Durante o último mês de abril, o Centro de Artes UFF apresentou ao público o projeto Flores que Vencem Canhões. Nele, as programações do Teatro, Galeria e Cinema foram pautadas por um recorte temático e representativo das efemérides dos 60 anos do Golpe civil-militar no Brasil e dos 50 anos da Revolução dos Cravos, em Portugal, que marcaram profundamente a história e as sociedades dos países. Com cinco apresentações no palco (entre peças e tributos musicais), uma exposição de Belas Artes, com curadoria de Alan Adi, e uma mostra de longas-metragens, com curadoria de Kamilla Madeiros, nós fomos lembrados – e aqui eu peço licença para usar o mesmo raciocínio da professora Denise Tavares em um dos debates – de que a barbárie retratada por cada um dos filmes exibidos não é uma opção a ser seguida, apesar das contradições que surgirão em qualquer governo democrático.
Foram cinco sessões no Cine Arte, de obras que ou fazem aniversário este ano – Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, Iracema – Uma Transa Amazônica (1974), de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, e Cabra Marcado Para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho -, ou lançam um olhar contemporâneo sobre o passado, seja como uma forma de resgate de memórias e/ou de confissão. Retratos de Identificação (2014), de Anita Leandro e Pastor Claúdio (2017), de Beth Formaggini, se encaixam no último caso. Bem, foi depois do debate de Retratos (2014) que perguntei a Kamilla se ela aceitava gravar uma entrevista para o OCA-UFF, e ela felizmente disse sim. Neste dia 07/06, portanto, o Dia Nacional da Liberdade de Imprensa, convido a todos para conferirem esta breve conversa sobre temas como a Ditadura e a cultura popular; protagonismo feminino de nomes como o de Elizabeth Teixeira, militante pelos direitos dos trabalhadores perseguida durante o regime militar, no cenário nacional, e a linguagem cinematográfica de Eduardo Coutinho.
Como estou entrando no território da editoria de Memória, Preservação e Cultura Audiovisual, pedi uma mão para Vanessa Rodrigues me ajudar com a publicação do texto, revisando e produzindo uma leitura crítica do resultado final. Obrigado mais uma vez, Vanessa, e vamos a entrevista:
Eu gostaria de te agradecer mais uma vez por aceitar o convite para a entrevista, em nome do Observatório de Cinema e Audiovisual da UFF, e pedir para você começar se apresentando.
Obrigada, Marco Antônio. Espero poder contribuir. Eu me chamo Kamilla Medeiros, nasci no interior da Paraíba, no sertão, e me criei desde os 5, 6 anos de idade em Fortaleza, no Ceará. Foi lá que tomei gosto por cinema. Minha primeira sessão foi nessa minha cidade natal, durante umas férias. Então, você imagina: um cinema de rua, no interiorzinho da Paraíba. Eu acho que isso tem muito a ver com o que eu vou fazer muitos anos depois, na minha pesquisa de mestrado, que é retornar a esse território, a esse espaço, para falar de cinema.
Eu sou formada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza, e me mantenho no campo desde então. É na Escola de Comunicação aqui da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro] que eu vou fazer o mestrado em Comunicação e Cultura. Eu vim para cá com esse objetivo bem específico de estudar Eduardo Coutinho, e tive a grande sorte de ser orientada pela professora Consuelo Lins[1], que trabalhou com ele; que era amiga dele. Então, tudo foi se encaminhando.
Esse meu gosto por documentário, pelo cinema brasileiro, se deve muito também a um curso que fiz em Fortaleza, no Porto Iracema das Artes, que é uma escola de artes da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, gerida também pelo Instituto Dragão do Mar. Esse é um espaço bem importante para a cidade e para o estado. Eu comecei a fazer cineclube em 2017 por lá. Todo esse contato com a realização, com cineclubismo, e depois com a pesquisa, fortaleceu ainda mais o meu elo com o cinema brasileiro.
Pelo menos desde 2016/2017, eu venho me dedicando a esses estudos, a essas práticas. Eu sinto muita falta de fazer cineclube. Eu fiz uma última mostra em 2020, durante a pandemia, sobre cinema brasileiro. Foram oito encontros, oito sessões virtuais, oito debates, que estão disponíveis no YouTube da Escola do Porto Iracema. Essa foi uma pequena mostra chamada Fabulações no Real, em que eu convidei várias pessoas – especialistas, pesquisadores, realizadores e realizadoras -, para falar dos seus filmes. Era desde um filme de 2020 até um filme de 1974, começando com Partida [2020], do Caco Ciocler, e finalizando com Iracema – Uma Transa Amazônica [1974], do Orlando Senna e Jorge Bodanzky.
Então, só para amarrar direitinho essa apresentação: eu sou uma grande interessada em documentário e em cinema brasileiro, que encontrou no Eduardo Coutinho esse parceiro que me trouxe até aqui, e a gente vai falar um pouquinho dessas minhas viagens.
Como surgiu o convite para você trabalhar na Flores que Vencem Canhões? E, a seguir, você poderia falar também sobre o processo de produção desse recorte, que fechou em cinco filmes?
Foi um convite da Lívia Cabrera[2]. A gente se conheceu no momento em que estávamos na representação discente da SOCINE[3]. Entre 2021 e 2022 fomos eleitas, nesse contexto da SOCINE, participamos por dois anos da representação. Aí naturalmente fomos nos conhecendo: ela está em Niterói e eu estou aqui no Rio.
De repente, recebo um convite dela: “olha, Kamilla, vai ter essa efeméride dos 60 anos… dessa descomemoração da Ditadura Militar, então lembrei de você. Você que gosta tanto de cinema brasileiro, que trabalha com isso, que faz curadoria”. E não demorou muito para que eu apresentasse a ela e ao professor Leonardo Guelman[4] um panorama do que eu estava pensando.
60/40 anos, as pessoas gostam de dizer e é importante frisar aqui, porque Cabra Marcado Para Morrer [1984, de Eduardo Coutinho], que foi o primeiro filme a ser exibido, completou 40 anos [em 2024]. É um filme que, por sua força, por todo o contexto que a gente estava falando agora [antes da entrevista ter início], não tinha como não passar.
Então, foi uma curadoria bem simples de a gente pensar, porque eram filmes que já estavam fazendo os seus aniversários, marcando época. Cabra [1984] foi o primeiro, depois tivemos Deus e o Diabo na Terra do Sol [1964], do Glauber [Rocha]. Este fazendo 60 anos. E também [selecionei esta obra] pela sua força, pelo seu significado. O filme [Deus e o Diabo na Terra do Sol, 1964], por mais que não fale especificamente de ditadura que nem o Cabra [1984], que nem os outros, foi feito nesse contexto, e existe ali uma crítica social muito forte. Eu acho que coube muito bem.
