Esse artigo foi escrito originalmente por Pedro Lauria para a revista Linguagens da Universidade Regional de Blumenau. Você pode acessá-lo aqui.

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Resumo
Stranger Things, uma das séries mais assistidas na Netflix, destaca-se a partir de sua recriação da década de 1980, repleta de referências nostálgicas: seja à filmes, músicas, moda, produtos ou eventos históricos. Já WandaVision da Disney+, foi, durante sua exibição, a série mais assistida dentre todos os canais de streaming. A série, que faz parte do universo Marvel, passa pelos diferentes períodos estéticos das sitcoms da segunda metade do século XX. Sendo ambos seriados carros chefes de suas respectivas plataformas de streaming, o presente artigo procura explorar a dicotomia, os desdobramentos e os mecanismos que fazem com que Stranger Things e WandaVision ocupem um lugar híbrido. Analisaremos como tais séries romantizam o passado, emulando estéticas de décadas anteriores, desenvolvem uma profunda tecnostalgia analógica e acabam por promover um comportamento de espectatorialidade de suas audiências que remete à de séries pré-streaming. Faremos tais aprofundamentos, sempre colocando em consideração que esses produtos audiovisuais são parte integral de serviços digitais que representam a obsolescência desses elementos e tecnologias analógicas. Mais do que simplesmente contraditório, tal dualidade parece ser instrumental num momento em que a saturação do espectador com velocidade tecnológica e da hegemonia do digital fica cada vez mais evidente.
Palavras-Chaves: Stranger Things; WandaVision; Nostalgia; Tecnostalgia; Streaming.

1 INTRODUÇÃO

(…) Sinto falta de jogar jogos toda noite, de fazer uma montanha tripla de waffles de madrugada, de assistir filmes de cowboy até adormecer. Mas sei que está ficando mais velha. Crescendo. Mudando. E acho… que se eu for sincero, é isso que dá medo. Eu não quero as coisas mudando. Então, acho que é por isso que vim aqui, pra talvez tentar evitar essa mudança. Pra fazer o relógio voltar. Pra fazer as coisas voltarem a ser como eram. Mas sei que é ingenuidade. Não é como a vida funciona. Ela vai seguindo. Sempre seguindo, você goste ou não. E, sim… às vezes dói. Às vezes é triste. E às vezes… é surpreendente. Feliz. Então, sabe? Continue crescendo. Não deixe que eu te impeça. (Jim Hopper, Episódio 8, 3ª Temporada de Stranger Things)

A carta póstuma do chefe de polícia Jim Hopper endereçada à sua filha Eleven, na série Stranger Things (IRMÃOS DUFFER, NETFLIX, 2016-), tem uma função claramente metalinguística. Para além de sua função narrativa em relatar o saudosismo de um pai diante do processo de amadurecimento de sua filha, ela também se direciona ao espectador que se relaciona com aquele produto audiovisual a partir do consumo de suas imagens nostálgicas. Assim, enquanto Hopper manifesta nostalgia pela pré-adolescência de sua filha, nós sentimos por outro motivo: pelo período em que a série se ambienta.

De forma análoga, quando a feiticeira/super heroína Wanda Maximoff anda pelas ruas do subúrbio de Westview, enlutada pela morte de seu marido, Visão, resta a ela se esconder no passado (ou melhor, em suas representações audiovisuais). Na trama de WandaVision (JAC SCHAEFFER, DISNEY+, 2021), a personagem principal transforma Westview em uma grande sitcom de subúrbio (figura 1) – situada nos anos 1950, aos moldes de Alô, Doçura! (I LOVE LUCY, JESSY OPPENHEIMER, CBS, 1951-57), As Aventuras de Ozzie e Harriet (THE ADVENTURES OF OZZIE AND HARRIET, OZZIE NELSON, ABC, 1952-1966), Papai Sabe Tudo (FATHER KNOWS BEST, ED JAMES, CBS, 1954-1963), Leave it To Beaver (JOE CONNELY E BOB MOSHER, CBS, 1957-58; ABC 1958-63) e Meus Filhos e Eu (MY THREE SONS, DON FEDDERSON, ABC 1960-65; CBS 1965-72). Com o passar dos episódios, Wanda vai passando pela história das sitcoms e da própria televisão até chegar ao período contemporâneo, emulando peculiaridades, estéticas e tecnologias de cada período.

