Em março de 2024, eu fui contratado pelo coletivo A Boca Filmes para escrever um texto que comporia o catálogo de uma mostra de cinema. Essa foi a minha primeira experiência relacionada a algo do gênero. O recorte do evento trabalhou com longas-metragens de monstro, das mais variadas décadas e estilos, e, portanto, tais produções precisavam ser apresentadas para o público. Eu acabei sendo sorteado pela Boca com O Planeta dos Vampiros (Terrore Nello Spazio, 1965), filme italiano de Mario Bava. É verdade que não sou nenhum fã do giallo, mas, entre a trinca de grandes nomes que fizeram o subgênero ganhar seu atual status de influência (que, pra quem não acompanha, é bastante grande), o de Bava é aquele pelo qual tenho a maior admiração. Sendo assim, idealizei essa curtíssima leitura comprada, já que me deram somente duas páginas para apresentar algo. Nela, eu parto de um plano da obra para evidenciar a forma com que o diretor trabalha determinado elemento do texto escrito que serviu de base para o filme; sendo este, portanto, uma adaptação. Eu pensei que seria divertido fazer algo nesse sentido, pois minha Iniciação Científica foi em um laboratório de estudos de Letras. Trago, logo abaixo, o resultado dessa empreitada, com a devida autorização do coletivo.
Segue, antes, a sinopse do longa-metragem em questão:
Duas naves espaciais pousam em um planeta hostil, guiadas por um pedido de socorro. As duas tripulações logo são afetadas pela influência maligna do lugar e começam a se virar uns contra os outros.
Em determinada sequência de O Planeta dos Vampiros (Terrore Nello Spazio, 1965), tradução para os cinemas do conto de Renato Pestriniero intitulado Una Notte di 21 Ore (1963), o Capitão Mark Markary (Barry Sullivan) e a tripulante Sanya (Norma Bengell) investigam uma nave alienígena atrás de respostas para os perigos que os ameaçam a vida, até aquele momento possíveis de serem descritos apenas como perpetrados por fantasmas, mortos-vivos e forças ancestrais ocultas. Os personagens são filmados pelo diretor, Mario Bava, adentrando um compartimento do veículo em questão através do plano de estabelecimento da Figura 1. Tratam-se de dois minúsculos pontos à esquerda do quadro, cercados por estruturas geométricas que remetem a composições construtivistas e surrealistas.

Figura 1. Os personagens Mark Markary e Sanya investigam uma nave alienígena num planeta desconhecido. Adaptado de: O Planeta dos Vampiros, Mario Bava, 1965.
O que mais me encanta na obra literária, publicada pela primeira vez na Interplanet No. 3 – Science Fiction Magazine, é a forma com que seu autor rima certo imaginário tecnológico de naves espaciais com o desespero de estar numa situação de morte certa, com a fragilidade de corpos humanos diante de um número de fatores que podem mutilá-los, e a consciência mórbida que possuímos disso. Há, também, uma dose de horror cósmico que surge com o avançar da história, mas adentrar nisso é terreno de spoilers. Máquinas que conduzem nossa espécie pela galáxia são apenas uma desculpa para que indivíduos mais e mais perturbados tenham esperança de salvação, sugere a narrativa — como no diálogo em que Mark diz acreditar que nossas criações podem tirá-los daquele planeta. Por outro lado, a enormidade dos aparatos, seja em tamanho ou em conquista para a ciência, só revela o caráter insólito de toda a viagem.
Por que nossos sonhos precisam se alçar em direção ao vazio do cosmos? Por que nunca deixamos de possuir a mentalidade de crianças, em última análise? As coisas se confundem, em uma dança insinuante entre a racionalidade esperada de uma equipe de exploração e as tradições místicas de qualquer cultura conhecida. Criam-se passagens belíssimas aí. Uma das que mais me arrepia se dá na descrição de Pestriniero dos astronautas olhando para cima e, do solo desértico que lhes serve de prisão, deparando-se com um satélite natural prestes a completar o seu arco:
“Com sua aparência fantasmagórica, a grande esfera flamejante que atravessava silenciosamente o céu daquele planeta desconhecido reacendeu memórias atávicas de divindades inquietantes portadoras de desventuras” (livre tradução minha).
Aquele plano do filme, indicado anteriormente, causa confusão e angústia em mim por conta das precisões absolutas e sem explicação contidas na imagem; algo que também sinto lendo o extrato de conto acima. Triângulos e círculos e quadrados engolem os personagens, ao mesmo tempo em que deslumbram com os seus espectros indecifráveis. Assim, a adaptação mimetiza a literatura, articulando temáticas humanistas e um caráter de natureza indelével, próprio desse mundo ficcional. Diverge bastante a abordagem em cada mídia quando o assunto é desenvolvimento, porém. Una Notte di 21 Ore e O Planeta dos Vampiros constituem, de todo modo, excelentes retratos das visões de seus autores, cada qual se ancorando em valências diferentes do sci-fi para nos conduzir em direção aos horrores do universo.