Trabalho escrito por Maria Antônia Peixoto Guimarães para a disciplina de Economia Política do Audiovisual ministrada pela professora Lia Bahia, da UFF.
Maria Antônia é bacharelanda em Cinema e Audiovisual na UFF e estagiária na Superintendência de Prestação de Contas da ANCINE. Integra equipes de curta-metragens universitários e foi monitora das matérias de Design Visual e Estudos da Narrativa.
“Como é bom ir ao cinema/ Pra ver um filme legal/…/ Cinema é diversão garantida/…/ Cinema é um programa legal” são alguns dos versos da música tema da franquia de filmes Cine Gibi. Para além do incentivo à ida ao cinema, essa letra marca a volta da Turma da Mônica para as telonas. Após cerca de dezessete anos desde o último lançamento, Maurício de Souza conseguiu colocar, no ano de 2004, uma nova animação em cartaz – e isso foi possível apenas por conta de manobras estatais de apoio à cultura, em especial, a criação da Lei do Audiovisual e a manutenção do seu artigo 3°.
Nesse contexto, o objetivo desse texto é fazer uma análise da importância das leis de incentivo para retomar a produção de filmes de animação, já que esses encontram inúmeras dificuldades dentro do cenário audiovisual no Brasil e enfrentaram um longo período de escassez após o fim da Embrafilme. Além disso, há escassez de discussões sobre o cinema de animação e a sua História no Brasil. A escolha do filme “Cine Gibi” para iniciar a discussão sobre esse recorte temático se deu por conta da relevância do universo da Turma da Mônica no âmbito nacional e, também, dentro do cinema de animação.
Inicialmente, será apresentado um breve panorama da Turma da Mônica, desde a sua criação até a atualidade. Logo em seguida, tratar-se-á a respeito de como seu retorno às telas de cinema se deu e quais os prováveis motivos, dentro de uma visão político-econômica, para, enfim, finalizar com a importância desse filme em específico para a História do cinema de animação brasileiro.
Para a realização deste estudo, as principais fontes consultadas e aqui referenciadas serão o Observatório de Cinema e Audiovisual da Ancine (OCA), criado em dezembro de 2008 para registrar e divulgar indicadores e informações sobre o Cinema e o Audiovisual brasileiro relacionados ao trabalho da ANCINE; o Sistema Ancine Digital (SAD), a edição de outubro de 2015 da revista Filmes B; a Carta de Tiradentes, lida em público no Festival de Tiradentes em janeiro de 2023, e o Making Of do filme, divulgado junto à edição do DVD do filme.
As Animações da Turma da Mônica e a Importância da Embrafilme
Para começar, é importante entender como a Turma da Mônica acabou por se tornar o fenômeno que é até os dias atuais, mesmo que alterando suas janelas para chegar ao público. Com as suas primeiras personagens criadas em 1959, Maurício de Souza construiu o seu império aos poucos, começando por publicar tirinhas em espaços nos jornais até conseguir, em maio de 1970, com histórias exclusivamente da Turma da Mônica, o seu primeiro gibi. Em 1976, a primeira versão animada da Turma da Mônica foi lançada: o curta “O Natal da Turma da Mônica” passava nos intervalos das programações televisivas. A concretização de um público trabalhada durante décadas foi essencial para que, em 1982, “As Aventuras da Turma da Mônica” conquistasse o recorde histórico de público para um filme animado nacional. Foram 1.172.000 pessoas que assistiram ao filme nas salas de cinema. Esse longa-metragem foi a primeira das obras que seriam co-produzidas e distribuídas pela Embrafilme. As tirinhas e os desenhos foram exportados, ao longo dos anos, para os Estados Unidos, Itália, Espanha, Alemanha, Japão, entre outros países. O sucesso foi crescente, o universo foi expandido para a Turma da Mônica Jovem, o cinema ganhou a versão live-action das histórias. Até hoje, a presença dessa franquia e de seus produtos licenciados é massiva na sociedade, mesmo que reinventada durante os anos. Por isso é tão importante entender como uma das maiores criações literárias e cinematográficas do país, que foi capaz de atingir tantas gerações, não conseguiu gerar um filme em uma década e meia.
De 1995 até o lançamento do filme aqui estudado, em 2004, apenas 2 longas de animação foram lançados nas salas de cinema: “Cassiopeia”, em 1996, e “O Grilo Feliz”, em 2001. Após 2004, houve uma constância de pelo menos uma animação lançada anualmente, com exceção dos anos de 2010 e 2015. E, de todos esses filmes, entre 1995 até 2023, Cinegibi foi o quinto maior em números de bilheteria e público. O terceiro dessa lista também pertence a Maurício de Sousa: “Turma da Mônica em uma Aventura no Tempo” (2007). Somando esses números aos dos filmes feitos anteriormente a 1995, durante a existência da Embrafilme, é possível observar a importância e a relevância da Turma da Mônica dentro do campo da animação brasileira.
