Uma mulher loira com cabelo pixie liga o chuveiro e começa a tomar banho, de repente as cortinas do box são abertas por uma silhueta que carrega uma faca, com certa e forte trilha de violinos ao fundo… Parece familiar essa cena na sua cabeça?

Certamente, você pode não ter assistido o filme, mas já deve ter visto por aí uma das cenas mais lembradas da história do cinema. Depois de 64 anos, Psicose, de Alfred Hitchcock continua sendo uma das obras mais conhecidas da cultura pop, servindo de inspiração para diversas outras coisas que assistimos e consumimos hoje… E caso conheça, você pode já ter se desinteressado de assistir, tendo em vista o grande spoiler que nos é chegado. Contudo, do mesmo modo que Titanic, de James Cameron não se resume à um navio afundando e Star Wars, de George Lucas à um vilão com problemas parentais, Psicose pode te oferecer uma boa experiência cinematográfica antes mesmo da sua famosa cena, e também depois dela, afinal, Hitchcock tinha muito mais a oferecer do que apenas uma tragédia no chuveiro.
Logo, analisando o longa do começo até a icônica cena, percebemos diversas escolhas e momentos interessantes que nos fazem refletir o porquê do diretor ser chamado de “o mestre do suspense”.
Em primeiro lugar, vamos dividir os acontecimentos iniciais em três partes, chamando-os de contextualização, desenvolvimento e confronto. Lembrando que, haverá spoilers ao decorrer do texto, mas não deixe que isso atrapalhe sua experiência, pelo contrário, que possa enriquecer seu olhar sobre o filme.
PARTE I: Contextualização
Antes de mais nada, os créditos iniciais começam sem nenhuma cerimônia, ouvimos rapidamente a música tema. A trilha sonora de Bernard Herrmann abre com uma grande orquestra, mas com os instrumentos de corda (principalmente violino) prevalecendo. O som é inquietante, causa a sensação de ansiedade e prenuncia algo. Os letreiros são fragmentados, apresentam dois lados e tanto o compositor Herrmann, quanto o designer de abertura Saul Bass já trabalharam com Hitchcock em outros filmes, como Um Corpo que Cai, Intriga Internacional e O Terceiro Tiro, sendo parceiros de longa data.

Finalmente, temos um Plano Geral da cidade de Phoenix, no Arizona. A cidade visualmente não está calma, mas uma trilha sonora leve acompanha a câmera passando por diversos prédios, vai se aproximando e procurando um algo. É dia 11 de Setembro, são 14h43min e todas essas informações são dadas por extenso, servindo como um diário ou relato pessoal, que inclusive, lembra o livro que o filme é baseado, escrito em 1959 por Robert Bloch. Um lugar é achado e vemos uma cortina fechada apenas com uma pequena fresta, e está escuro por dentro. Quem está lá dentro não quer ser visto.

O elemento da janela é muito comum nas obras de Hitchcock, sendo destaque em Janela Indiscreta. A questão do voyeurismo – ato de observar pessoas em situação íntima sem que esta saiba que é vigiada, é uma característica implícita do cinema, mas o diretor explora mais a fundo essas relações de observação em seus filmes, então logo de início somos convidados a ver essa intimidade. Dentro do quarto estão Sam Loomis (John Gavin) e Marion Crane (Janet Leigh). O enquadramento capta apenas as pernas de Sam e o corpo seminu (coberto por roupas brancas) de Marion, uma pergunta sugestiva para a mulher sobre ela não ter comido seu lanche revela um contexto pós-sexo. Vale ressaltar, as diversas censuras que Hollywood sofria pelo Código Hays – uma série de regras definidas pela Associação de Produtores e Distribuidores de Filmes da América que definiam o que era bom para moral do cinema ou não, sendo assim, a obra quebra algumas convenções ao exibir a protagonista tendo um caso na hora do almoço com suas roupas íntimas.
— Marion, quero ver você sempre que possível e sob qualquer circunstância, até mesmo respeitavelmente
— Você faz com que respeitavelmente pareça desrespeitoso
Por certo, a personagem está adorando o momento, mas quando diz que precisa ir embora, a câmera rapidamente se afasta. A cena se desenrola sobre o casal cansado dessa vida às escondidas, de hotéis baratos e nenhuma privacidade ou chance de final feliz. São diálogos sutis e sagazes, que acontecem não só nesse momento como durante toda a exibição, não revelam nem ocultam demais, mas servem como uma exposição dosada ao espectador, além de permitir certas brincadeiras, ironias e contra ataques. Os dois trocam vários votos mas não conseguem ir adiante entre vários motivos, a pobreza de ambos, então Marion volta ao trabalho e deixa Sam no hotel.
PARTE II: Desenvolvimento
Logo depois, a mulher volta a imobiliária que trabalha como secretária e além de ter uma aparição especial do próprio diretor no fundo da janela, sua filha, a atriz Pat Hitchcock participa como uma colega de trabalho da protagonista chamada Caroline. Sua infelicidade só piora com a chegada de um cliente do escritório, um homem rico que está prestes a fechar um grande negócio de 40 mil dólares e faz questão de sentar na mesa de Marion e mostrar sua superioridade.
— Sabe como eu lido com a infelicidade? Eu a suborno […] Não estou comprando a felicidade. Estou apenas subornando a infelicidade
Se há poucos minutos atrás, vimos a atriz dizer suas palavras apaixonadas ao amante, agora precisa engolir seco tudo que está escutando de Tom Cassidy (Frank Albertson). Seu chefe pede que vá depositar o dinheiro no banco e a empregada pede para ir em casa logo após se queixando de dor de cabeça, afinal, como ela mesma diz “não se pode subornar a infelicidade com comprimidos”.
PARTE III: Confronto
Imediatamente, a câmera vai para sua casa e Marion está vestindo uma roupa íntima preta, a quantia está na sua cama e a volta da trilha sonora evidencia seus reais planos: ter finalmente seu final feliz. Após colocar um vestido que cobre todo seu corpo (escondendo seus planos), parte para a fuga. Em seguida, seu chefe a vê dentro do carro após ela dizer que ia passar o fim de semana repousando, e a mesma trilha inquietante da abertura volta com o desespero da protagonista, dirigindo a noite e os faróis dos carros que passam iluminam seu rosto como se a culpassem de algo, até que decide estacionar e dormir na própria pista.
Ao acordar e perceber que já está de dia, se assusta com um policial a acordando. A tensão da cena é evidenciada por diversos motivos: close-up do oficial usando um óculos preto grande, expressando apatia o acompanham, o som ambiente retorna à cena e Marion está claramente tensa com as diversas perguntas recebidas. Então, parte o carro retomando a viagem e a música tema retorna sua fuga, seu retrovisor serve como seu próprio olho, que observa a viatura atrás a seguindo, mas logo se alivia após perceber que ele foi para um caminho diferente. Dirigindo na Califórnia, ela decide parar numa concessionária, trocar seu carro e surpreendendo o vendedor, toda a venda é muito rápida, principalmente ao perceber que o policial continua a seguindo. A sequência novamente é desconfortável, porque pela atuação sucinta e desconfiada de Janet Leigh, sabemos que algo está errado. Ela vai ao banheiro para pegar seu dinheiro e o próprio espelho do local denuncia sua dualidade.