Vale ressaltar que, tanto Stranger Things quanto WandaVision, não são exceções dentro dos seus serviços de streaming, mas expoentes dentre um grande número de séries que se passam em um passado não tão distante. Iris Du (2018, p.28) chama a atenção para outras produções da Netflix que se passam em décadas passadas, como é o caso dos anos 1970 em The Get Down (BAZ LUHRMAN E STEPHEN ADLIS, NETFLIX, 2016-17), os anos 1980 em Glow (LIZ FLAHIVE, NETFLIX, 2017-19) e os 1990 em Everything Sucks! (BEN JONES E MICHEL MOHAN, NETFLIX, 2018). As pesquisadoras Mayka Castellano e Melina Meimaridis (2017), por sua vez, chamam a atenção para a estratégia da Netflix em “ressuscitar” séries encerradas, porém com grupos de fãs saudosos, como foi o caso de Arrested Development (MITCHELL HURTWITZ, FOX, 2003-2006/NETFLIX, 2013-2017), Fuller House (JEFF FRANKLIN, NEFLIX, 2016-20) e Gilmore Girls: A Year in the Life (AMY SHERMAN-PALLADINO, NETFLIX, 2016).

No caso da Disney+, esse apelo nostálgico fica ainda mais explícito, uma vez que um dos grandes chamarizes da plataforma são o seu acervo de animações e produções como Branca de Neve e os Sete Anões (SNOW WHITE AND THE SEVEN DWARFS, DAVID HAND, 1937), Cinderela (CINDERELLA, CLYDE GERONIMI ET AL., 1950), 101 Dálmatas (ONE HUNDRED AND ONE DALMATIANS, CLYDE GERONIMI ET AL., 1961) e O Rei Leão (THE LION KING, ROGER ALLERS E ROB MINKOFF, 1994).

2 O USO DA NOSTALGIA

Antes de seguirmos, é importante fazermos uma breve conceituação sobre a nostalgia, uma vez que, como fica claro nos estudos nostálgicos, exista um amplo leque de definições. Por isso, como afirma Janover (2000, p.115) seria até mesmo mais adequado o termo nostalgias, no plural. A palavra vem do grego nostos (volta ao lar) e algia (sofrimento) e sua origem, como explicado por Svletana Boym (2001, p.2), advém da definição do médico suíço Johannes Hofer em 1688, quando ela era encarada como uma doença: uma enfermidade que acometia soldados saudosos de sua terra natal, em uma exibição patriótica de amor pelo seu local de origem. Partindo dessa contextualização histórica, a pesquisadora define a nostalgia, de forma contemporânea, como “luto” pela perda/impossibilidade de retorno a um mundo encantado com fronteiras e valores claros. (Boym, 2001, p.3).

A partir dessa conceituação, Boym apresenta ao menos duas categorias de nostalgia. A primeira delas seria a “nostalgia restauradora” ou “restaurativa” (2001). Segundo Boyn, ela está no cerne dos reavivamento nacional e religioso ao estar vinculada a uma ânsia pela reconstrução de uma terra perdida. A segunda seria a nostalgia reflexiva (BOYM, 2001), que põe as lembranças do passado em dúvida, ao trabalhar com a irrevogabilidade do passado em contraponto às contradições do presente e à finitude humana. O binômio reconstruir (ou restaurar) e lembrar (ou refletir) guarda complementaridades óbvias, mas também divergências fundamentais. Afinal, retornar ao passado, além de ser uma impossibilidade axiomática, traz consigo um sentimento reacionário ao próprio presente – e seus possíveis avanços seculares e tecnológicos. Enquanto isso, refletir sobre o passado sublinha o caráter substantivo de compreender que as mudanças são partes incontornáveis da existência.