A gente tinha a expectativa de realizar um debate com o Othon Bastos e o Walter Lima Jr[5] [no sábado em que Deus e o Diabo na Terra do Sol, 1964, foi exibido], mas, por ocasiões de força maior – por questões de saúde dos convidados -, não deu certo. Teria sido ótimo. Mas eu fiquei até surpreendida, porque acho que o mais impressionante no Centro de Artes da UFF, e isso tem muito a ver com a Universidade, é a qualidade do público, é a qualidade de debate do público. E as pessoas ficam [depois do fim dos créditos]. As pessoas participam, tem curiosidade. Isso me surpreendeu desde a primeira sessão, com a sala quase lotada em Cabra Marcado Para Morrer [1984], em uma segunda-feira, de noite, no início do mês.
Também tivemos os 50 anos de Iracema – Uma Transa Amazônica [1974]. Quer dizer, é uma escadinha de filmes que foram fazendo os seus aniversários e que não só marcaram sua época como também o público. Você estava lá. Você percebeu as pessoas mais velhas, que viveram isso, dizendo: “Ah, eu lembro daquela sessão [em que assistiram aos filmes em suas épocas de lançamento]”. São obras importantes para a nossa formação de público. Filmes que passaram muito em cineclubes.
Eu já passei, inclusive, Cabra [1984] mais de uma vez no circuito cineclubista. O Iracema [1974], eu passei na ocasião dessa mostra da pandemia [Fabulações no Real]. Deus o Diabo [1964] foi a primeira vez. E os demais filmes são mais recentes, de duas mulheres na realização. No caso, o Retratos de Identificação [2014] e o Pastor Cláudio [2017].
Teve esse recorte também, de trazer as mulheres. E são duas mulheres realizadoras que eu conheço, a Beth Formaggini[6] [de Pastor Cláudio] e a Anita Leandro[7] [de Retratos de Identificação]. A Anita, inclusive, foi minha professora. Fiz um curso da Beth lá no Ceará. Então, eu sabia a força desses filmes.
Essa facilidade de entrar em contato, de fazer a produção, eu já carrego desde a época do cineclube. Juntou com o nome do Cine Arte UFF, e foi tudo muito mais fácil. Eu fico feliz que tenha dado certo. Fico feliz, sobretudo, que as pessoas tenham tido interesse em um assunto tão pesado e difícil, que é a Ditadura Militar.
Aproveitando que você está falando sobre cineclube: você coloca no seu relato Road movie acadêmico: trilhando os passos de Eduardo Coutinho no sertão paraibano, publicado na Rebeca[8], em 2022, que os debates após a sessão são “como uma espécie de laboratório, onde podemos fazer as nossas experiências com os objetos de estudo” [NASCIMENTO, 2022, p. 322]. Nos debates que você mediu ou acompanhou, houve alguma outra questão que surgiu, seja através dos pesquisadores, seja através do público, que considerou interessante para o seu desenvolvimento acadêmico?
Teve. Não é incomum, infelizmente, em alguns contextos de cineclube, e até de mostras de cinema, de às vezes você fazer grandes preparativos e ter um público pequeno ou que não participa. É isso que eu te falei agora há pouco, de quando eu chego para a primeira sessão e vejo um público grande, que participa. Um público muito variado. De pessoas mais velhas, que viveram aquilo na sua juventude; de gente que está iniciando agora a faculdade e que está ali curioso para conhecer aquela cinematografia. Então, quando eu digo isso no artigo, é porque eu acredito muito na força desses encontros. E perceber pessoas interessadas, em 2024, em cinema brasileiro, lotando uma sala… Eu acho que isso dá um significado a mais para o que a gente faz.
Eu me lembro, agora: além de você ter falado comigo, e eu acho que isso não é à toa, também teve uma moça que, depois da sessão… Eu acho que foi de Deus e o Diabo [1964], não me recordo bem. Mas essa moça chegou para mim, com o caderninho nas mãos, bem tímida, e falou assim: “não consigo parar de pensar na Elizabeth Teixeira[9]. Eu vim em todas as sessões”. Caramba. Foi a primeira vez que ela assistiu Cabra [1974]. Então, ela foi arrebatada por aquele filme, por aquela personagem, por aquela mulher.
Esse tipo de coisa que acontece, essas mágicas, esses encontros em cineclube, em uma roda de cinema, são incríveis. E quando eu digo que são laboratórios para os objetos de estudo é porque eu fiz isso para pensar o Coutinho no projeto de pesquisa do mestrado – na mostra Fabulações no Real, que felizmente deu certo. Mas também não só nesse sentido acadêmico. Também no sentido humano do afeto, sabe?
Você vê que basta uma pessoa se afetar pelo seu trabalho, pelo cinema, mais do que a mim ou ao Centro de Artes UFF, pelo cinema… Uma pessoa que se afeta com aquilo ali, uma pessoa que seja, eu acho que já faz a mostra cumprir um papel bacana. Não só de formação de público, mas de tocar alguém. De desejo de linguagem, de estética, de história de vida, ético. Alimenta a alma.
Continuando nesse ponto, então: como você coloca, a arte pode ser uma ferramenta utilizada para diversos fins, como conscientização, formação de público, resgate histórico, produção de narrativas relevantes socialmente, enfim… Mas eu gostaria de perguntar para você, e de forma mais ampla e se é que essa é uma questão, como isso pode ser direcionado para o público fora do eixo cinéfilo, intelectual? Como a arte pode alcançar mais pessoas? Essa é uma questão extremamente relevante para o país [a Ditadura Militar], que é um algo pesado, e, como você bem disse, ainda assim toca essas pessoas.
Você fala dessa mostra, em específico, ou de cinema brasileiro em geral?
Produção de mostras. Não sei, se você quiser falar sobre essa mostra pode ser um ponto para se iniciar, mas no geral também.
É curioso, porque ontem mesmo, à noite, eu estava conversando com um amigo sobre isso. Estávamos comentando sobre como o público, ou melhor, os públicos, no plural (já que não tem como dizer que existe uma coisa só), estão mal-acostumados, programados a sair de suas casas. Aí você tem uma série de variantes, desde o preço do ingresso até outras questões políticas mesmo, de acesso à cultura. Mas, de uma forma geral, eu acho que as pessoas estão muito preguiçosas.
