Crítica escrita por João Pedro Santana para a cobertura da 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes.
Sinopse: Em uma pequena comunidade Mbyá-Guarani entre o Brasil e a Argentina, todos conhecem o nome Canuto: um homem que, muitos anos atrás, sofreu a temida transformação em uma onça e depois morreu tragicamente. Agora, um filme está sendo feito para contar a sua história. Por que isso aconteceu com ele? Mas, mais importante, quem na aldeia deveria interpretar o seu papel?
A história de Canuto é uma história muito bem conhecida por todos numa aldeia Mbyá-Guarani, próxima à fronteira do Brasil com a Argentina. Foi um homem que costumava passar dias na floresta, andava de quatro e tinha comportamento agressivo, chegando até a comer carne humana. Um homem que, em certo momento da vida, começou a se transformar em onça. Em seu corpo, manchas características às do animal começaram a se manifestar. Ele, então, precisou ser abatido e seu corpo enterrado em local que não pudesse ser encontrado posteriormente.
É a partir dessa lenda que os cineastas Ariel Kuaray Ortega e Ernesto de Carvalho fazem A transformação de Canuto (2023). De uma parceria que surge por meio do coletivo Vídeo nas Aldeias, é uma obra que tensiona as relações entre os cinemas indígena e indigenista, explorando o imaginário popular brasileiro. O filme teve sua estreia no Festival Internacional de Documentários de Amsterdã (IDFA) e vem fazendo uma carreira excelente em diversos festivais e mostras. Em 2024, foi, então, selecionado como Filme de Encerramento da 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes.
Adotando um modelo do tipo “o filme dentro do filme”, o que vemos é a jornada de uma equipe de realizadores à procura do próprio cinema. Em diversos momentos, apropria-se de uma construção em madeira no meio da aldeia, feita por um arquiteto branco e famoso, e premiada mundo afora, mas que não serve a nenhum propósito dos habitantes do lugar. Como um contraponto a isso, logo no início da trama, vemos Ortega conversar com seus vizinhos e outros moradores da aldeia, explicando o que pretendem fazer. Trata-se de um movimento contínuo do filme de querer fazer junto.
Sem nunca usar materiais de arquivo, os cineastas buscam materializar a memória da comunidade por meio de um trabalho de reencenação que borra as barreiras entre ficção e documentário. Seja com registros corriqueiros, como a escolha dos atores e o trabalho de revisão dos materiais filmados, ou com cenas e construções imagéticas de grande apreço visual, como os registros de rituais e cerimônias, o que se estabelece é uma relação entre estética e política que não se dá por meio de uma experiência fixa de alteridade — de diferenças e distâncias. Nas idas e vindas do processo de criação, destaca-se aquilo de há de ambiguidade e incerteza, quer entre o real e o imaginário, entre quem filma e quem é filmado, ou entre indígena e não indígena.
A Transformação de Canuto é uma daquelas obras que não se encerram antes mesmo da gravação de seu primeiro plano, nem mesmo depois da finalização do último corte. O que se coloca enquanto experiência ao espectador é justamente o entre: o processo, a travessia. E, ao passo que acompanhamos a transformação de um homem em animal, também nos transforma enquanto espectadores.