Adentrando à influência estatal no meio audiovisual, vale ressaltar como a criação da Embrafilme foi um grande estimulante do cinema brasileiro. De forma coerente para com o projeto de nacionalismo almejado pelo Estado entre 1964 e 1985, foi criado um órgão estatal para fomentar e distribuir e servir de apoio para o cinema nacional. Durante o período de existência da Embrafilme, a participação forçada da empresa como co-produtora e distribuidora fez com que a cadeia produtiva do fazer cinematográfico fosse a mais bem estruturada na História do cinema brasileiro. Filmes nacionais de fato chegaram às telas dos cinemas. Em nenhuma instância, porém, deve-se excluir dessa narrativa a censura, a perseguição e as execuções realizadas durante o período da ditadura civil-militar pelo governo. A Embrafilme encontrou sua extinção em 1990, pelo recém-eleito Fernando Collor de Mello, provocando uma derrocada da produção cinematográfica brasileira.
A Lei do Audiovisual e o seu impacto
A retomada da produção cinematográfica começou a acontecer a partir das leis de incentivo indireto estatal, sendo a mais importante delas a Lei do Audiovisual, criada em 1995. A partir disso, o vácuo na produção nacional deixado pela extinção da Embrafilme foi, aos poucos, preenchido. A chamada “primeira fase” da retomada do cinema brasileiro foi de 1995 a 2002, período em que o público brasileiro foi reconvidado a frequentar as salas de cinema a fim de ver longas produzidos pelo Brasil.
Promulgada em 1993, a lei 8.685/93 foi criada na tentativa de reativar o setor do audiovisual, agora não mais com a presença do Estado, tão vívida quanto nos tempos da Embrafilme, e sim com o sistema de renúncia fiscal, onde os recursos investidos no setor são indiretamente pertencentes à União. Esse afastamento entre a indústria e o Estado era coerente ao projeto liberal desenvolvido pós-ditadura, que rejeitava políticas semelhantes àquelas praticadas durante os mais de vinte anos de experiência antidemocrática.
A Lei do Audiovisual possui importância inquestionável dentro do meio, já que apresentou resultados concretos de auxílio no ressurgimento do cinema brasileiro. “O Quatrilho” (1995) foi o primeiro longa-metragem produzido no Brasil com recursos da Lei do Audiovisual, foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e fez o segundo maior número de público no ano: 1,1 milhão de espectadores (Filme B, Database Brasil 2000).
“Do ponto de vista da produção, o número de produções nacionais estreadas nas salas de cinema do Brasil passou de 13 a 42, entre 1995 e 2005. O market-share nacional, por sua vez, aumentou de 3,67% para 12,67%, no mesmo período. Essa melhoria no cinema brasileiro não se deu de forma isolada e está profundamente ligada à expansão do mercado de cinema no país como um todo desde que se iniciou o período da retomada.” (BORGES, Danielle dos Santos, 2007)
É possível perceber como o próprio setor enxerga a necessidade da existência dessa lei, já que, no ano de 2023, durante uma das maiores mostras de cinema do país, realizada em Tiradentes, uma das solicitações do setor ao novo governo, após novas experiências antidemocráticas, foi a de manter e revisar a Lei, e não extingui-la. É dito: “É urgente a mobilização junto ao legislativo para a prorrogação da vigência desta lei e ampliar o limite do aporte de recursos dos incentivos fiscais, defasado em relação aos custos reais de produção.”. A carta aberta lida durante a 26ª Mostra de Tiradentes inclui pontos referentes à estruturação do setor e apresenta demandas para o Governo Federal e para a Ancine – e fica claro como esse artifício político econômico específico é valorizado.
A Lei e a Turma da Mônica
Um exemplo da importância concreta da lei do audiovisual são os próprios filmes da Turma da Mônica, aclamados pela crítica e com altos números de público e renda – e que só puderam ser feitos novamente devido a essa lei. Em entrevista para o jornal Estadão em 2004, Maurício de Souza confessou que, se continuasse a fazer filmes, iria à falência, só foi capaz de produzir um novo filme da sua criação mais rentável por conta desses incentivos fiscais. Não é à toa que o primeiro título registrado para a obra foi “Turma da Mônica: O Retorno”.
Conforme transparência dos valores captados pelo filme “Cine Gibi”, disponibilizados no Sistema Ancine Digital, os dois mecanismos utilizados pela produção do longa foram os dos artigos 1° e 3° da lei, sendo que o segundo teve maior peso no montante.