Não tem curiosidade de conhecer coisas novas e sair de sua zona de conforto. E não estou falando isso só de cinéfilo não, tá? Eu estou falando isso de pessoas que nem sempre vão ao cinema, mas que poderiam se abrir a novos ares. [Elas dizem] “Ah, eu vou ver aqui no Instagram do canal tal, no YouTube do canal tal, qual o filme da vez e vou lá assistir”.
Ao mesmo tempo, precisa existir esse movimento de partida dos distribuidores, dos exibidores, e aí eu vou incluir também os cineclubes, mas sobretudo falo da cadeia comercial, dos responsáveis pelo cinema. Como eles trabalham o cinema? E estou falando do cinema brasileiro, porque o estrangeiro não precisa [disso], eles pagam e são exibidos no nosso lugar. Eu vou até pegar o exemplo que a gente começou a conversa falando sobre [antes da entrevista]: A Paixão Segundo G.H. [2023, de Luiz Fernando Carvalho], que é um filme brasileiro que tenho acompanhado, porque participei de algumas coisas referente a ele.
Esse debate, por exemplo, eu acompanhei também[10], e é impressionante como que [o longa-metragem] divide o público. Enquanto pessoas amam, outras falam: “Ah, parece um monólogo, parece um podcast, um audiobook”. Meu camarada, o que que você está esperando do cinema? Você quer facilidade, você quer tudo mastigado na sua boca? Clarice a mesma coisa, [mas] para a literatura. Então, as pessoas estão acostumadas a vídeos curtos, acelerados. Tudo muito acelerado, tudo muito cru demais. Ou, talvez, eu acho que cru ainda fosse melhor. Tudo muito processado.
O exibidor, o cineclubista, o pesquisador, o cineasta, o programador, o curador, a gente precisa também fazer a nossa parte e seduzir melhor esses públicos. De cutucar essa curiosidade, de apresentar filmes não só contemporâneos, mas uma cinematografia brasileira já passada. Puxa vida, Pereio[11] morreu ontem [entrevista gravada no dia 13/05/2023]. Quem é esse cara? E aí você vê que ele passa por uma série de filmes. Como você vai instigar pessoas que não são do cinema, que não são estudantes de graduação ou de pós a comparecerem numa mostra do Pereio?
Eu acho que está faltando isso da gente, porque não é só pagar um anúncio no Instagram, sabe? Eu acho que está faltando um trabalho de base, mesmo – pegando aqui esse termo que a gente usava muito no movimento estudantil. De apresentar, seduzir… Seduzir no sentido de chamar essas pessoas para virem ao cinema. E aí, claro, a gente também está lutando com uma série de forças externas. Não basta só o nosso querer, mas eu acho esse passo importante porque estamos perdendo ou já perdemos filmes muito bacanas. Filmes recentes brasileiros que ficam, no máximo, um mês em cartaz e tchau. Demoram anos para serem feitos e é isso, acabou. Eu acho que precisamos de mais. Precisamos de mais debates, precisamos de mais formação, precisamos de mais alianças com as universidades, com os cursos e com as comunidades.
E estudantes de cinema precisam assistir filmes. Parece que não, mas as pessoas não assistem, não leem. É algo em cadeia, sabe? Eu pude dar aula em curso de cinema, de comunicação, desde o começo do mestrado. É uma realidade assustadora. O que está acontecendo? As pessoas não leem! Pessoas que querem trabalhar com cinema, com audiovisual, não assistem, não passam por essa experiência. Então não é querer achar um culpado, é querer achar responsáveis. Cada um no seu eixo.
Os públicos [são responsáveis]. As cadeias de produção de cinema [são responsáveis], e aí você coloca o exibidor, o distribuidor, o cineasta. E também a educação, as formações, que são fundamentais. E tentar sempre tirar [o cinema] desse pedestal, porque já tá tudo muito elitizado, já está tudo muito caro. Seria lindo um cineclube em praça pública aqui no Rio de Janeiro.
E para quem está começando, que é engajado, pensando que o OCA é lido por muitos universitários, quais você pensa que são possíveis caminhos para entrar nesse meio, para produzir cineclubes, mostras, festivais?
Caramba. Eu acho que não tem um caminho só. Cada um vai construindo o seu. Mas, se eu pudesse dizer, seja cara de pau, levante essa bunda da cadeira e vá fazer. Procure por aliados e aliadas, pessoas que também estejam na sua sintonia, porque fazer tudo sozinho por um tempo até tudo bem, se for necessário, mas eu acho que estar em coletivo, pensar em coletivo, debater em coletivo e sonhar em coletivo é importante. Então, eu penso que é procurar a sua turma, ter coragem e disposição, interesse e curiosidade. Sair da sua zona de conforto.
Quando eu estava no curso de cinema lá no Dragão do Mar, lá em Fortaleza, foi isso que fiz. Eu tinha as aulas, ouvia o que os professores tinham a dizer, achava tudo muito incrível, e falei tá faltando um cineclube aqui pra a gente assistir a esses filmes inteiros e conversar sobre eles. Porque não adianta assistir trecho. Ali eu fiz um cineclube e ali foi crescendo. Tinham pessoas que sempre iam.
“Ah, e como é que eu vou divulgar o meu cineclube?” Na época, o Facebook ainda funcionava, criavam-se os eventos e dava certo. Depois veio um pouquinho do Instagram. Mas eu sempre pautava também no jornal. Tentava falar com alguém, pelo menos. É Guerrilha, é militante. Então você nunca tem que pressupor que não vai dar certo. É tentar. Eu acho que é tentativa, erros e acertos, e ter essa cara de pau, porque senão ninguém vai fazer por você. Já somos muito pequenos, então se a gente ficar parado, aí que a coisa não anda mesmo. Para quem está começando, é isso. Eu acho que é procurar esses caminhos possíveis.
O que eu estou relatando aqui é o que eu fiz, mas podem ter caminhos mais fáceis ou mais difíceis, que são igualmente importantes [para] seguir um processo. Ter passado por um processo é importante. E acho que tem que ter um tiquinho de sorte, de encontrar pessoas bacanas, mas aí é a vida que vai ditar.
