Em princípio, a primeira coisa que vemos e ouvimos no filme é uma grande casca de árvore, úmida, que se funde com diversas outras imagens de uma floresta. Sonoramente, o vento soprando, animais grunhindo e um estranho ruído ficam cada vez mais altos nos nossos ouvidos, querendo dizer algo. A seguir, diversos planos surgem com diferentes épocas da mesma natureza: 1590, 1932, 1893, 1677, 1492, todos carregados de uma alta saturação de cores e iluminação.
Você já parou pra pensar como era o lugar que morava há cinquenta, cem ou milhares de anos atrás? Porque, após diversos planos mostrando o mesmo ambiente em épocas diferentes, finalmente, um avião passa e a câmera corta para dentro do Aeroporto de Guarulhos, que está coberto por uma grande sombra, e o ruído que incomodava era, na verdade, a turbina do veículo.

Nessa conjuntura, o território que se conhece hoje como Guarulhos, município da Região Metropolitana de São Paulo, um dia já foi área de diversos povos indígenas, dentre os quais podemos citar a etnia Guaramoni ou Maramomi, na qual formavam a grande nação Guayanazes, que, por muito tempo, dominou o estado paulista. O nome Guarulhos vinha de guarú, adjetivo para quem tinha a barriga muito grande, e o termo era utilizado, pejorativamente, para comparar os primeiros habitantes da área, que eram baixos, fortes e troncudos, como o peixe guaru. Logo, o longa retrata a vida de várias pessoas que, de alguma maneira, estão conectadas a essa região, em especial Alê (Larissa Siqueira), que tem a origem, sua e dos seus familiares, ligada a esse local construído em cima da antiga terra.
Trazendo e contrastando toda a dinâmica do movimento com a logística de um aeroporto, o primeiro vislumbre do recinto que temos são diversas malas passando, rapidamente, sem ao menos ver quem está segurando o objeto ou indo viajar, afinal, é um lugar de mudanças e passagens, onde dificilmente iremos parar para refletir. Sejam mudanças físicas ou psicológicas, esse é o tema do filme. De avião, a pé ou até com a própria cabeça, os personagens (que são mesclados ficcionais ou reais) estão há todo tempo mudando de perspectiva, pensamento, vontades, e Alê, em especial, possui uma relação de muita sensibilidade com a natureza, marcada pelos acessórios que coleciona e divide com sua companheira Sylvia (Patrícia Saravy). Como qualquer obra que retrata essa grande diferença do urbano e rural, enquanto temos uma mata aberta, com alto som repleto de elementos naturais, a cidade de Guarulhos é representada com altos contrastes e sombras, além da fotografia fria que rodeia todos que moram ali.

Recapitulando, há diversas fusões de imagem aqui, no sentido técnico de fazer cinema, mas também no poético, afinal, se estamos falando de um confronto entre rural e urbano, as imagens lutam entre si, junto da parte sonora, para ver quem atinge o pleno domínio. Não só elementos de ancestralidade indígena, como também afro-brasileiros são resgatados. Alê e outros personagens, movidos pela pesquisa, curiosidade e, acima de tudo, o dever de revogar um espaço que é deles por direito, mesclam uma linguagem que, se durante o filme nos remete a algum documentário proposto pelos diretores Flora Dias e Juruna Mallon, concretiza como tal, com todas as palavras, ao fim, ultrapassando todas as barreiras do ficcional que fomos levados a crer durante o começo da projeção. Entrevistas e registros acontecem por parte de um grupo de adolescentes curiosos pela história do local que moram. Além disso, a montagem é imprevisível e pouco preocupada com uma construção de narrativa tradicional, captando momentos que podem soar vazios de conteúdo, mas cheio de detalhes que podem causar reflexão a quem assiste. O recurso de fundir imagens completa a própria poesia da obra de querer a apropriação de um ambiente tirado de outras pessoas a partir da violência, como quando Alê, sua filha, Sylvia e seus colegas de trabalho saem para um parque serrano e, surpreendentemente, temos um corte para uma porção gigantesca de terra na pista de pouso dos aviões até — e por fim — outro corte para Alê sentada, pensando sobre.
“A minha mãe também teria preferido assim, sem caixão, sem tijolo. A mãe dela foi enterrada assim”
Certamente, a engenharia de som opta por uma experiência de mostrar os sentidos que cercam os ambientes em que vivemos acima do diálogo, ou seja, algumas falas foram gravadas na pós-produção — é preciso considerar a situação da Pandemia de Covid-19 —, dando estranhamento em algumas cenas, mas permitindo o espectador de perceber mais o que está ao redor daqueles personagens, elevando a uma experiência sonora mais certeira.

Sendo assim, O Estranho finaliza, literalmente e figurativamente, como um retrato de reflexão, mas com resistência acerca dos processos que rodeiam a História humana. A obra transcende o que conhecemos de cinema ficcional, indo para caminhos ditos documentais para reforçar a sua tese de que não existe natureza sem mudança, levando o espectador nesse caminho de pensar por outro ponto de vista, saindo do papel passivo de receber as imagens mastigadas. Por séculos de exploração e opressão, o filme expõe que os verdadeiros “barriga grande” foram os que tiraram e expulsaram grupos dos seus espaços de origem para a margem e, nesse contexto, a reapropriação se faz necessária, acontecendo desde a mais bela paisagem mostrada aqui, até as crenças ainda banalizadas e ditas imorais na nossa sociedade, usando a imagem e o cinema como memória e patrimônio. No final e começo de tudo, a natureza sempre irá seguir seu curso igual um grande rio “e é essa a sabedoria de todo um destino que faz com que os rios corram […] eles decidem por onde correr e enfrentar o que já sabem”, encerrando a projeção.