Tais perspectivas nostálgicas, é claro, são subjetivas e, por vezes, se misturam – não sendo possível definir, de forma taxativa, como um espectador ou uma audiência se sente ao assistir uma obra que se situa no passado. Como o próprio Jim Hopper de Stranger Things ressalta em seu monólogo, suas sensações, por vezes, são contraditórias: “Às vezes dói”, “Às vezes é triste”, “Às vezes… Feliz”. Por isso, neste trabalho, quando formos falar de nostalgia, é importante que o leitor tenha essa amplitude de interpretações em mente.

Feitas tais pontuações, nos debrucemos sobre a organização do presente trabalho. Nele iremos analisar como a Netflix e a Disney+ se utilizam dessas séries pautadas em representações e referências nostálgicas como forma de se adereçar a sentimentos e ansiedades de seus espectadores em relação ao atual momento tecnológico – do qual os próprios serviços de streaming fazem parte. Para isso, iremos nos adereçar a três formas diferentes em que isto aparece: na estética das séries, na tecnostalgia analógica por elas apresentada e na forma como elas estimulam um comportamento de espectatorialidade que remete ao apointment viewing (quando o público assiste em um horário pré-determinado). Para cada uma delas, dedicaremos um tópico. E sem mais delongas, vamos a eles.

2.1 UMA ESTÉTICA NOSTÁLGICA

A mais clara forma como tais séries fazem inferência a décadas anteriores é, claro, por conta de sua estética. Esse, inclusive, é um dos grandes chamarizes de WandaVision. Seu pôster (figura 2), faz menção direta ao período em que a série se inicia: os anos 1950, usando uma ilustração que remete ao estilo do período. Além disso, o pôster dá papel central à televisão, eletrodoméstico extremamente vinculado a histórias das sitcoms, em suas diferentes décadas.

A homenagem, é claro, não se resume ao pôster. Além de fazer uma ode à história das sitcoms, a série brinca com as diferentes qualidades técnicas de imagem de acordo com o período que é retratado – como por exemplo, o uso do preto e branco quando a série está situada nos anos 1950 e 1960. Essas construções estéticas ficam ainda mais em evidência quando contraposta à “estética normal” da série, nos momentos em que ela mostra a ação no mundo real. Isso porque a série brinca com a dicotomia entre o “mundo das sitcoms”, criado por Wanda (a personagem tem o poder de transformar a realidade), onde ela vive seu processo de luto e o mundo real, onde militares tentam invadir aquele espaço a qualquer custo.

Assim, no momento em que um caminhão militar tenta invadir o “mundo das sitcoms” e é violentamente expelido pela protagonista, é possível fazer um contraponto com a nossa sensação de querer manter aquele mundo intacto das modernidades. Outra analogia bastante efetiva entre o que está sendo retratado na série e o sentimento do espectador se dá através do sentimento de luto da personagem principal – uma vez que conseguimos fazer um paralelo com nossas sensações de luto pelo passado.

No caso de Stranger Things, essa nostalgia pelo passado é dedicada a um período em específico: a década de 1980. E as referências não ficam restritas à ambientação, mas, assim como em WandaVision, a toda cultura pop do período: seja fazendo acenos à clássicos dos anos 1980, como E.T. – O Extraterrestre (E.T. – THE EXTRATERRESTRIAL, STEVEN SPIELBERG, 1982), Gremlins (JOE DANTE, 1984) e Os Caça-Fantasmas (GHOSTBUSTERS, IVAN REITMAN, 1984), a trilha sonora (com The Clash e David Bowie); a situações históricas (como à New Coke e a reeleição de Ronald Reagan); e até em seu elenco, com Winona Ryder, de Os Fantasmas se Divertem (BEETLEJUICE, TIM BURTON, 1988) e Atração Mortal (HEATHERS, MICHAEL LEHMAN, 1988), e Sean Astin de Os Goonies (THE GOONIES, CHRIS COLUMBUS, 1985). Como bem resume Iris Du, “a nostalgia da série é tão proeminente e obvia que chega ao nível da autoconsciência” (2018, p.29).

