Crítica escrita por Vinícius Romero.
Lembro-me de ouvir a música Sulamericano, de BaianaSystem, pela primeira vez e pensar, como nunca havia pensado, na cegueira da justiça. Lembro-me de achar um absurdo a justiça ser cega até alguém me dizer que era um caráter positivo e não negativo. Para mim: “Justiça é cega”. Às vezes condena, no Brasil, pelo achismo da autoridade. Pela suposição que é apresentada como certeza. Pelo perigo que nasce não do fato – na real, não nasce. É dito existir. É apresentado pelos olhos que condenam. Pelos olhos que têm, por trás, o preconceito velado. Pelos olhos que não têm venda e escolhem para quem o martelo servirá como silenciamento. Para o meu amigo, de uma maneira mais teórica e menos social, e eu também compreendi: “Justiça é cega”, porque, quando vê, tende a pesar para o lado do mais fraco. E o peso aqui é o da condenação, não do privilégio. A justiça não é uma deusa com a moral íntegra. A justiça funciona, mas nem sempre. A justiça também são os homens com má índole. A justiça também não crê na verdade. Às vezes, a justiça escolhe o melhor contador de histórias para acreditar.
Assistindo a Anatomia de uma Queda, bravejei novamente “JUSTIÇA É CEGA”, com o tom de resignação de quem vê a verdade se transformar em um conceito abstrato. Automaticamente me recordei do dia em que descobri o conceito de Pós-Verdade: um neologismo que busca descrever a situação na qual, “na hora de criar e modelar a opinião pública, os fatos objetivos tem menos influência que os apelos às emoções e às crenças pessoais”. Nesse dia, decidi que tudo estava perdido. Me recordei do mundo em que a verdade ainda existia e não havia entrado em extinção. Lembrei de um mundo onde a verdade não era o que somente fazia sentido, nem muito menos a palavra de quem se achava melhor ou maior. Lembrei do dia em que questionei o porquê 2+2 eram 4 e concluí que, antes mesmo de ser convencional, a verdade um dia já foi abstrata. Não pude, daí, mais me lembrar do dia em que a verdade sempre foi, desde o seu surgimento, verdade, porque esse dia nunca existiu. As verdades se tornaram por insistência. Nunca nasceram exatas. Por que 2+2 não poderiam ser outra coisa, senão 4? Parece até irrevogável hoje, mas um dia foi apenas a conclusão de alguém. Neste caso, Sandra está no tribunal, tornando-se assassina por insistência do desejo de condenar.
Quando a justiça não pode enxergar fatos concretos, como pode haver um culpado? Como pode ser condenada uma mulher apenas pelos achismos e suposições? Quando não enxergamos direito, quando as vistas embaçam e não se pode ver se o barco está vindo ou indo, só nos resta fantasiar, decidir pelos borrões, fazer justiça com o que se quer acreditar. Atirar sem ter certeza de quem está na mira: o conhecido ou o desconhecido. Fazer justiça com o achismo, a fantasia e a suposição é buscar, incessantemente, pela anatomia de uma queda, que, mesmo assim, mostra-se inconclusiva e apresentada de forma a argumentar a favor de diferentes “verdades”, ao invés de compreender e aceitar a impossibilidade de projetar os sentimentos e o conhecimento sobre um homem que já está morto. É justo usar como argumento suposições de quem seria e o que teria feito um morto? É justo contar histórias sobre a vítima como se escrevesse um romance e a conhecesse tão bem a ponto de supor qualquer fato sobre a sua vida? De fato, a cegueira da justiça, nessa história, só permite e deixa parecer ético que a única anatomia a se compreender é a do despencar da vida literal de Samuel. Mas não conseguem compreender. Assim sendo, com a ineficiência e a pouca quantidade de fatos concretos sobre o possível crime, a anatomia mais importante se desvenda e se escancara no tribunal: os pedaços quebrados e inteiros de uma família. A anatomia de todos nós. A anatomia de quem vive e sabe – ou ao menos deveria saber – que não temos controle de nada. Que o caldo entorna. Que o amor acaba. Que os planos não são verdades absolutas. Se escancara, no tribunal, a anatomia do fracasso de um homem que se culpa pelo acidente que transformou a vida do filho. A anatomia do sofrimento de um filho que não enxerga na mãe um monstro capaz de assassinar e nem no pai um provável suicida. A anatomia de um casamento morno e sem salvação. A anatomia de uma queda. A queda dos sonhos e dos contos de fada. A queda dos desejos individuais, pesados, sobre o que era para ser uma vida a dois. A anatomia dos ossos quebrados de um casal que um dia esteve inteiro. Não há como provar nada. Só supor. Supor. Supor. Supor. O tribunal se torna um torneio de histórias e, em dado momento, percebemos que o advogado e o promotor dariam bons escritores de novela.