Bom, retornando um pouco para a questão da presença feminina nos filmes, que quando não está na frente das câmeras está atrás delas… No Cabra Marcado Para Morrer [1984] temos a história da Elizabeth Teixeira, uma líder trabalhista que, para sobreviver a perseguição da ditadura, foi obrigada a se separar dos próprios filhos. Em Iracema [1974], do Bodanzky e do Senna, a gente acompanha uma prostituta, menor de idade, que é inserida no contexto do desenvolvimentismo do regime militar e privada de sua infância por conta disso. Retratos de Identificação [2014], da Anita Leandro, é a história da guerrilheira Maria Auxiliadora, que acabou cometendo suicídio na Alemanha depois de ser perseguida, torturada e exilada do Brasil. Em Deus e o Diabo [1964], como você colocou, por mais que não seja um filme que esteja tratando diretamente sobre a Ditadura… ainda acompanhamos a personagem Rosa, que é uma das mais fascinantes do filme. Ela tem um arco de busca pela sobrevivência, e se vê diante de diversas escolhas difíceis que vão acabar fazendo com que reavalie as suas crenças mais fundamentais. Enfim, você consegue pensar em possíveis pontos de aproximação entre essas personagens femininas que surgem em filmes tão diferentes ao longo de décadas? E, em última instância, essa recorrência foi importante para você na hora de selecionar os filmes?
Eu não selecionei os filmes pensando nisso exatamente. Acho que Deus e o Diabo [1964] foi o que mais saiu [do recorte]. Ele foi exibido por conta dos 60 anos, do contexto do Cinema Novo[12], do Glauber [Rocha]. Os demais [foram selecionados] sobretudo por conta da temática da ditadura, porque essa foi a proposta desde o início. Mas você notou bem agora. Eu acho que não preciso nem dizer muito mais do que isso. A sua pergunta já contém os elementos e eu acho que não é por acaso mesmo.
Em todos esses filmes, de uma forma ou de outra, elas sofrem opressões masculinas, do homem, do patriarcado, da capital, dos poderes. São as relações de poder que as tiram dos seus lugares. Você vê, a Elizabeth fugiu. Por que? Porque o poder dos donos das terras, homens, queria matá-la. Ela tinha que fugir. A Edna, em Iracema [1974], é uma moça sem oportunidade de trabalho e de educação, como muitas outras. Uma hora no filme outra mulher fala assim: “Por que você não para com essa vida? Por que você não fica aqui? Eu te ensino a costurar”, e ela [responde]: “ah, eu não sou boa. A minha vida é o mundo”. Ela é ensinada a isso. A perder a sua vontade, sabe? De saber que ela pode mais.
A Elizabeth sabia que podia mais, pegando essa dupla aqui. Mas a Elizabeth é interrompida, é impossibilitada de fazer mais, porque senão ela perderia sua própria vida. E a Edna é uma menina que teve o seu corpo por muitas vezes, não só comercializado, mas machucado. Ela é jogada de um lado para o outro pelos caminhões. Ela fica como pião, rodando, rodando, e não sai do lugar, por mais que tente. A própria personagem que a Conceição[13], esposa do Orlando, faz no filme fala que ela tenta sair da transamazônica, mas parece que está andando para trás. A Edna não consegue. Tem um campo magnético ali que não permite.E esse campo magnético é tudo isso que a gente está falando: é o patriarcado, é o atraso e a exploração, que faz com que essas mulheres sejam presas no tempo, no espaço, nas suas vidas. Todos os outros filmes também têm isso. É uma mulher que não pode ficar no seu país, que sai e entra em depressão, que se mata em outro país [em Retratos de Identificação, 2014].
Por mais que eu não tenha pensado especificamente nesse recorte com as mulheres, ele está ali porque é algo dado no mundo. Não é por acaso. Mas eu poderia sim, se não fosse pelo recorte da Ditadura, pensar por essa chave. Porque é isso: um filme não é uma coisa só. A gente poderia fazer uma curadoria de filmes com mulheres e esses longas estariam por esse motivo que você citou muito bem.
Eu coloquei Retratos de Identificação [2014] e Pastor Cláudio [2017] na curadoria, no caso deles sim, porque eram duas mulheres diretoras. Eu quis, de uma forma bem mínima nesses cinco filmes, fazer quase a cronologia de uma história que inicia-se com homens.
Claro que já existiam mulheres diretoras nessa época, obviamente. Mas os filmes de sucesso foram esses. Foram os homens [que os fizeram]. E aí tentei mostrar um pouco dessa linha do tempo, de que mais recentemente as mulheres ganharam, ganham e estão ganhando mais destaque a nível nacional, a nível internacional, com uma tomada de posição, mesmo, na política mundial. E, aliás, não são apêndice. De forma alguma. Elas fazem parte, de forma vital e orgânica, desse movimento, desse processo, dessa passagem só de homens tendo destaque para as mulheres também. São filmes que são importantes.
Eu lembro da minha primeira tentativa de fazer mestrado: na prova, uma das questões era para dissertar sobre Pastor Cláudio [2017]. Ou seja, é um filme que está aí, que é sempre lembrado, que tem uma sacada muito forte. Um filme que, não só por ser uma mulher que dirige, faz parte de todo um conjunto.
O Pastor Cláudio [2017] traz, à baila, uma figura, uma personagem desse universo, que é pouco explorada. Não só porque eles não se deixam ser filmados: esse é o método da própria Beth e do Eduardo Passos[14], que entrevistou [no filme], de extrair aquilo que a gente escuta e vê de um torturador. O cinema é potente a esse ponto. De falar dessas monstruosidades, o que é importante, porque nem tudo são flores, mas as flores, como o próprio título geral do evento busca intuir na gente, vencem canhões.
Esse ano eu acompanhei uma apresentação bastante interessante de um pesquisador chileno, chamado Sebastián González Itier[15], na qual ele falou sobre como as emoções do curador e do programador podem influenciar na escolha dos filmes e na montagem da grade de exibição de determinada mostra, festival ou cineclube[16]. E aí o Sebastián trouxe [o dado de] que vários dos profissionais que ele entrevistou primeiro respondiam que não, que isso não era uma questão, que isso era algo que eles sequer tinham considerado. Como se existisse uma espécie de objetivismo de abordagem, sabe? Mas, depois que ele apontava como isso poderia estar acontecendo, essas pessoas respondiam que de fato essa questão é importante. Então eu pergunto: para além de tudo isso que você já trouxe, de algum modo a sua relação afetiva com o contexto do Brasil contemporâneo e com cada um desses filmes se mostraram determinantes para que cada um desses cinco filmes fossem selecionados?
Claro. Não só porque eu já tinha, como falei mais cedo, contato com alguns deles… Então, já havia uma relação amorosa, digamos assim, com os filmes. A gente se relaciona de várias formas. Eu vou dar um exemplo de uma outra mostra que fiz lá em Fortaleza.