Esse caráter “autoconsciente” do qual a Iris Du comenta – e que pode ser facilmente aplicável a WandaVision – funciona quase como um pacto dos produtores e equipe técnica para com sua audiência: haverá inúmeras desculpas narrativas para incluir o máximo de referências à cultura pop daquela época. Um exemplo bastante marcante dessa “desculpa narrativa” para referenciar ao passado se dá em um dos momentos mais icônicos da 3ª temporada de Stranger Things. Nela, Dustin e sua namorada Suzie “salvam o mundo” ao conseguirem se comunicar por um equipamento de rádio amador. Porém, não sem antes encarar um dueto memorável da música The Neverending Story da banda Limahl, música tema de A História sem Fim (DIE UNENDLICHE GESCHICHTE, WOLFGANG PETERSEN, 1984). A necessidade narrativa da música, claro, é plantada de forma a possibilitar fazer uma marcante homenagem ao período.

Como é de se esperar, as referências estéticas de Stranger Things não se resumem ao conteúdo da série, mas também aparecem em seu material promocional. Seus pôsteres de divulgação, por exemplo, fazem uma referência direta ao trabalho visual de Drew Struzan, famosos por pôsteres de clássicos dos anos 1980, como Guerra nas Estrelas: O Império Conta-Ataca (STAR WARS: THE EMPIRE STRIKES BACK, IRVIN KERSHNER, 1980) e Indiana Jones e o Templo da Perdição (INDIANA JONES AND THE TEMPLE OF DOOM, STEVEN SPIELBERG, 1984) (figura 3). Outro exemplo é a própria logo da série, que se utiliza da fonte ITC Benguiat. Trata-se de uma fonte muito utilizado por livros de ficção dos anos 1980 (DU, 2018, P.30) – principalmente do autor Stephen King (figura 4). Além disso, a apresentação de cada episódio como se fosse um capítulo de livro reforça essa sensação de que estamos acompanhando um produto que, estilisticamente, traz certas referências às mídias analógicas.

Ressalto que a nostalgia presente em Stranger Things e WandaVision em nenhum momento busca construir um recorte histórico do período, mas funciona como um simulacro de um tempo menos digital, que pode tanto anestesiar quanto acirrar esse “baque tecnológico”. Um retorno a uma era de ouro que só pode existir dentro do mundo diegético da série e cujo sentimento de saudosismo só pode ser aplacado consumindo suas imagens. Ou seja, a própria plataforma que surge, então, como parte intrínseca desse “baque tecnológico” é quem oferece as imagens das décadas pré-digitais como forma de atenuá-lo. Esse mesmo incômodo que Iris Du (2018) apresenta em sua tese, questionando-se:

E se essas narrativas de nostalgia romântica e a estética que elas carregam são uma maneira de abrandar as experiências digitais que se tornaram muito enervantes? E se gestos visuais familiares emprestados (desse momento analógico) fossem um meio de ocupar atenções e incitar experiências de visualização prazerosas, em oposição às crescentes vulnerabilidades, ansiedades e até mesmo tédio em torno da tecnologia digital? (DU, 2018, P.5)

Dando prosseguimento à nossa análise, no próximo tópico iremos nos debruçar sobre essa dicotomia entre analógico e digital citado por Iris Du.

2.2 A TECNOSTALGIA ANALÓGICA

Como discutido no tópico anterior, outro sentimento profundamente trabalhado por essas séries é justamente a nostalgia pelo analógico. O conceito de tecnostalgia analógica se refere à afeição, reminiscência ou anseio por tecnologias desatualizadas (CAMPOPIANO, 2014), como o vinil, o VHS e a fita cassete. Essa pontuação talvez seja onde as contradições entre a nostalgia provocada por essas séries e as plataformas onde estão inseridas fiquem mais evidentes. Afinal, os serviços de streaming são fruto direto de um processo de digitalização das mídias. No caso da Netflix, isso se torna ainda mais emblemático, pois a empresa começou a partir do aluguel de mídias físicas e foi uma das empresas que mais souberam se aproveitar da mudança do modelo.