O Artigo 1°, muito utilizado durante o primeiro período da retomada, diz respeito à renúncia fiscal em relação ao Imposto de Renda a partir de um sistema semelhante à compra de “ações” do filme, fazendo com que o investidor tenha participação nos lucros daquela obra. Através desse artigo, “Cine Gibi” captou R$185.444,00. Já o artigo 3° ganhou força na chamada segunda fase da retomada, a partir de 2003, devido à uma manutenção feita no ano de 2001. Após o claro desinteresse das empresas em tal mecanismo de fomento, uma vez que as majors que aqui atuavam em peso eram, em sua maioria, estadunidenses e, “segundo a legislação norte-americana, os valores incorridos como imposto de renda por empresas em países estrangeiros podem ser deduzidos no imposto a pagar dessas empresas nas suas matrizes” (Filme B, ,2015), foi necessária uma breve alteração, feita pela MP 2.228-1/01: agora haveria uma sobretaxa obrigatória sobre a remessa de valores para o exterior, que podia ser renunciada em nome do investimento no cinema. Isso fez com que ele fosse o mecanismo de captação mais utilizado na chamada segunda fase da Retomada, não sendo diferente com a Turma da Mônica, que o utilizou para captar cerca de 78% do orçamento do filme, que viria de fomento indireto.
Esse artigo, ainda sim, tem dualidades: a empresa distribuidora que faz uso dele pode escolher em qual(is) filme(s) deseja apartar o valor. Afinal, se há a possibilidade de escolha, por que não investir no filme em que foi apostado o retorno financeiro? Por esse motivo, acredito que a empresa que investiu nessa produção do Maurício de Sousa deva ter sido a UIP, United International Pictures, pertencente à Paramount Pictures e à Universal Studios, distribuidora do filme no país.
Mas, afinal, por que filmes da Turma da Mônica não foram produzidos na década de 1990 apenas com o Artigo 1º da Lei 8.685? Por que apenas em 2004, dez anos após a lei? Deve-se levar em consideração que, em 2001, a Agência Nacional do Cinema (ANCINE) foi criada e, em 2003, foi fundada a Associação Brasileira de Cinema de Animação (ABCA), ambas fundamentais para desenvolver o setor. Além disso, os efeitos de cada ação aparecem tardiamente no cinema de animação, devido ao tempo extenso de produção de um filme de animação. Por isso, nesse campo específico, a Retomada se deu de forma mais lenta, porém, gradual, iniciada, primeiramente, por uma constância de um filme anual a partir de 2004, até o lançamento de sete filmes de animação em salas de cinema em 2017 e, a partir disso, uma média de 2.4 filmes por ano até 2022 (ANCINE).
Assim, após essa breve análise, é possível conectar a retomada do cinema de animação brasileiro, em específico às suas causas: estímulos estatais, apoio de empresas públicas, criação de associações de indivíduos do setor. Aos poucos, o meio da animação foi se construindo e reconstruindo após o vácuo que a extinção da Embrafilme deixou. Cine Gibi conseguiu gerar lucro apenas com a renda obtida nas salas de cinema, desconsiderando a posterior comercialização em home video e digital. Isso é um grande encorajamento para as majors e para o Estado investirem no setor. E o fator gerador de empregos. Existe, sim, público para animação. E, para além de existir público, Turma da Mônica forma público. Forma futuros profissionais. Desde a infância. Geração após geração. Esses resultados, para além dos números, deveriam ser mais considerados quando se pensa nas condições para investimentos em filmes.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Paulo Sérgio. Revista Filme. Retomada, 20 anos depois. Rio de Janeiro, 2015. Disponível em: http://www.filmeb.com.br/sites/default/files/revista/revista/revistafestivaldorio2015_versaowe b.pdf Acesso em: 19 out. 2023.
BRASIL, MP 2228-01 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/2228-1.htm. Acesso em: 19 out. 2023.
BRASIL, LEI No 8.685, DE 20 DE JULHO DE 1993. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8685.htm. Acesso em: 19 out. 2023.
CINE GIBI DATURMA DA MÔNICA, Consulta Projetos Audiovisuais. Disponível em: https://sad.ancine.gov.br/projetosaudiovisuais/ConsultaProjetosAudiovisuais.do%3Bjsessioni d=89516E904F3F3CB721692DA05EC153A6?method=detalharProjeto&numSalic=040022 Acesso em: 21 out. 2023.
CARTA DE TIRADENTES (2023). Disponível em:
https://midianinja.org/news/1o-forum-de-tiradentes-apresenta-carta-com-recomendacoes-para
-melhorias-no-audiovisual-brasileiro/ Acesso em: 25 out. 2023.
A RETOMADA DO CINEMA BRASILEIRO: UMA ANÁLISE DA INDÚSTRIA CINEMATOGRÁFICA NACIONAL DE 1995 A 2005. BORGES, Danielle dos S. (2007)