Lá existe uma escola chamada Vila das Artes. É uma grande escola. É um grande celeiro de formação no Ceará. E lá tem um curso de cinema e audiovisual que já tem mais de 10 anos, é bem importante e tem alunos do Brasil todo. Eles possuem um programa de cineclube bem interessante; um modelo que poderia funcionar aqui no Rio, por exemplo. A escola abre um edital, chamado Telas Abertas, e qualquer pessoa pode propor uma mostra. Então você, se selecionado, vai passar um mês lá dentro exibindo filmes e tendo a possibilidade de debatê-los. Assim eu o fiz, porque já conhecia [esse processo], e já sabia mais ou menos o que queria.
Respondendo à sua pergunta sobre o que me afeta e de como isso reverbera na curadoria e na programação: 2022, no ano de eleição presidencial, que era muito importante. Eu sentia que devia fazer uma mostra de cineclube e queria fazer uma que pudesse contribuir minimamente durante esse momento de escolha das pessoas, naquele momento de aflição tremenda. Então, eu escolhi vários filmes, e essa historinha tem a ver com Cabra Marcado Para Morrer [1984]…
A mostra se chamava Marcharemos em Nossa Luta: Por um Novo Amanhecer do Brasil[17]. Eu aliei o meu desejo de falar sobre esse momento do Brasil, de uma eleição que poderia dar mais quatro anos de Jair Bolsonaro e, felizmente, conseguimos eleger o Lula… Foram quatro sessões, à noite, na parte de fora da escola.
Tinha um telão com cadeirinhas, mais ou menos no centro da cidade, então qualquer pessoa que passasse ali poderia se sentar. E aí eu exibi na primeira sessão, de novo, Cabra Marcado [1984]. Aliás, esse título, Marcharemos em Nossa Luta, faz a ilusão… Deixa só pegar aqui o livro. É esse livro de Memórias de Elizabeth Teixeira [Kamilla me mostra o livro], chamado Eu Marcharei na Tua Luta!: a vida de Elizabeth Teixeira [Fig. 1].

Fig. 1. Capa do livro Eu Marcharei na Tua Luta!: a vida de Elizabeth Teixeira. Elizabeth Teixeira, João Pessoa, 1997, Editora Universitaria/Manufactura.
Eu quis fazer essa brincadeira no título, porque essa é uma frase real da Elizabeth. Quando ela encontra o cadáver do João Pedro Teixeira, disse assim… Porque ele sempre perguntava se ela continuaria a sua luta caso ele morresse, e ela nunca respondeu em vida. E, ao cadáver, ela fala: “Eu marcharei na tua luta”. Eu quis trazer essa releitura: Marcharemos em Nossa Luta: Por um Novo Amanhecer do Brasil. Temos que marchar por esse novo amanhecer do nosso país, porque do jeito que estava não dava mais.
E aí aconteceu uma coisa. Exibindo Cabra [1984], imagina, na praça, na deriva, ao ar livre: de repente, aparece uma senhora, sei lá, com os seus 70 e poucos anos, senta do meu lado e começa a perguntar “quem é Elizabeth?”, “Onde fica a Galileia?”, achando que a Galileia fosse da Bíblia, mas a Galileia é o Engenho Galileia de Vitória do Santo Antão, Pernambuco. De repente, ela tagarela demais, fazendo mil perguntas, e eu respondendo tudo, chega um amigo, senta do lado dela, e ela começa a falar com ele. Mais ou menos antes do final do filme, ela se levanta, diz que tem que ir embora, mas pega um caderninho e pergunta: “qual é mesmo o nome do filme?” A gente fala. “Minha filha foi Deus que me colocou aqui, porque eu ia votar no Bolsonaro e não vou mais”. Eu até comentei isso no debate no Cine Arte UFF.
Não sei se isso realmente se concretizou. Mas ela poderia não ter dito nada naquele momento. Ela não tinha obrigação nenhuma de ter dito isso para mim, mas ela disse. E se disse, de alguma forma, o filme a tocou. Da mesma forma que tocou aquela moça que se impactou com a Elizabeth, a impactou também. Você imagina, uma pessoa de 70 e poucos anos, que era criança naquela época, não sabia o que era a Ditadura. Ela não sabia que a polícia militar tinha feito o que fez, que o exército tinha feito o que fez.
O cinema também, mais uma vez, tem o seu lado pedagógico, histórico, de mostrar para as pessoas que a vida foi e é assim. Que assim aconteceu. Isso me toca muito. Os afetos, conscientes ou não, movem a curadoria, com certeza. Eu acredito que sim, em maior ou menor grau. E eu não estou falando só de afetos piegas não, mas afetos de uma forma geral. De afetar, de tocar você.
Já que mencionou que o documentário faz essa função de ensinar, você poderia falar um pouco sobre como esse domínio audiovisual chegou até você e se tornou uma questão tão importante? Acho que até você coloca no texto da Rebeca, se não me engano (eu não me lembro se eu li isso na sua dissertação ou na Rebeca), mas você escreve [algo como] “porque Coutinho de novo? Porque o Coutinho, que já foi estudado tantas vezes, e eu me proponho aqui estudá-lo mais uma vez?” Então, você poderia falar de como o documentário chegou até você e por que Coutinho?
Eu conheci o Coutinho de forma muito tardia, em 2017. Lá em Fortaleza, eu cheguei a fazer disciplinas optativas na graduação de cinema documentário. Pode ser que tenha passado algum filme do Coutinho, mas, se assisti, não me lembro. Então, eu digo que conheci ele em 2017. E, quando assisti, senti que era um velho amigo. Sabe quando você topa com uma pessoa e parece que você a conhece há muito tempo? Quando tem uma sensação de familiaridade? E ele já estava morto[18].
Começou com Cabra [1984], que é gravado na Paraíba, no Nordeste. Eu descobri depois que a Elizabeth Teixeira foi praticamente vizinha da minha mãe e da minha avó nesse período que o filme a reencontra, em 81, 82, 83. Ela estava ali por Patos, que é a minha cidade natal e onde o Abraão Teixeira, filho mais velho da Elizabeth, morava. Foi para Patos que ele a levou após o Coutinho a reencontrar em São Rafael, no Rio Grande do Norte.
Isso foi importante, mas também o fato de que o Coutinho é esse cara… Não tem muita explicação, não tem muita lógica, mas é isso: [que] me afetou, [que] me interessou. Achei um cara interessante. E eu nunca tinha dado tanta atenção para o documentário. Gostava, mas eu vi ali no documentário do Coutinho uma porta, uma janela para essa fabulação. Até que fiz essa mostra [Fabulações no Real].
