Trabalho escrito por Martin Vallio, estudante do Instituto de Arte de Laranjeiras pelo Curso de Bacharelado em Teatro, em disciplina do professor Gledson Mercês. Editado por Pedro Lauria, editor geral do OCA-UFF.
Martin é ator do sertão paraibano, estudante do curso de Bacharelado em Teatro, na CAL, e questionador sobre os efeitos da centralização do mercado artístico no eixo Rio-São Paulo.
A telenovela, ou novela, é um gênero que surge no Brasil sem grandes pretensões, com curtas temporadas de exibição, inicialmente adaptadas da radionovela. No entanto, elas impulsionaram o processo de construção da TV Brasileira e demonstraram ao longo de sua História ser capaz de gerar hábitos, promover discussões pertinentes à sociedade, assim como contribuir e influenciar no desenvolvimento de uma identidade nacional.
Em dezembro de 1951, tivemos, na TV Tupi, a exibição da primeira telenovela brasileira. A trama intitulada “Sua vida me pertence” teve duração de 15 dias, sendo exibida todas às terças e quintas-feiras, com capítulos ao vivo e distribuição local, dando início a uma fase de experimentação e adaptação. Um período marcado por quedas e ascensões, fracassos e sucessos históricos, passos ousados e injustiças arquivadas.
“Sua Vida me Pertence’’ é considerada a primeira novela brasileira e foi apresentada pela TV Tupi, de São Paulo, com Walter Foster e Vida Alves fazendo o par principal. Além de protagonista, Walter Foster também escreveu, produziu, e dirigiu a novela. Tempos difíceis aqueles… Como era redator e chefe de elenco, decidiu escalar a radioatriz para o beijo inaugural da TV nacional que, embora casto, gerou protestos de todos os tipos contra a imoralidade que ameaçava os lares do país. (ALENCAR, 2002, p. 19).
No período entre 1951 e 1960, segundo Bonventti (2017, p.6), “apesar da precariedade da programação da televisão brasileira nos seus primeiros anos de vida, a disposição e perseverança de funcionários e contratados venciam sempre a técnica. Foi um tempo em que tudo estava por ser feito, e a precariedade foi driblada pela criatividade.” Assim, a telenovela, se inicia tímida, sendo exibida apenas dois dias da semana. Segundo Jambeiro (2002, p.53), “nos anos 50 a televisão era operada como uma extensão do rádio, de quem herdou padrões de produção, programação e gerência, envolvidos num modelo de uso privado e exploração comercial”, e que, em 1963 ganha, exibição diária com “2-5499 Ocupado”, produzida pela extinta emissora dos Wallace Simonsen, TV Excelsior.
Extinta – apesar de ter sido pioneira e extremamente inovadora, trazendo, em seus 10 anos de existência, a primeira ideia de televisão industrial no Brasil. A Excelsior era responsável pelos mais altos salários do mercado, por introduzir o conceito de programação vertical e horizontal, romper o padrão da linguagem do telejornal e ser responsável por um dos maiores investimentos na teledramaturgia brasileira. Em 1965 ela produz a telenovela “A deusa vencida”, escrita por Ivani Ribeiro, que marcou a história da teledramaturgia brasileira “com texto totalmente brasileiro para a televisão” (ALENCAR, 2002, p. 21), se posicionando politicamente contra o regime militar e passando por retaliações, censura, e criminosos incêndios, que culminaram no fim da emissora, em 1970.
Apesar de Ivani Ribeiro ter marcado a história da televisão com a primeira teledramaturgia com texto brasileiro, foi Beto Rockafeller, três anos depois que
inaugurou essa fase de ‘brasilidade’ nos enredos (…) exibida pela TV Tupi em 1968, e que proporcionou uma proximidade com o cotidiano vivenciado pelos telespectadores, ocasionando uma identidade brasileira nos enredos das telenovelas. A partir do êxito dessa telenovela, as emissoras de televisão e os novelistas começaram a deixar para trás o formato capa-e-espada, isto é, as estórias e as personagens que fugiam da realidade de seu público.” (SILVA, J. L. B. L, 2020, p. 5)
Inclusive, suspeito que o movimento de busca de expressão de uma suposta brasilidade nas telenovelas, tomando como base para esse pensamento o comentário do Dramaturgo Dias Gomes, pode ter influenciado o afastamento de uma das responsáveis por grandes sucessos da TV Globo, a cubana Glória Magadan:
“Certa vez sugeri a Janete (Clair; novelista e esposa de Dias Gomes) propor (a Glória Magadan) uma temática brasileira, com personagens brasileiros, em seu próximo trabalho. A resposta de Glória Magadan: “O Brasil não é um país romântico. Um galã não pode se chamar João da Silva, tem que se chamar Ricardo Montalban, Alberto Limonta ou Ferdinando de Montemor”. O afastamento de Glória Magadan permitiu que se banisse das telas da Globo os Limonta e os Montemor, dando lugar aos Joões da Silva e a uma série de experiências que lançariam as bases de uma teledramaturgia brasileira.” (GOMES, 1998, p. 257-258).
