Texto escrito por Beatriz de Almeida Filizola, estudante de Cinema e Audiovisual da UFF, para a disciplina Estudos de Cinematografia Estrangeira I, do professor Daniel Pinna.
A animação japonesa na construção do tecno orientalismo
O Tecno Orientalismo se caracteriza por um fenômeno de idealizar a Ásia e asiáticos em termos hipo ou hiper tecnológicos em produções culturais e discursos políticos. Vale destacar, ainda, que o conceito de Orientalismo, por Said, seria de que o Oriente só existe enquanto sua existência for útil para o Ocidente. Assim afirma, também, Ueno: “a base do orientalismo e da xenofobia é a subordinação dos Outros através de uma espécie de espelho de conceitos culturais.”
Nesse contexto, as obras Akira e Ghost in The Shell foram escolhidas por representarem dois dos maiores sucessos da animação japonesa no exterior, bem como por retratarem assuntos em comum: um futuro distópico, a forte presença do ser-máquina e a representação do Japão como dispositivo da estética da destruição. Além disso, busco aqui compreender de que forma o próprio Japão usou da imagem tecno orientalista ou a alimentou nas animações em questão.
Os anos 80 trouxeram grande aumento econômico para o Japão e uma fase crítica para os EUA. Não é por acaso que a aceitabilidade de temas relacionados ao avanço tecnológico tenha aumentado tanto. Na época, conforme eram lançados o mangá de Akira e de Ghost In The Shell, o país era representado mundo afora de forma que ecoava o cyberpunk, em obras como Blade Runner, 1982 e Neuromancer, 1984. Tendo isso em vista, Ueno (2002) afirma que o tecno orientalismo como metanarrativa tenha se tornado um aparato epistemológico para os japoneses se entenderem de forma errônea e para os Ocidentais entenderem outros de forma errônea.
O pós-humanismo
Akira e, mais ainda, Ghost In The Shell, retratam humanoides cujos quesitos de existencialismo e blindagem do corpo são evidentes. Enquanto a jornada de Tetsuo é uma verdadeira aventura em três atos, onde nunca se sabe em quem confiar ou do que cada personagem é capaz, no caso de Motoko, sabe-se muito bem o que ela é capaz de fazer, mas a grande questão é seu conflito interno, toda a ambiguidade e filosofia que vem junto com uma inteligência artificial habitar algo que parece humano, mas não o é. As duas obras trazem “as questões filosóficas de como uma pessoa pode possuir uma alma em uma era cada vez mais tecnológica” (NAPIER, 2005). Fortemente pós-humanistas, ambas as animações põem em questão o reconhecimento da fraude que é o ser humano; da artificialidade das relações sociais. Assim, almeja-se construir um novo entendimento do eu.

O produto
Com temas tão universais que podiam ser exportados com pouca censura, era claro que esses filmes seriam muito bem-sucedidos. O que pouco se imaginava era que, a partir do momento em que essas animações fossem os principais produtos culturais japoneses consumidos no exterior, alimentar-se-iam de forma superficial da noção do país como berço de pessoas ao mesmo tempo que tecnologicamente avançadas, socialmente e psicologicamente incapazes. O fato de que isso ocorre até hoje com mídias japonesas evidencia mais ainda a situação, onde as obras exportadas pelo Japão já contam com esse estereótipo no mercado, inclusive lucrando com ele. É justamente isso que destaca o tecno orientalismo como algo além do Orientalismo, visto que o Ocidente estaria, então, consumindo essa imagem, mas beneficiando e alimentando o Japão, plenamente consciente dessa dinâmica de vender o que se compra.
Na mesma linha, Tatsumi (2008) sugere a ideia do japanoide, que seria um termo para englobar a comercialização de produtos japoneses mundo afora. O autor relaciona o termo Japão com androide justamente pela adaptabilidade do país no pós- guerra ao se deparar com a democratização imperativa americana, numa noção de que o japonês surgiria então como ciborgue, robô.
Essa noção externalizada do que consiste o país e seus habitantes fica bem clara no livro “A Espada e O Crisântemo”, onde Benedict aponta diversos comportamentos e tradições japonesas sem, de fato, ter visitado o país. Assim, forma- se até hoje o costume de assumir coisas sobre o Oriente sem de fato conhecê-lo, seus idiomas, costumes e hábitos, numa dinâmica de entrar em contato com o outro, mas não encontrá-lo de fato. Um forte exemplo disso é no filme Ilha dos Cachorros (2018), de Wes Anderson, onde é retratado um Japão tecno orientalista e, acima de tudo, incompreensível e distante: nenhuma fala em japonês possui legendas, e os protagonistas são cachorros que falam inglês, atuados por pessoas brancas. Inclusive, essa noção de um contato e não-encontro é similar à descrita por Oda (2022): “Talvez haja contato entre os dois lados, mas nunca há um encontro, muito menos uma experiência esquisita. Assim, equívocos se acumulam”.