A ficção, que eu continuo adorando, naquele momento me pareceu muito pobre para o que eu estava querendo. Da minha fome. E o documentário estava me alimentando, me nutrindo. E continua. Eu acho o documentário super moderno e experimental. Não que a ficção não seja, mas se eu tivesse a escolha: um bom documentário ou um filme de ficção badalado, eu iria no documentário, com certeza. E o documentário pode também, como Coutinho já fez, flertar com a ficção, e é isso aí. Faz parte. Tem tudo a ver.
Agora, eu não sei se fugi da sua pergunta… Refresca a minha memória, por favor.
Por que retornar a Eduardo Coutinho? E já emendando: você fez essa pesquisa sobre filmes produzidos pelo Coutinho em suas viagens pelo Sertão nordestino, então eu pergunto: quais aspectos de linguagem cinematográfica você identificou na sua dissertação nessas obras?
As pessoas, às vezes, nem percebem como elas desestimulam umas às outras. “Ah, do Coutinho já foi escrito tudo”. Isso também mostra, evidencia, um desconhecimento de que Coutinho é mais popular numa turma, numa bolha. O Cabra Marcado [1984] às vezes fura essa bolha, às vezes não. Coutinho é mais conhecido por um certo público.
E eu pesquisando (eu tive que fazer essa revisão histórica e bibliográfica do que foi feito para tentar inovar, tentar oxigenar aquilo) fui percebendo que existia ali e acolá um capítulo, algumas passagens, alguns trechos e citações sobre o Coutinho no Nordeste, mas não um livro inteiro ou uma dissertação. Existem até artigos, que inclusive eu cito no meu trabalho.
Aí eu pensei: ah, tem aqui tem um espaço para mim. Eu fui, identifiquei esse espaço e me atrevi, para algumas pessoas, a falar de novo do Coutinho. E isso não vale só para Coutinho, vale para qualquer assunto. Imagina, até hoje tem um monte de gente falando sobre Glauber Rocha, Cinema Novo, e vão continuar falando.
Existem casos que são menos discutidos e que merecem mais luz. Mas tudo bem também você estudar coisas que já são muito estudadas, porque você pode encontrar ali na curva, na esquina, algo que ninguém viu, que você viu, pelo seu olhar, pela sua história de vida, pela sua formação, pela sua sensibilidade. Ninguém é proibido. Não pode ser. Eu acho muito delicado você, às vezes até sem querer, falar “ah, de novo?”. Deixa a pessoa fazer. É por conta dela e risco. E eu me arrisquei a fazer e não me arrependo.
Não sei até que ponto você foi na leitura da dissertação, mas, já respondendo a essa nova pergunta, eu queria muito falar no mestrado dessa relação do Coutinho com o Nordeste, principalmente com a Paraíba. Isso é a pesquisa acadêmica se misturando com a vida pessoal.
É só ter o cuidado de tornar isso uma poética, e eu acho que consegui (segundo a minha banca de defesa). Tornar esse relato pessoal numa linguagem, numa poética, e dar esse destaque ao objeto. Eu achava que não era o bastante, para mim, fazer uma análise fílmica. Eu e o filme numa tela, [comigo] escrevendo, e só isso. Plano-a-plano. [Não era o bastante] Pegar autores que estão aqui em cima [Kamilla aponta para a sua prateleira de livros] e ver o que é que tem de Nordeste; falar dos conceitos.
E tá tudo alinhado. Por causa daquela mostra que eu fiz em 2020, numa das sessões (e aí entra aquela questão do laboratório que você leu), de O Fim e o Princípio [2006, de Eduardo Coutinho], que é o filme que analiso na dissertação, a personagem principal, Rosilene Batista, por acaso assiste a live e deixa um comentário. Caramba, né? Olha isso. E não foi só nesse dia. Na sessão do Cao Guimarães, em que exibimos O Fim do Sem Fim [2001], um outro personagem também estava nos assistindo ao vivo.
Eu acho que o que aconteceu também é que as pessoas, na pandemia, estavam caçando o que fazer. E alguém se propor a falar daqueles filmes, que já tinham um tempinho, de quase 20 anos cada um, chamou a atenção. Tem isso também, esse efeito da pandemia contribuiu para que essas pessoas me achassem. Não eu a elas. O cinema me achou, as personagens me acharam, e aí sim eu fui retribuir, eu fui atrás da Rosa nessa viagem de campo. Eu fui aberta a entender o que que se passava ali.
O quê o Coutinho e a equipe sentiram ao pisar aqui? Eu encontrei algumas poucas personagens de O Fim e o Princípio [2006] que estavam vivas e conversei com elas… Mas só o fato de ter ido lá, de ter tido a força desse encontro, já me ajudou muito a entender. Tirar fotos das casas de onde o Coutinho visitou, ouvir a Rosa, os relatos, anotar as coisas.

Fig. 2. Capa do livro Sete Faces de Eduardo Coutinho. Carlos Alberto Mattos, São Paulo, 2019, Boitempo Editorial.
Eu levo aquele livro do Carlos Alberto Mattos, Sete Faces de Eduardo Coutinho, de 2019, que tem uma foto do Coutinho [na capa]… Está aqui na frente, espere aí [Kamilla pega o livro e me mostra; Fig. 2]. Eu levei esse livro pra Paraíba, por causa da foto do Coutinho bem estampada, e aí entreguei para o Zequinha, que era uma das personagens que estava viva. Eu entrego e [digo] assim: “Zequinha, você lembra deste senhor aqui?”.
O Zequinha pega, passa quase um minuto olhando, tentando se lembrar e fala: “ah, ele veio aqui como se não quisesse nada”. E aí você me pergunta o que da linguagem do Coutinho você viu nos filmes que você trabalhou?
Quando uma pessoa dessa, que participou do filme e que não via o rosto desse homem por quase 20 anos, vê e solta a frase: “ah, ele veio aqui como se não quisesse nada”, essa frasezinha besta, e que a princípio poderia passar despercebida, para mim vira um tema. Vira um tópico importante dentro da minha dissertação.
O Coutinho tentava se esvaziar dele mesmo para que as histórias das personagens entrassem nele. Ele falava isso. Esse “ele veio aqui como se não quisesse nada” faz parte do método, faz parte dessa linguagem que ele buscava, dessa postura como documentarista. O documentarista como se não quisesse nada. Mas, ao mesmo tempo, esse ‘não querer nada’ é estar aberto para receber, para acolher, para colher aquelas histórias das pessoas. De uma forma bem simples eu te respondo assim. Por isso o documentário é importante. Eu não gravei essas visitas, mas inscrevi elas na pesquisa. É quase um documentário sobre um documentário.