Importante ressaltar, logo de início, que essa nostalgia pelo analógico tem um grande condicionante estético. Talvez o exemplo mais direto dessa afirmação se dê com a versão de colecionador do box de DVD/Blu-Ray de Stranger Things que emula uma caixa desgastada de VHS (figura 5) – uma aplicação material um tanto quanto direta da comoditização da nostalgia (GRAINGE, 2000). Também chama a atenção a etiqueta “Hawkins Video” na caixa, fazendo referência a uma locadora fictícia da série – o que ganha uma conotação no mínimo irônica se pensarmos na origem dos serviços de streaming que produz Stranger Things.

Para começarmos a entender essa nostalgia estética pelo VHS e outras tecnologias defasadas é importante relembrar como a transição da década de 1980 para a década de 1990 ficou marcada pela passagem de um mundo majoritariamente analógico para o mundo digital. No caso de Stranger Things, esse sentimento de tecnostalgia analógica é corroborada pelos próprios criadores da série, os irmãos Matt e Ross Duffer. Em entrevista para a Rolling Stones, eles ressaltam as lembranças pela “cultura analógica” do período. Segundo eles:

“Ainda éramos pré-Internet e pré-celular pela maior parte de nossa juventude. Nós fomos parte da última geração que experimentou sair com os amigos na floresta ou andar nas trilhas de trem. (…) Também éramos nerds de filmes e tínhamos em VHS todos os clássicos dos anos 80 que continuaríamos vendo e revendo de novo e de novo. Esse foi nosso ponto de referência sobre como eram os anos setenta e início dos oitenta.” (Irmãos Duffer para a RollingStone.com)

Ressalto o trecho em que eles dizem que “foram a última geração que experimentou sair com os amigos na floresta” para me referir às nostalgias como potenciais processos de formação de identidade. No caso da tecnostalgia analógica, parece bastante clara sua condição de reação à rápida velocidade da tecnologia, condição intrínseca da modernidade. Nas palavras de Svetlana Boym (2001, XIV), “O contraponto à nossa fascinação com o ciberespaço é (…) a epidemia de nostalgia (…) como um mecanismo de defesa contra os ritmos acelerados da vida”. Assistir à Stranger Things, afinal, é retornar a um mundo sem celular, internet ou computadores – tecnologias que mudaram de forma contundente a maneira como nos relacionamos com os outros. Em Hawkins (cidade onde se passa a série), todas a relações são feitas através de telefones de parede, walkie-talks e rádio amadores. O entretenimento está vinculado a televisões de tubo, filmadoras VHS e fitas cassete. A sociabilidade é feita a partir dos encontros físicos – seja com andanças de bicicleta, sessões de jogos no porão de casa ou na piscina pública da cidade.

Wetmore, em sua análise de Stranger Things (2018), diz que essas representações do “mundo analógico” tem uma função dupla: despertar nostalgia em gerações mais velhas, mas também construir um mundo exótico às audiências jovens contemporâneas. Segundo a pesquisadora (2018, p.9), tais séries demonstram que o “passado é um país estrangeiro” em que “quando o problema acontece, ninguém pode puxar um celular para resolver”. Um ambiente que, muito provavelmente, grande parte da nova geração demonstraria alívio em não ter vivenciado. Lacey Smith (2018) inclusive sublinha o trabalho dessas séries em utilizar as tecnologias das décadas anteriores como uma versão simplista de tecnologias contemporâneas para criar uma maior conexão com as audiências mais novas. Um exemplo icônico é a quase onipresença do Walkie Talk nos filmes e séries passados na década de 1980, servindo como um “proto-celular”.

Uma outra forma importante em como se manifesta essa tecnostalgia analógica ocorre por seu constante uso narrativo como obstáculos para os personagens através do seu mal funcionamento. Cito, como exemplo, o caso do rádio no 2º episódio de WandaVision e da 3ª temporada de Stranger Things – que sofrem com interferências e com uma piora da qualidade de transmissão, trazendo problemas e questionamentos aos seus personagens. Seria lógico imaginar que, ao se deparar com a reprodução das falhas de tais dispositivos, o espectador se sentisse aliviado de estar vivendo em outra lógica tecnológica. No entanto, isto não é uma correlação tão direta.