Com a saída de Glória Magadan da TV Globo, temos a ascensão de Janete Clair, em 1970, com “Irmãos Coragem”; e Dias Gomes, em 1973, com “Bem Amado”, sendo esta a primeira telenovela em cores da TV Brasileira. Demonstrando, assim, a qualidade e evolução da teledramaturgia da TV Globo que, nesse momento, tinha como sua principal concorrente a TV Tupi, com obras de Ivani Ribeiro, como: Mulheres de Areia (1973), A Barba Azul (1974), A Viagem (1975), O Profeta (1977), Aritana (1978), entre outras.
A escalada no número de produções e o início da exportação de telenovelas impulsionaram a TV Globo a estabelecer uma divisão de horários e reorganizar sua programação com base no público. Assim, adaptações literárias como “Escrava Isaura”, de Gilberto Braga, eram exibidas às 18hrs, e dedicadas a donas de casa. Enquanto isso, títulos exibidos às 19hrs, como: Estúpido Cúpido (1976), Locomotivas (1977), Feijão Maravilha (1979), Guerra dos Sexos (1983-1984) e Vereda Tropical (1984-1985), contavam com temáticas mais românticas e humorísticas, pois eram dedicadas ao público jovem. E, para enredos mais densos e tramas com temas mais voltados para questões de relevância rural e urbanas, com maior proximidade da vida real, como: Os Gigantes (1979-1980), Pecado Capital (1975), Dancin’ Days (1978), Pai Herói (1979), Água Viva (1980), e Roque Santeiro (1985), foi dedicado o horário das 20hrs que na época era considerado o horário nobre da TV Globo (apesar de hoje ser popularmente conhecido como “horário da novela das nove’’). E, por fim, para tramas intensas e enredos repletos de sensualidade, como Gabriela, de Walter George Durst, 1975, foi dedicado o horário das 22hrs.
Além das produções da TV Globo, é importante salientar que o trabalho desenvolvido por outras emissoras também contribuiu de forma relevante para a solidificação da teledramaturgia brasileira. Como exemplos:
- TV Bandeirantes, com: Cara a Cara (1979), A Deusa Vencida (1980), Cavalo Amarelo (1980), Meu Pé de Laranja Lima (1980) e Os Imigrantes (1981).
- A extinta TV Manchete, com: Dona Beija (1986), Carmem (1983), Kananga do Japão (1989), Pantanal (1990), A História de Ana Raio e Zé Trovão (1991), Tocaia Grande (1995), Xica da Silva (1996) e Mandacaru (1997).
- SBT, que, apesar de focar na importação de teledramaturgias estrangeiras, chegou a investir em produções nacionais, como: Brasileiras e Brasileiros (1990), Éramos Seis (1994), As Púpilas do Senhor Reitor (1995), Os Ossos do Barão (1997), Fascinação (1998) e Amor e Revolução (2011).
- TV Record, que, apesar de ter contribuído de forma mais intensa para o firmamento da música popular brasileira através de grandes festivais de MPB, contou com produções de sucesso, como: O Espantalho (1977), Louca Paixão (1999), Roda da Vida (2001), A Escrava Isaura (2004), Prova de Amor (2005), Cidadão Brasileiro (2006), Caminhos do Coração (2007), Amor e Intrigas (2009), Poder Paralelo (2009), Chamas da Vida (2011), Pecado Mortal (2013), Os Dez Mandamentos (2015), Escrava Mãe (2016), Apocalipse (2017-2018), Jesus (2018-2019), Topíssima (2019), Amor sem Igual (2019-2020).
Assim como no período da implementação da televisão no país, que, com o investimento do Estado na área da telecomunicação, tiveram pela primeira vez a oportunidade de concretizarem seus objetivos de integração do mercado (ORTIZ, 2001, p. 128), hoje o Estado continua sendo um dos maiores anunciantes, e as emissoras continuam buscando ter boas relações com o governo ou quem está no poder, pois “o governo, através de suas agências, detém um poder de ‘censura econômica’, pois ele é uma das forças que compõem o mercado” (ORTIZ, 2001, p. 121).