Qual é o grande diferencial desses “narradores tradicionais”, como você posiciona [na pesquisa], para outros tipos de entrevistados? E como é que eles surgem na obra do Eduardo Coutinho?
Se formos pensar nesses narradores tradicionais como algo em extinção e, de certa forma, estão, mas também não estão, porque a oralidade se transforma e é transmitida, é passada… Eu posso dizer que tenho algo desses narradores tradicionais. Não só do local de onde eu vim, de escutar, de ter estudado o que eu estudei, de lembrar do que eu lembro, de ser sensível a esse tipo de história…. O Coutinho deixou isso registrado em entrevistas, e isso é muito bom.
E ele, desde muito cedo, era um leitor ávido dos romances regionalistas. Dos grandes romances sobre o Nordeste. Desde Rachel de Queiroz[19] a Graciliano Ramos[20], mas também do sertão, e aí pega o norte de Minas, com Guimarães Rosa[21]. O Coutinho era fascinado pela literatura, e vai se encontrar no cinema. Nessas trocas, nessa potência do presente, nesses gestos, na palavra falada ao vivo, que é a matéria com que ele trabalha, na sua frente, aos seus ouvidos… Ele se engraça com essa riqueza, com essa prosódia que sai fácil.
É uma facilidade para se comunicar não só com a palavra, mas com corpo, e isso está no filme. Está no Fim e o Princípio [2006]. Está também no Cabra Marcado [1984]. Está em tantos outros filmes dele. E vale lembrar que Coutinho visitou muito os sertões Nordestinos durante os anos 70, quando ele trabalhava no Globo Repórter. Paraíba, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Ceará também – ele teve várias passagens por esses lugares.
Então, o Coutinho encontra diversas pessoas, e fala de dizeres e saberes. Ele vê ali o que ele chama de “arcaico”. Esses narradores arcaicos que, de uma certa forma, são uma resistência a essa globalização, onde ainda não foram ‘contaminados’ por tudo isso que a gente falou mais cedo.Estamos sofrendo com isso, com esse aceleramento, com esse processamento das coisas. Desde os alimentos até a informação, até a arte. Coutinho estava preocupado com isso e queria fazer cinema, ouvir as histórias dessas pessoas prestes a perder a sua magia. Ele tinha esse pensamento até romântico, mas a vida é muito mais potente e surpreendente.
Eu fui visitar o mesmo local que o Coutinho foi há 20 anos atrás no interior da Paraíba. E ali, você vê, eu conheci os sobrinhos, os primos, a nova geração de crianças. Jovens, com os seus 12, 10 anos. As coisas vão se renovando; as coisas não morrem assim. Morre um tipo de coisa, não ela por completo. As sementes foram plantadas. As crianças lembram das histórias da Dona Mariquinha, da Maria Borges, que era parteira, então algo vai ficando e vai sendo passado.
É importante temer diante de tantas coisas que a gente está falando. Sobre essa superficialidade, mecanização, mas também não podemos ficar parados no tempo, achando que tudo é maniqueísta. “Ah, o celular é ruim, não pode. A internet vai desgraçar a gente, o videogame também”. Isso é balela.
Tem uma hora que o Coutinho fala no Fim e o Princípio [2006], lá na cidade de São João do Rio do Peixes [Paraíba]: “só tinha uma pessoa com televisão [na cidade], e isso fazia com que eles não assistissem e, portanto, que não fossem maculados”. Só que aí, e eu não sei se porque ele esqueceu, se foi um ato falho, se ele realmente quis omitir isso, não se sabe, mas ele se enganou.
Na verdade, quase todo mundo tinha televisão. Quase todo mundo tinha um radiozinho. Então, esse argumento dele não se sustenta sozinho. A oralidade, a riqueza popular, ela vai além desses medos que a gente tem, desses medos de cidade grande. Claro que hoje, se você for lá, todo mundo vai ter uma moto, vai ter um smartphone até mais chique do que o seu, mas as linguagens se transformam. Eu quero ser um pouco otimista. Se a gente ficar sempre pensando no passado intacto, a gente vai enlouquecer.
Bom, era isso. Eu gostaria de agradecer pelo seu tempo em nome do OCA, mais uma vez. Você gostaria de dizer mais alguma coisa?
Agradecer também a você pela paciência de me ouvir e de quem puder depois ler. Essa entrevista vai ser transcrita, né? Então, espero que alguém possa porventura tirar alguma coisa, nem que seja o pensamento “eu também posso fazer”. E que faça do seu jeito. Isso já vai ser muito bom.
E que vá ao cinema. Vá ao cinema! E assista a um filme em casa. Também pode e é importante. É importante para ter repertório. Se não temos repertório, as coisas dificilmente vão se criar sozinhas, porque todo mundo bebe de alguma fonte, mesmo que não perceba. É importante assistir, ler, ouvir, se mexer, dançar, fazer tudo isso aí. Sair um pouquinho de frente dessas telinhas, mas também para as telinhas. É tentar esse equilíbrio para vida mesmo. É isso, obrigada.
[1] Professora emérita da UFRJ, cineasta e pesquisadora de cinema. Autora de livros como “O documentário de Eduardo Coutinho: cinema, televisão e vídeo” (2004) e, em parceria com Cláudia Mesquita, “Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo” (2008), e mais recentemente “Cao Guimarães, arte, documentário, ficção” (2019). Como documentarista, dirigiu Lectures (2005), Babás (2010), entre outros.
[2] Chefe da divisão de cinema do Centro de Artes da UFF, gerenciando o Cine Arte UFF, sala de cinema com perfil universitário e comercial localizada em Niterói-RJ. Pesquisadora, atriz, produtora cultural e servidora técnica administrativa federal, tendo exercido atividades no gabinete da reitoria da UFSCar, gabinete da reitoria da UFF, gabinete da presidência da ANCINE e na coordenação de administração do pessoal da ANCINE.
[3] Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual. Disponível em:<https://www.socine.org/>.
[4] Professor do departamento de Artes da UFF, escritor e pesquisador. Idealizador e coordenador do Projeto Rio com Gentileza, que promoveu duas ações de restauração (em 2000 e em 2010) da obra mural do Profeta Gentileza no Rio de Janeiro. Foi coordenador do curso de graduação em Produção Cultural da UFF (1997-2000), Diretor do Centro de Artes UFF (2001-2006), Curador do Teatro Raul Cortez (2007-2008) e Diretor do Instituto de Arte e Comunicação Social da UFF (2011-2014). Atualmente é Superintendente do Centro de Artes UFF.