Em sua tese, Iris Du (2018) chama a atenção para a constância do mal funcionamento de objetos analógicos durante momentos importantes de Stranger Things. Isso se dá das mais diversas maneiras: através da estática na televisão, os telefones mudos, os emperramentos de mecanismo e dos arruinamentos de filmes fotográficos. Como a pesquisadora define, “erros e quebras nas mídias e objetos analógicos (…) catalisam a ação da série” (DU, 2018, P.35). Ela ressalta como isso sempre ocorre em formas como objetos digitais jamais fariam – análise que vai na mesma direção de uma “romantização das ruínas”. Ou seja, sabemos o quanto aqueles erros do analógico nos afetavam e nos frustravam na época em que os vivenciamos, mas, de certa forma, temos saudades deles.

Schrey (2014) se dedica a discutir o que causa essa reavaliação do mal funcionamentos da mídia analógica – para que agora sejam apreciados de forma romântica. Ele trabalha com a ideia da metafísica da recordação de Jonathan Sterne (2006), que sugere que o processo de recordação analógica faria menção a uma captura de vida – e que, em seus inúmeros processos, exista, também, uma certa caminhada em direção à morte (apelando, assim, há uma analogia ao caráter efêmero da própria vida humana). Tal sensação pode ser compreendida de forma anedótica por qualquer pessoa que já tentou fazer cópias sucessivas de um VHS, por exemplo. A perda de qualidade a cada “cópia da cópia” remete justamente a essa tão humana sensação de envelhecimento. Dentro dessa ideia, haveria, então, um sentimento de identificação natural entre o humano e a tecnologia analógica. Enquanto isso, o processo de “transformação em código binário” do digital, transformaria a mídia em uma mera simulação, faltando-lhe uma “essência humana”.

Iris Du também sugere uma leitura metafísica dessa dicotomia ao apontar como os problemas e decaimento intrínsecos da tecnologia analógica representam essa experiência humana de morte e envelhecimento em oposição ao “sempre duplicável” digital (2018, p.42). Nessa perspectiva, mesmo a qualidade “limpa” da imagem digital parece evocar uma certa estranheza ou desonestidade (DU, 2018, P.15) – afinal, a “perfeição” da imagem digital parece não condizer com a própria humanidade. Não à toa, volta e meia vemos a reprodução ou emulação de defeitos analógicos – como o granulado da TV de tubo, fios na película ou o chiado do vinil– tanto em WandaVision quanto em Stranger Things. Elas acabam por trazer, de forma artificial, justamente essa “imperfeição” que o digital não carrega consigo.

Propondo complementar essas interpretações, levanto outro fator que parece operar nessa nostalgia pelas falhas tecnológicas em Stranger Things e WandaVision: o distanciamento temporal. Em outras palavras, as ruínas da tecnologia analógica ficam nas memórias, com o distanciamento emocional necessário para não mais nos incomodar. Dificilmente teríamos qualquer tipo de sentimento positivo por problemas de objetos atuais – como a falta de área de cobertura em celulares, quedas de Internet, necessidades de atualização constantes de softwares, bugs, etc. Isso inclui, é claro, erros vinculados ao streaming das próprias plataformas digitais, como perda abrupta da qualidade da imagem ou interrupções e congelamento da transmissão. É justamente sobre nossa experiência assistindo ao streaming que nos debruçamos em nosso próximo tópico.

2.3 O COMPORTAMENTO ESPECTATORIAL

Por fim, penso ser fundamental pensarmos nesse lugar híbrido de Stranger Things e WandaVision também a partir do comportamento de suas audiências em consumir essas séries. Afinal, se vimos de que forma são despertados sentimentos nostálgicos de seus espectadores a partir do que aparece em tela, é interessante analisarmos se isso tem alguma reverberação na forma como eles assistem a essas séries. E é possível ver que sim, existe regime especial de espectatorialidade dessas séries que remetem a formas mais antigas de assistir produções seriadas. E isso se deve, em principal, às condições de fenômenos pop dessas séries, como nos aprofundaremos a seguir.