Após finalizar a troca de automóvel, novamente a personagem está sozinha no carro, mas através de uma narração que a acompanha, vemos outros personagens do filme conversando sobre o que teria acontecido com Marion. Primeiro temos a imaginação de como Sam reagiria ao saber do roubo do dinheiro, depois seu chefe pergunta a Caroline onde estará a fugitiva e depois ele relata a Tom Cassidy que sua funcionária o roubou. Sendo assim, os indivíduos não estão com ela no momento e a moça muito menos sabe o que eles estão conversando, mas imagina cenários hipotéticos na sua cabeça de o que pode estar acontecendo… entretanto, todos esses cenários são reais para nós espectadores! As conversas movimentam a narrativa para nós. Interessante uma quebra de convenção de sons diegéticos/extra diegéticos, mas que na prática é simples de compreender o que se passa.
Se a personagem ficou com medo ou hesitou até agora, ao imaginar (ou nós que vemos acontecer) Tom Cassidy enfurecido por ter sido roubado, um sorriso sutil revela que definitivamente, ela não se arrepende de sua decisão e fará o que for preciso para ter seu final feliz. No mesmo instante, uma grande chuva caiu, atrapalhando sua viagem. Se antes as luzes focavam em expor seu pecado, agora parecem desfocadas, como se estivesse certa de sua decisão. A visão do para-brisa fica cada vez mais embaçada ao mesmo tempo em que a trilha sonora sobe de tom; Marion está traçando seu caminho sem volta. A fotografia do filme apresenta grandes flashes de luz em seu rosto quase a deixando cega. Nesse instante, a trilha sonora vai abaixando e a estrada fica escura, deserta e a partir dali Marion está sozinha, pelo menos por enquanto, porque querendo esperar a chuva passar, ela logo vê uma pequena placa de hotel dizendo ter vagas. O resto? É história pra assistir.

Em suma, da grande cidade de Phoenix ao pequeno Hotel Bates, Marion passa por uma jornada que expõe diversas nuances, entre elas, sua complexidade enquanto personagem mesmo com tão pouco tempo de exibição. Diferente de muitos protagonistas conhecidos que buscam apenas fazer o mais correto possível, a mulher de cabelos loiros está cansada de ser humilhada, viver às escondidas, não ter dinheiro mas principalmente: ser infeliz. A atitude foi certa ou errada? A questão colocada não é essa, e sim que concordando ou não, você entenda.
Todavia, embora pareça bastante coisa contada, apenas relatei 26 min contra 1h22min que ainda faltam para o filme acabar. Contudo, o suspense causado pelos elementos fílmicos como trilha sonora, fotografia e até os enquadramentos usados, mostram que Hitchcock, desde a abertura dos créditos, estava alimentando algo que viria acontecer marcando definitivamente toda a narrativa. E esse acontecimento, ainda que eternizado, seja apenas uma pequena parcela de toda a experiência estética que essa obra proporciona ao espectador. Por fim, aproveite a experiência como um todo, desvendando o thriller misterioso que Psicose proporciona a quem assiste.
REFERÊNCIAS
TITANIC. Direção: James Cameron. Produção: Paramount Pictures 20th Century Fox. Estados Unidos: 20th Century Fox, 1996.
STAR WARS: Episódio V – O Império Contra-Ataca. Direção: George Lucas. Produção: Lucasfilm. Estados Unidos: 20th Century Fox, 1980.
UM CORPO QUE CAI. Direção: Alfred Hitchcock. Produção: Alfred J. Hitchcock Productions. Estados Unidos: Paramount Pictures, 1958.
INTRIGA INTERNACIONAL. Direção: Alfred Hitchcock. Produção: Alfred J. Hitchcock Productions . Estados Unidos: Metro-Goldwyn-Mayer, 1959
O TERCEIRO TIRO. Direção: Alfred Hitchcock. Produção: Alfred J. Hitchcock Productions. Estados Unidos: Paramount Pictures, 1955.
REVIEW, Filmsite. Psycho (1960). Disponível em <https://www.filmsite.org/psyc.html>