Crítica escrita por Mateus José.
Sinopse: Em 1940, duas crianças do povo indígena Krahô encontram, na escuridão da floresta, um boi perigosamente perto da sua aldeia. Era o prenúncio de um violento massacre, perpetuado pelos fazendeiros da região. Em 1969, durante a ditadura militar, o Estado brasileiro incita muitos dos sobreviventes a integrarem uma unidade militar. Hoje, diante de velhas e novas ameaças, os Krahô seguem caminhando sobre sua terra sangrada, reinventando diariamente as infinitas formas de resistência. Prêmio de Melhor Equipe da mostra Un Certain Regard no Festival de Cannes 2023.
A Flor do Buriti foi rodado durante quinze meses, em quatro aldeias diferentes, dentro da Terra Indígena Kraholândia, e teve a equipe dividida entre indígenas e não indígenas. No documentário, acompanhamos a luta do povo Krahô por suas terras, ao longo das gerações, seus ritos, sua forte ligação com a natureza e com o espiritual, além de sua resistência política por reconhecimento e respeito enquanto povos originários. Por exemplo, um dos planos iniciais do filme mostra duas crianças Krahô em cima de uma árvore, encurraladas por um boi que está prestes a entrar em sua aldeia. Esse plano é uma representação imagética da relação dos Krahô com os fazendeiros — ou cupe, como são chamados por eles —, que tentam constantemente entrar para roubar animais e revender no mercado ilegal, ou tomar à força as terras dos povos indígenas, ignorando a demarcação de terras.
O filme enfatiza diversas vezes a consciência, e até a urgência que o povo Krahô tem de participar dos atos do Acampamento Terra Livre, o maior encontro anual de povos indígenas do país. Todavia, por vezes eles se mostram temerosos de deixar sua terra e suas famílias, mesmo que por pouco tempo, além de demonstrarem uma falta de confiança no governo e no próprio órgão indigenista oficial do Estado brasileiro, a FUNAI. Um exemplo desse receio é a jovem Jotàt (Solane Tehtikwyj Krahô), que passa a ter problemas para dormir quando sua mãe, Patpro (Ilda Patpro Krahô), anuncia que irá para os atos em Brasília: “lá vai ter muito cupe”.
Durante os diálogos, os personagens sempre trazem à tona os eventos do passado e a importância que eles têm para a preservação do presente e a prosperidade do futuro. Reforçam a importância das raízes e da terra, pois não é uma batalha de ódio ou poder, é uma batalha para resistir. Em uma cena ao final do segundo ato, a tribo está reunida para a Festa do Kêtuwajê, então Hyjño (Francisco Hyjño Krahô), tio de Jotàt, conta sobre a origem da celebração, que servia para treinar os jovens e torná-los guerreiros. Ele conta, em detalhes, sobre o massacre ocorrido em 1940, no qual o cacique foi assassinado, mesmo sem oferecer resistência e pedindo por uma solução pacífica, tudo porque os fazendeiros queriam ampliar a área de suas fazendas.
Em uma das cenas mais singulares do filme, há um diálogo entre Hyjño, a professora Débora e Patpro, no qual Hyjño conta sobre uma vez em que uma escola visitou a aldeia e, entre outras coisas, os alunos brancos pediram para tocar em Hyjño e em outros indígenas que ali estavam, como se fizessem esforço para acreditar que eles eram reais ou que eram pessoas como eles. Mesmo tendo sido os primeiros a pisar na terra, por vezes têm seu valor e sua história rejeitados e esquecidos. Essa cena só reforça a importância de uma educação decolonial, em prol de que essas crianças não cresçam e façam a manutenção da violência e injustiça que já é praticada contra os indígenas. Por vezes, vemos o portão que dá acesso à terra do povo Krahô, e a sensação é de que eles estão sozinhos, por isso têm que se unir, pois, fora das cercas, todos os outros são cupe.
Quanto aos aspectos técnicos, a direção, assinada por João Salaviza e Renée Messora, demonstra sensibilidade e respeito ao priorizar planos longos que contemplam a fala dos personagens. Além disso, o roteiro é assinado por integrantes do povo Krahô, que também estão no filme. Ele é bem conciso e, apesar de densas, as duas horas de filme são envolventes. As histórias prendem a atenção e ajudam a contextualizar a cultura indígena ao espectador. O elenco é composto, em sua maioria, por integrantes do povo Krahô, que passam muita verdade e emoção em suas atuações, com destaque para Francisco Hyjño Krahô, que transmite sabedoria e emoção em sua performance. O desenho de som de Edgar Feldman é imersivo e faz com que o espectador sinta-se dentro do filme, seja com os sons da floresta e dos animais até com os sons da aldeia. Na cena do Massacre de Quarenta, isso fica evidente: além do peso das imagens, os sons de tiros, pessoas correndo e gritando, tornam a cena ainda mais agoniante e pesada. A direção de fotografia, assinada pelo também diretor Renée Messora, rouba a cena. Sua fotografia é repleta de sensibilidade, beleza e harmonia. Há uma passagem em que a câmera faz um travelling vertical da árvore do buriti até o rio onde Hyño está pedindo conselhos aos espíritos ancestrais. Durante o movimento da câmera, vários vagalumes saem da árvore e iluminam a floresta. A sincronia e suntuosidade dos elementos fazem a cena parecer que foi combinada de tamanha perfeição, natureza e espiritualidade presentes.
No terceiro ato do filme, acompanhamos a viagem de Patpro e Hyjño para o Acampamento Terra Livre em Brasília, onde observamos a organização de vários indígenas de diversos povos e diversas tribos, além de discursos inflamados exigindo a demarcação das terras e reconhecimento dos direitos dos povos originários. O filme encerra-se com o nascimento do filho de Hyjño, uma cena que traz esperança à realidade tão dura, apresentada no decorrer do documentário, ao som de uma música com os seguintes dizeres: “chama outro, mais um, mais um guerreiro”.
Sumariamente, A Flor do Buriti é um filme visualmente impecável, um estudo epistemológico e uma narrativa carregada de reivindicações políticas. Ao terem voz, os Krahô não apenas reivindicam seu lugar, como retomam sua autonomia, sua história e, consequentemente, sua identidade. Como foi dito durante o Acampamento Terra Livre: “essa carta está escrita com a caneta do branco, mas está assinada pelo espírito de todos os povos indígenas”.