Antes de mais nada, vale explicitar que a forma como WandaVision e Stranger Things foram lançados em suas plataformas de streaming foram diametricalmente diferentes. A primeira, aos moldes de algumas outras séries de streaming, como O Mandaloriano (THE MANDALORIAN, JON FAVREAU, DISNEY+, 2020-) e Falcão e o Soldado Invernal (KARI SKOGLAND, DISNEY+, 2021-) foi lançada em episódios semanais. Tal formato de exibição é um contraponto à forma como a própria Netflix popularizou o lançamento de séries em streaming – disponibilizando todos os episódios da temporada de uma só vez.

Os lançamentos semanais tornaram a experiência de assistir WandaVision um fenômeno coletivo, onde suas audiências (parte delas de aficionados pelo Universo Marvel) se juntavam em fóruns coletivos e em redes sociais para discutir teorias sobre o desenrolar da série após cada episódio. Tal comportamento foi fortalecido pela própria trama da série, que construía um cenário misterioso e que era explicado aos poucos, episódio por episódio. Assim, a série gerou um buzz constante entre seus episódios, que fizeram com que muitos críticos começassem a apontar as similaridades do comportamento de suas audiências com a de espectadores de séries clássicas de mistério (de um período pré-streaming): Twin Peaks (DAVID LYNC, ABC, 1990-91, SHOWTIME, 2017) e Lost (J.J. ABRAMS ET AL., ABC, 2004-10).

A comparação com a série dos anos 2000 é ainda mais representativa, pois Lost ficou marcada como uma das primeiras séries “da Internet 2.0”, por se tornar um dos primeiros produtos audiovisuais que se tornaram fenômeno cultural nas redes sociais enquanto eram exibidos. Durante os anos em que passou, a série ficou marcada por redes de fãs que se reuniam para discutir teorias sobre seus mistérios (WILLIAMS, 2015). Assim, é compreensível a reação nostálgica dos fãs de WandaVision, não só com o período retratado na série, mas com a própria possibilidade de  recriar a experiência que audiências tiveram com a série dos anos 2000. Vale lembrar que isso não é inédito na História recente da televisão, uma vez que esse comportamento é bem similar ao que aconteceu com Game of Thrones (DAVID BENIOFF, D.B. WEISS, HBO, 2011-19). Porém, a série de fantasia era exibida na televisão fechada, seguindo um regime de lançamento semanal típica desta.

Stranger Things, por sua vez, não se utiliza desse sistema de lançamentos de episódios semanais. Tal qual acontece com outros sucessos da Netflix, a temporada da série é lançada de uma só vez. E, no caso de uma série culturalmente tão relevante, essa estratégia também acaba por afetar a forma como suas audiências a assistem: a cada lançamento de temporada, é comum ver o movimento de espectadores em assistí-la o quanto antes. Os motivos são vários: desde a ansiedade, passando pela sensação de saber antes dos outros os ocorridos da série, até como tática de prevenção de spoilers (revelação de informações do enredo que possam estragar a experiência).

Dessa forma, é possível relacionar essa predileção por assistir os episódios assim que lançados como uma emulação do appointment viewing da era analógica (CASTLEMAN E PODRAZILK, 2010) – algo corriqueiro no período em que a única possibilidade de consumir um conteúdo era sintonizar no canal em uma hora determinada. Apesar de aparentemente contraintuitivo na contemporaneidade, o appointment viewing permite que espectadores possam comentar de forma sincrônica sobre os acontecimentos da série com outros fãs nas redes, ressaltando essa experiência social. Os fãs sabem que “demorar” para assistir a série pode significar perder a empolgação e a discussão sobre a mesma. Essa forma de consumo de Stranger Things, por sua vez, vai profundamente de encontro a uma das maiores bandeiras das plataformas de streaming: assistir a série a qualquer momento.

Desse modo, é profundamente revelador que a própria Netflix acabe por estimular tal ação por parte dos fãs, através da promoção do binge-watching. Iris Du ressalta como, através de mecanismos como o “auto-play” (caso o espectador não pause, os episódios são passados de forma ininterrupta), e o lançamento de todos os episódios da temporada de uma só vez, o binge-watching destrói a separação entre televisão e cinema (2018, p.24). Assim, assistir Stranger Things em seu lançamento passa a ser um evento social, tal qual assistir a um filme na estreia ou ver o último capítulo de uma novela. Mercadologicamente isso cria uma excitação nas redes que acaba por monopolizar as discussões sobre cultura pop naqueles dias seguidos do lançamento. Tal fenômeno, é claro, faz com que alguns espectadores, que pudessem preferir assistir a série de forma mais comedida, fiquem tentados a praticar o binge- watching para não perder o momentum da discussão, além de instigar pessoas que não conhecem a série a assisti-la.

