Crítica escrita por Pedro Paulo Santoro.
Pedro é estudante de Cinema e Audiovisual na Universidade Federal Fluminense e é grande entusiasta do audiovisual nacional e sua preservação.
Letterboxd: @bwasmomf
Sinopse: Vai e Vem é um documentário brasileiro dirigido por Fernanda Pessoa e Chica Barbosa que acompanha duas amigas em meio à pandemia da COVID-19. Uma delas está no Brasil, e a outra nos Estados Unidos, e se correspondem à distância por meio de vídeos gravados para se atualizarem sobre suas vidas ao longo de um ano. Porém, há um diferencial: cada vídeo deve ser gravado tomando como inspiração uma cineasta de filmes experimentais. Nas gravações, cada amiga apresenta suas esperanças, medos e preocupações – passando por temas como política e imigração – enquanto, durante o processo, se atentam para as mulheres ao seu redor.
Uma série de traumas paira sobre o mundo. Talvez o mais recorrente deles, e raiz de muitos outros, seja a onda de governos conservadores e negacionistas, que se multiplicaram desde a última década. Com eles, também vieram as consequências de suas administrações e, dentre elas, as mazelas advindas de tal negacionismo governamental durante a maior pandemia do século. Esses traumas impregnaram muitas obras cinematográficas nos últimos anos, nas quais cineastas usaram seus trabalhos como divãs, não só expondo nas telas os seus anseios, como também, por vezes, confundindo introspecção com autoindulgência. Vai e Vem (Fernanda Pessoa e Chica Barbosa, 2023) acerta em estabelecer, desde o início, que o que parece se tratar de uma conversa envolvendo apenas duas amigas (as protagonistas/diretoras) proporciona, também, um profundo e sincero diálogo com os espectadores.
Fernanda Pessoa (Histórias que Nosso Cinema (não) Contava) e Adriana “Chica” Barbosa (Madrigal para um Poeta Vivo) dão continuidade e desenvolvem o que começaram no curta metragem Igual/Diferente/Ambas/Nenhuma (2020) ao trabalhar com vídeo-cartas. No longa, elas operam a partir de três “regras”: 1) Elas só se comunicarão através de vídeo-cartas até o final do ano; 2) Cada carta deve ser inspirada, seja por forma ou conteúdo, numa cineasta experimental; 3) As respostas precisam ser feitas em até 3 semanas. Levando em conta esses parâmetros, o filme se inicia com uma carta de Fernanda, marcada pelos panelaços e manifestações de repúdio ao governo Bolsonaro na segunda metade de 2020 no Brasil. Neles, a diretora enquadra o interior de seu apartamento em planos detalhe com hiperzoom e os arredores em planos abertos, o que serve para construir o retrato de uma São Paulo que nunca esteve tão cinza. Chica, imigrante recém-chegada aos Estados Unidos, responde entre espaços vazios e objetos espalhados em sua nova casa, enquanto Ana Kasparian e o canal do Youtube Now This, vociferam o cenário político do país comandado por Donald Trump.
A situação de ambas, mesmo que talvez não tenha elementos de identificação instantânea, logo abre espaço para que o espectador entre e se sinta parte daqueles microcosmos. São reflexões que misturam a universalidade e coletividade das situações políticas e de cunho social com a intimidade do psicológico e emocional delas, num balanço entre o micro e o macro de suas vidas. Nesse equilíbrio, os espectadores são convidados a acompanhar recortes de pontos específicos, sendo moldados pela forma como são mostrados. Mais do que o discurso textual, é o discurso estético que se sobressai, sobretudo quanto à compreensão do próprio filme. São as texturas, as referências artísticas, a diversidade de vozes o que traz a verdadeira identificação.
Quase uma colcha de retalhos, o filme passeia por gêneros e experimentos formais, contrastando não só a visão das duas sobre determinados acontecimentos, mas também os ambientes em que estão inseridas e como elas interagem com ele. Exemplo maior disso é o segmento que mostra a virada de ano de Fernanda, em tom cômico, com ela fazendo uma espécie de vlog para redes sociais, um “diário do fim do mundo” e, no dia primeiro de janeiro, espanta-se quando suas simpatias não dão certo. A reposta de Chica é uma documentação dos efeitos da invasão ao Capitólio no dia 6 de janeiro de 2021 e o quão cíclico os ataques à democracia parecem ser. Apesar de tons completamente distintos, uma montagem astuta faz com que a transição de um para o outro não pareça brusca. Usando inspirações que vão de Joyce Wieland a Paula Gaitán, elas demonstram que essas vozes bem heterogêneas se complementam e dão dimensões ao que é exposto.
Uma particularidade importante é o foco dado às vivências das várias mulheres existentes no convívio das duas, mostradas, mesmo que rapidamente, com muitas das suas camadas. São exibidas tanto as suas preocupações, erros e obstáculos, como também sua resistência e, principalmente, sua coletividade. A sororidade é a espinha dorsal do filme, com destaque para a força e o apoio que essas mulheres encontram umas nas outras, mesmo depois de se decepcionarem entre si (o segmento de Chica falando da sua mãe vem logo em mente). Tudo isso está demonstrado em tela, seja em forma de entrevistas diretas, citações ou imageticamente (mostrando conivências, a presença de desconhecidas nos protestos, etc).
Talvez pela saturação, devido ao grande número de obras (ou mesmo pelo curto intervalo de tempo em que saíram), trabalhos audiovisuais sobre os traumas contemporâneos que assombram o imaginário coletivo me eram pessoalmente ineficientes. Muito era exposto aos espectadores como uma forma de jogar suas frustrações neles, ao invés de fazer uma reflexão intimista sobre esse período conturbado. Dessa forma, é admirável que um convite para conviver com as realizadoras como espectador me tenha sido mais eficiente para traduzir sentimentos a respeito desse momento. Ao chamar para perto e propor um diálogo com o público, é difícil não se sentir parte da discussão ao invés de assisti-la de binóculos. Ao acompanhar as conversas mundanas sobre o cotidiano entre essas duas mulheres latino-americanas, é possível tirar pareceres sobre uma infinidade de questões que nos são comuns. Vai e Vem se aproveita desse poder para emoldurar um retrato devastador, mas com fim esperançoso diante do caos provocado pelos períodos recentes.