[5] Othon Bastos é intérprete da geração do teatro de resistência, tendo fundado sua própria companhia nos anos 1970, produzindo espetáculos representativos do período. Disponível em: <https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa13626/othon-bastos>. Walter Lima Jr. é um cineasta brasileiro. Nascido em Niterói e formado em Direto pela universidade Federal Fluminense (UFF). Dirigiu, entre outros créditos, Brasil Ano 2000 (1968), A Lira do Delírio ( 1978), Inocência (1983), a Ostra e o Vento ( 1997), e Os Desafinados (2008). Disponível em: <https://academiabrasileiradecinema.com.br/socios-acad/walter-lima-jr/>. Em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Othon Bastos interpreta o cangaceiro Corisco, enquanto Walter Lima Jr. trabalhou como assistente de direção e co-roteirista no filme, exercendo este último cargo junto a Paulo Gil Soares e com o diretor, Glauber Rocha.
[6] Beth Formaggini é pesquisadora, diretora e produtora de documentários. Formada em história pela Universidade Federal Fluminense. Dirigiu três longas-metragens documentais: Memória para uso diário (2007); Xingu Cariri Caruaru Carioca (2015); e Pastor Claudio (2017). Trabalhou na produção e pesquisa para filmes de diversos cineastas e documentaristas, em especial Babilônia 2000 (2000), Edifício Master (2001) e Peões (2003), de Eduardo Coutinho. Disponível em: <https://7letras.com.br/Autor/beth-formaggini/>.
[7] Anita Leandro é documentarista e professora da ECO-UFRJ, com diversas publicações em cinema. Sua pesquisa sobre a filmagem da fala e a montagem de materiais de arquivo deu origem ao documentário Retratos de identificação (2014). Desde 2006, filma narradores especializados na obra de Guimarães Rosa. Disponível em: <https://www.pos.eco.ufrj.br/site/corpo_docente_interna.php?id=3>
[8] A Rebeca – Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual. Disponível em: < https://rebeca.socine.org.br/1>.
[9] A paraibana é uma das lideranças camponesas mais importantes da história do país. Foi militante das Ligas Camponesas e até hoje é grande uma referência. Presa várias vezes, perseguida pela ditadura e por jagunços, teve que ir para a clandestinidade após o assassinato do marido, João Pedro Teixeira, em 1962. Após a morte de João Pedro, ela assumiu a presidência da Liga Camponesa de Sapé e depois a Liga no Estado. Elizabeth não se curvou às ameaças dos latifundiários e deu continuidade à luta por trabalho digno, reforma agrária e justiça no campo. Disponível em: < https://memoriasdaditadura.org.br/personagens/elizabeth-teixeira/>.
[10] Exibição do filme no Cine Arte UFF seguida de debate com o diretor e parte da equipe no dia 9 de maio de 2024. A obra é uma adaptação do romance homônimo de Clarisse Lispector.
[11] Paulo César de Campos Velho. Ator. Importante nome do Cinema Novo e do teatro, Pereio cria personagens com um perfil cafajeste e rude trabalhados no prisma do humor. Disponível em: <https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa14480/paulo-cesar-pereio>.
[12] Movimento cinematográfico brasileiro que perdurou entre os anos 1960 e 1970. Entre alguns nomes que o constituíram, estão Glauber Rocha, Ruy Guerra, Arnaldo Jabor, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, entre outros.
[13] Conceição Senna. Atriz de teatro e cinema. Seus trabalhos mais conhecidos no cinema são Iracema, uma Transa Amazônica (1974) e Gitirana (1975). Também trabalhou como documentarista e professora de dramaturgia. Dedicava-se, junto com o marido, o cineasta Orlando Senna, às principais lutas em defesa do audiovisual brasileiro. Disponível em: <https://revistadecinema.com.br/2020/05/morre-no-rio-a-atriz-cineasta-e-escritora-baiana-conceicao-senna/>.
[14] Psicólogo, professor na UFF e ativista na luta pelos diretos humanos. Foi consultor do Ministério da Saúde (MS/BR) para a implantação da Política Nacional de Humanização do Sistema Único de Saúde (2003-2008), realizou consultoria junto ao International Center for AIDS Care and Treatment Program do Mailman School of Public Health da Universidade de Columbia (EUA) (2008-2009) e no Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas do Conselho Federal de Psicologia (CREPOP/CFP) como membro da Comissão ad hoc de Metodologia do CREPOP (2010-2011). Disponível em: <http://lattes.cnpq.br/8055904604783399>.
[15] Doutor em Film Studies pela Universidade de Edinburgo. Professor na Universíade de Los Andes. Tem como foco de suas pesquisas festivais de cinema, cinefilia, curadoria, crítica, distribuição e programação audiovisual. Crítico no El Agente Cine. Co-diretor and co-pesquisador no www.festivalesdecine.cl. Disponível em: https://www.uandes.cl/personas/sebastian-gonzalez-itier/ (tradução e adaptação minhas).
[16] Apresentado no IX Congreso Internacional AsAECA 2024, Buenos Aires.
[17] “Eu exibi Chão [2019], que é um filme da Camila Freitas sobre o MST. Edna [2021], que é um filme de Eryk Rocha sobre uma mulher, uma senhora, que vive à beira da Rodovia Transbrasiliana. E ela vive em ruínas, ela vive em vários conflitos de terra, então também tem essa questão. Cabra [1984], Chão [2019], Edna [2021], e eu finalizei com Lavra [2021], do Lucas Bambozzi, que também fala sobretudo de terra, de forma geral. Eu quis falar sobre esse conflito, de ocupação de território. Todos documentários. Eu sempre gosto de frisar documentário.” – trecho recortado da entrevista.
[18] Morte a 2 de fevereiro de 2014.
[19] Escritora cearense. Imortal da Academia Brasileira de Letras, cadeira 5. Autora de O Quinze (1930), As Três Marias (1939), Dora, Doralina (1975), entre outros.
[20] Escritor alagoano. Autor de S. Bernardo (1934), Vidas Secas (1938), Memórias do Cárcere (1953), entre outros.
[21] Escritor mineiro. Imortal da Academia Brasileira de Letras, cadeira 2. Autor de Sagarana (1946) Grande Sertão: Veredas (1956), Primeiras Estórias (1962), entre outros.