Escrito por Renato Vallone, montador e realizador do subúrbio do Rio de Janeiro. Montou diversos filmes premiados em festivais nacionais e internacionais, a exemplo de Cinema novo (L’Oeil d’or-Cannes-2016), Humberto Mauro (Veneza-2018), Sertânia (Ficviña-2019). Em 2021, dirigiu o curta-metragem Centelha. Integrou o corpo docente da Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro/BR), e o corpo docente da Escuela Internacional de Cine y Televisión – EICTV (Cuba). Assina a montagem do filme A queda do céu dos diretores Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha.

Considerado o primeiro registro do movimento das massas na imagem do cinema, “La Sortie de l’Usine Lumière à Lyon” (1895), dos irmãos Lumière, retrata a saída dos operários de uma fábrica em Lyon.

A imagem dos operários saindo da fábrica apresenta uma coletividade em movimento, um momento de transição do espaço fechado de trabalho para o espaço social, aberto.

Se “cada cabeça é um quilombo”, como anunciou a grande Beatriz Nascimento (1989), “aquilombar-se” é fazer o movimento de buscar o quilombo, formar o quilombo, tornar-se quilombo.

Ela nos diz: “O quilombo surge, do fato histórico que é a fuga. É o ato primeiro, de um homem que não reconhece que é propriedade de outro.”

Aquilombar-se, então, é o ato de assumir uma posição de resistência contra-hegemônica a partir de um corpo político. Através do espírito de resistência e autonomia dos povos, sugere a ação de se unir e formar uma comunidade forte e solidária em resposta às opressões estruturais. Aquilombar-se é fazer povo.

Se o filme dos irmãos Lumière documenta a especificidade da vida dos trabalhadores através de um aparato simbólico do poder, de quem detém a câmera, trazendo à luz uma imagem total sobre relações de classe, a Revolta dos Palmares, liderada por figuras como Ganga Zumba e, posteriormente, Zumbi dos Palmares (que tem como data simbólica da sua insubmissão frente às posturas coloniais o dia 20 de novembro de 1695, quando foi capturado e morto, ou seja, 200 anos antes da câmera de cinema existir), traz à luz uma imagem total de que, antes de se pensar nas relações de classe, é necessário se pensar (e se posicionar) nas relações de raça.

A resistência do Quilombo dos Palmares evoca um outro cinema, um novo paradigma da imagem, a partir do resgate histórico anterior à revolução industrial, onde fazer filme deveria ser, antes de tudo, aquilombar-se. Ou seja, enfrentar e resistir hegemonias para elaborar autodeterminação, liberdade, invenção e perspectivas fora do escopo do poder gerado por aqueles que sempre mantiveram e mantêm os aparelhos de produção de memória/história sob seus domínios.

Assim como para os operários, sair da fábrica representa um momento de liberdade do controle industrial, resistir em contato com a memória ancestral implica na criação de espaços de liberdade e autonomia, simbólicos ou materiais, onde fazer comunidade em cinema significa fortalecer e prosperar fora dos sistemas opressivos.

Tudo isso para dizer que, no filme “Ôrí”, documentário brasileiro lançado em 1989, dirigido por Raquel Gerber, existe esse gesto. O filme é uma obra significativa no cinema brasileiro e seu enfoque histórico é a luta dos movimentos negros no Brasil, evocando questões de identidade, resistência e consciência racial. Montado por Renato Neiva Moreira, com assistência e contribuições de montagem da fabulosa Cristina Amaral, “Ôrí”, que significa “cabeça” ou “origem” em iorubá, apresenta uma invenção que entrelaça a história do movimento negro no Brasil com a trajetória pessoal de Beatriz Nascimento (1942–1995), uma importante historiadora, poetisa, militante e intelectual negra brasileira.

Apesar de às vezes soar monocórdio, onde há um esgotamento formal no uso da voz de Beatriz como base narrativa que ancora a montagem ágil, um tanto telegrafada em seu ritmo, com efeitos ditirâmbicos (comprometendo a proposta de impactos sensoriais para dar lugar à densidade informacional), o filme na sua totalidade é um poderoso ato de cinema como ferramenta contracolonial. Contraria colonialidades, conscientiza, ilumina e faz emergir raízes de nossa terra firme “Pindorama”, muitas vezes soterradas ou esquecidas pelo ilusionismo das saídas de fábrica onde seus donos são, quase sempre, aqueles que também possuem e fazem das suas câmeras, chicotes.

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