Sobretudo, Anatomia de uma Queda é uma história contada não através de escritos, mas de imagens e sons. Uma coisa a se recordar sempre sobre a sétima arte é que a sua composição não possui regras, mas sim convenções. O que pode parecer significar algo, pode não ser nada do que pensamos. Como diz algum desses estudiosos famosos de cinema – não me recordo o nome e o Google não me forneceu um –, “os filmes têm tantas interpretações quantos forem os seus espectadores”. Desse modo, parece até que o próprio formato fílmico procura acobertar ou estraçalhar a verdade, trabalhando em prol de transformá-la em algo abstrato. Justine Triet, diretora do longa-metragem, se propõe a contar esse enredo não como alguém que sabe o que aconteceu e, por bel prazer, o esconde, mas sim como quem representa a figura da verdade, não o conceito, mas a personagem quase materializada. Personagem esta que também evolui, assim como qualquer outro, narrativamente. Ela começa vestida do que acreditam que ela seja – única e absoluta. E termina exposta – verdade é apenas um lado da moeda. Toda a história, apesar de eu não acreditar que fora ambientada propositalmente nos Alpes da França para simbolizar o que eu pude abstrair, retratada nesse lugar remoto, cansativo e monótono, é uma imagem insistente da estressante e esbranquiçada vida que Sandra e Samuel já levam há muito tempo. Tudo o que há entre eles é o frio e a aridez. A misé en scene colabora para que possamos sentir que tudo está errado entre os dois. Em como tudo não vai se resolver. O filme é gravado de maneira quase documental. É uma história palpável. Existe uma ausência de música adicional. É crua como a vida.
Justine escolhe, para esse enredo, enquadrar o desespero e o desajeito do corpo querendo se defender. Os planos quase sempre são médios: captam a boca tremendo, as mãos procurando lugar para segurar e o olhar encurralado. E, por sinal, falando em “encurralar”, quando não são médios, os planos estão completamente fechados, sufocando os personagens, principalmente Sandra, mas, além disso, sobre Daniel, emulando a sua falta de visão, nos deixando, assim como ele, sem ver nada real. Sendo assim, ficamos com os sons e com a nossa própria sensação de espaço, ou melhor, com a dele.
Além disso, não poderia deixar de comentar a cena da briga entre Sandra e Samuel. Eles estão na cozinha. Tudo é muito frio: as cores da roupa, a blocagem dos personagens, que estão distantes, a iluminação e a própria paisagem, gélidas. O marido e a mulher, em crise, não são mostrados juntos em quadro. Eles não compartilham mais, apesar de orbitar o mesmo espaço físico, a intimidade que já tiveram – essa, exposta nas “fotos-inserts” do passado. Em dado momento, Sandra, apesar da falta de sincronia, tentando ser amável, se levanta e entra no mesmo plano de Samuel. Ela quer compartilhar esse espaço. Eles ainda são casados. É o único momento dessa sequência em que os dois são vistos juntos. Poderia ser promissor, mas, o homem, quase de maneira teatral, provoca a esposa, que percebe de vez que será, daqui para frente, impossível compartilhar a vida com o cônjuge. Então, Sandra deixa-o sozinho no quadro novamente, agora de vez. A briga cresce e, em um monólogo espetacular, que, segundo palavras da diretora Justine, nada mais é do que uma resposta dela para Charlie, na cena da sua discussão com Nicole, no filme “História de um Casamento”. Sandra diz a Samuel como ela se sente, no presente, em relação à vida a dois. A câmera se adapta à situação e deixa de estar estável, ela se agita. Sandra está num canto da cozinha, berrando. Samuel está do outro lado, ouvindo. A luz branca que entra pela janela e se derrama sobre ele dá ao espectador a sensação de desconforto que a cena pede. A luz estourada e cega que bate na cara do homem é quase como o vômito de palavras duras e sinceras que Sandra despeja. Agora não há nada escondido ou “entalado”: eles estão diante do abismo. Nós, enquanto espectadores, esperamos mais e, então, a diretora do filme, no processo de montagem, decide cortar a imagem ali e retornar ao tribunal, nos deixando apenas com o som do que estávamos vendo. Voltamos ao tribunal e damos de cara com o júri, observando. Estamos olhando para nós mesmos. As expressões deles são as nossas: estamos todos julgando. Tentando entender. Justine é genial ao não dar mais daquele momento, visualmente falando. Em termos técnicos, o CAMPO – o que ela mostrou – é importante por conter elementos visuais relevantes, mas o FORA DE CAMPO é particularmente importante pelo o que ele pode sugerir dentro da narrativa. A sugestão conquista o espectador. Ficamos curiosos com o que a câmera não mostra. Teorizamos através do som que podemos ouvir. A retomada ao julgamento nos lembra: nessa arena nem sempre você vê – às vezes você só ouve e tem que se contentar em prosseguir e chegar a conclusões apenas com isso, seja justo ou não.
“Anatomia de uma Queda julga o ato de julgar”, como diz Isabela Boscov. Repito: como condenar uma mulher sem provas? Como pode ser justo condenar por suposições? Como pode ser justo achar que você pode inventar uma história que faça sentido e, assim, mandar alguém para a prisão para o resto da vida?
Anatomia de uma Queda é um espetáculo. Não é sobre o crime. O primeiro plano do filme é uma bolinha caindo nas escadas e rolando até Sandra, no andar debaixo. Esse filme é sobre despencar. É sobre a vida também dar errado em alguns aspectos. Mas, se tiver de tomar um lado – nós vivemos de tomar lados no dia a dia –, eu acredito na inocência de Sandra. Eu acredito na cegueira da justiça? Depende. Ela não olha e acerta, mas ela também não pode ver e cai no erro de achar que, ainda assim, enxerga todas as coisas necessárias para concluir.