Em relação ao papel social das novelas nos dias atuais, também continua muito similar aos períodos iniciais. Pois, apesar de hoje não termos mais em funcionamento a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), instaurada em 1968, pela Ditadura Militar, a qual afetou e impossibilitou diversas produções, censurando ações artísticas e culturais que estavam na contramão do posicionamento dos governantes militares, a novela ainda é um produto mercadológico. Logo, é “imposto” que apresente um conteúdo aceitável pela sociedade. Sendo assim, críticas e questionamentos relevantes e pertinentes ainda continuam, muitas vezes, sendo expressos de forma subliminar e velada. Com isso, seguimos em uma velocidade intermediária (que, no meu ponto de vista, poderia ser bem mais acelerada), trazendo dramaturgias com temáticas pertinentes para a atual sociedade brasileira, mas sem o aprofundamento potencial e necessário de/para determinadas temáticas. Dessa forma, contribui-se para a construção de novos – e a revisão de antigos – valores e comportamentos morais e sociais, mas com foco muito maior nas demandas do mercado do que nas demandas da vida real.
E se a partir dos anos 2000 as novelas brasileiras ocuparam lugar na grade de programação muito similar ao que foi construído entre os anos de 1963 a 1970, pela TV Excelsior e, posteriormente, entre 1970 a 1990, pela TV Globo, hoje, as mídias digitais e as plataformas de streaming estão trazendo remodelações para esse formato. Assim, nesse momento, a televisão brasileira, que era presente em 96% dos lares brasileiros em 2013, (IBOPE, 2013), passa uma fase de transição técnica – mas que traz questionamentos também da ordem ética e moral. No futuro, acredito que voltaremos a nos inspirar no passado e corrigir os erros do presente. A televisão e as mídias contemporâneas estão cada vez mais conscientes que não há espaço para desenvolver e manter um sistema de produção e produções que pautam apenas a demanda de um mercado com cor, sotaque, classe, e interesses individuais bem definidos e imutáveis, sem atender às demandas latentes do povo brasileiro.
Demandas essas que inspiram criadores independentes nos interiores do país, que se fortalecem através de movimentos regionais, e não veem mais como possibilidade que a História da arte e das grandes produções no Brasil se resumirem, quase que exclusivamente, ao eixo Rio-São Paulo. Assim como não aceitar mais que a força de trabalho, as possibilidades de capacitação, e o capital do setor da economia criativa fique concentrado em uma porcentagem territorial tão pequena em relação à dimensão continental do Brasil.
Acredito, ainda, que, tais movimentos, hoje espalhados pelo país sem uma elaborada organização estrutural, irão culminar no desenvolvimento de um projeto em comum e de uma estrutura sólida que se retroalimenta e se renova nas mais diversas camadas e formatos, e fortifica um sistema de produção democrático, participativo, colaborativo, diverso e livre das represálias e limites mercadológicos; e, ainda assim, terá potencial de escala global, gerando uma verdadeira revolução do povo para o povo.
REFERÊNCIAS
BONVENTTI, Rodolfo. DO PIONEIRISMO AO CONFRONTO COM A DITADURA MILITAR BRASILEIRA. O APOGEU E A DECADÊNCIA DA TV EXCELSIOR*. Anuário Metodista de Comunicação, São Paulo, v.21, n.21, 2017. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/AUM/article/view/9125/6851. Acesso em: 4 nov. 2023.
SILVA, J. L. B. L. da. TELEDRAMATURGIA BRASILEIRA: UM PANORAMA DESSA EXPRESSIVIDADE NO CONTEXTO BRASILEIRO. Revista Água Viva, [S. l.], v. 6, n. 1, 2021. DOI: 10.26512/aguaviva.v6i1.31982. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/aguaviva/article/view/31982 . Acesso em: 4 nov. 2023.
COCA, Adriana. AS RUPTURAS DE SENTIDO NA TELEDRAMATURGIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA. Revista Fronteiras – Estudos Midiáticos, v. 17, n. 2, 2015. DOI: https://doi.org/10.4013/fem.2015.172.11. Disponível em: https://revistas.unisinos.br/index.php/fronteiras/article/view/fem.2015.172.11/4737 . Acesso em: 4 nov. 2023.