Assim, em meios de discussões sempre recorrentes sobre “a morte do cinema e da TV”, em que as plataformas de streaming são apontadas como um dos responsáveis (pela praticidade e autonomia dada ao usuário), é no mínimo chamativo que as plataformas estimulem práticas tão análogas a esses dois dispositivos. Em uma suposta modernidade marcada pelo fato de que “você pode assistir no seu tempo”, observa-se, em alguma escala, a ideia de que “você precisa assistir exatamente nesse momento”, fazendo referência a um comportamento espectatorial de um momento pré-streaming.

3 CONSIDERAÇÕES

Dentro do presente artigo, pudemos discutir alguns dos elementos pelos quais Stranger Things e WandaVision conseguem se referir a essa avidez nostálgica do público em consumi-la. Elementos que vão desde a proposta estética, passando pelas representações da tecnologia analógica e chegando até a forma como essas séries são assistidas. Assim, não é superficial afirmar que tais questões apontam para uma complexificação da discussão da “obsolescência das tecnologias analógicas” em prol de uma “primazia do digital”. Fica bastante evidente que essa transição carrega muitos mais hibridismos e imbricamentos do que o discurso fatalista de “morte do analógico” pode contemplar. A “experiência analógica” e/ou nostálgica passam a ser comodities amplamente desejadas pelo público, enquanto cresce sua saturação com o digital.

De tal forma, fazem-se compreensíveis os motivos pelos quais Disney+ e Netflix se mostram desejantes deste tipo de conteúdo em seu catálogo. Vale ressaltar que, principalmente no caso da segunda, essas intencionalidades estão presentes desde o momento de concepção de suas séries. Afinal, Stranger Things foi escolhida para ser produzida a partir da utilização de dados de navegação de seus próprios usuários que se mostravam interessados por consumir produções situadas na década de 1980 e com um clima nostálgico típico de obras como E.T. – O Extraterrestre e Gremlins.

A busca por essas empresas produzirem séries e filmes passados em períodos mais analógicos certamente atenua e, de certa forma, anestesia o espectador dos fluxos cada vez mais rápidos da tecnologia – ao permitir que ele se transporte, por alguns momentos, para um “tempo mais simples”. Nos é evidente, como efeito contrário, que uma série futurista e focada na tecnologia como Black Mirror (CHARLIE BROOKER, CHANNEL 4, 2011-14, NETFLIX, 2016-) pode gerar uma saturação do espectador com a sua própria realidade. Não por coincidência, o bordão “isso é muito Black Mirror” passou a ser empregado para fazer comentários cínicos, irônico e/ou pessimistas sobre eventos da contemporaneidade.

Por fim, acredito ainda ser muito cedo dentro da discussão sobre o futuro do streaming para afirmar se as proposições metafísicas sobre a relação entre humanidade e tecnologia analógica de Iris Du (2018) e Jonathan Sterne (2006) se aplicam. Talvez, como eles afirmam, o ser humano nunca se acostume completamente com a experiência digital – e continue emulando alguns aspectos advindos de uma tecnostalgia analógica independente do nosso momento tecnológico. Entretanto, ressalto que estamos em um estágio de transição tecnológica, tal qual estivemos em 1950 (com o advento da TV) e 1980 (com a entrada do digital) – não à toa, períodos referenciados respectivamente em WandaVision e Stranger Things. Talvez, quando a tecnologia streaming estiver consolidada de forma hegemônica, passaremos a ter mais obras nostálgicas do período digital pré-streaming, nos anos 1990 e 2000. Por mais que não seja nosso objetivo especular sobre as incertezas do futuro, se há algo que os estudos de nostalgias nos permitem afirmar é que o hoje sempre será um passado mais simples de um amanhã mais complexo.

REFERÊNCIAS

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