferença. Tradução de Augusto de Castro. Forumdoc.BH 2012 [Catálogo], Belo Horizonte, 2012. p. 201- 206

Ir para o conteúdo