A identidade do corpo-máquina e da mulher-ciborgue
Justamente por aparecer num contexto da animação, o ser híbrido, não- humano, Tetsuo ou Motoko, tende a ser mais bem visto e compreendido do que num live action. Não existe a concretibilidade de uma ameaça tão real e humana. Inclusive, é intencional que o espectador se coloque no lugar das personagens nessa busca por respostas. A prova disso é que o inimigo em Akira é, de fato, o próprio Tetsuo, apesar de que sua falta de controle sobre si é apresentada como forma de fazer com que o telespectador entenda as motivações do personagem.
No entanto, a combinação do Ocidente associar japoneses a seres disformes ou robóticos acaba por torná-los os dois num grande Outro. Enquanto todos os corpos fílmicos replicam essa distinção entre forma e conteúdo, corpos animados, sendo eles mais abstratos do que a “realidade” diegética que representam, tendem a colocar esta distinção em evidência (SILVIO, 2006, p. 115). Assim, nas duas obras, o que eram animações japonesas com reflexões pós-humanistas se tornaram também pioneiras no uso do corpo asiático para enfatizar o robótico, o uncanny, o ciborgue. Isso é perceptível de forma clara quando partimos para a versão live action de Ghost In The Shell, onde a atriz não é japonesa, talvez justamente numa tentativa racista de aproximar os telespectadores ocidentais de forma subjetiva à protagonista, que seria, caso japonesa, mais distante, mais “outra”.
Além disso, a mulher-ciborgue, clichê este que aparece em mais de oitenta mangás e animes, representa ainda que o único Outro mais distante do Ocidente que o japonês ciborgue é a mulher japonesa ciborgue. O uso de moldes idênticos ao corpo feminino sem nenhuma utilidade para a personagem enquanto inteligência artificial em Ghost In The Shell demonstra a intenção em coisificar o corpo feminino, distanciando- o mais ainda do público de ficção científica japonesa, majoritariamente masculino. Em adição a isso, a existência da protagonista como algo a ser olhado e consertado, como uma matéria bruta sob o olhar do homem, reflete o falocentrismo presente na obra, ainda mais enfatizado pela sequência que abre o filme, que alterna repetidamente entre cenas do corpo nu da personagem e de números e códigos binários, aspectos que, juntos, compõem um estranhamento máximo em relação à mulher japonesa ciborgue.

Conclusão
As narrativas de Akira e de Ghost In The Shell retratam o que acontece quando o humano não possui mais um senso de si. Enfatizada seja por superpoderes ou por máquinas, nossa impotência diante do que fazemos com o planeta nos assombra na vida real e na ficção. E os diretores Otomo e Oshii foram mestres ao representar isso. É difícil se rebelar contra formas de poder quando elas detêm toda a tecnologia que torna a sua vida o que é, e há algo de atual nisso.
Em relação à representação do ser disforme como protagonista narrativo japonês, ainda há muito a ser compreendido no que diz respeito aos estereótipos e controvérsias envolvendo o tecno orientalismo das obras analisadas. Um Japão e um contexto histórico que já não se aplicam mais, e produções ocidentais que bebem dessa fonte de forma racista e imperialista devem revisitar suas referências.
Referências
AKIRA. Direção: Katsushiro Otomo, 1988.
Blaker, Michael. Asian Survey. Vol. 36, No. 1, A Survey of Asia in 1995: Part I (Jan., 1996), pp. 41-52 (12 pages) Published By: University of California Press
GHOST in the Shell. Direção: Mamoru Oshii, 1995.
KYOMITSU, Yui. Japanese Animation and Globalization of Sociology. Sociologisk Forskning, Vol. 47, No. 4, p. 44-50, 2010.
LONGO, Angela. Pós-humanismo na máquina anímica. UFRGS. Porto Alegre, 2017.
MULVEY, Laura. Prazer Visual e Cinema Narrativo. 1ª Edição. Tradução de João Luiz Vieira. In: XAVIER, Ismail (org.). A Experiência do Cinema: antologia. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1983, pp. 437-453.
NAPIER, Susan J. Anime from Akira to Howl’s Moving Castle: Experiencing Contemporary Japanese Animation. New York: St. Martin’s Griffin, Updated Edition, 2005.
Oda, Masanori. “Welcoming the Libido of the Technoids Who Haunt theJunkyard of the Techno-Orient; or, The Uncanny Experience of the Post-Techno-Orientalist Moment.” The Uncanny: Experiments in Cyborg Culture: Experiments in Cyborg Culture. Ed. Bruce Grenville. Vancouver: Arsenal Pub Press, 2002. 249–273.
SILVIO, Carl. Animated Bodies and Cybernetic Selves: The Animatrix and the Question of Posthumanity. In: BROWN, Steven T. Cinema Anime. New York: Palgrave Macmillan, p. 113-138, 2006.
TATSUMI, Takayuki. Gundam and the Future of Japanoid Art. In: LUNNING, Frenchy (Ed.). Mechademia 3: Limits of the Human. Minneapolis/London: University of Minnesota Press, p. 191-198, 2008.
Ueno, Toshiya. “Japanimation and Techno-Orientalism.” The Uncanny: Experiments in Cyborg Culture. Ed. Bruce Grenville. Vancouver: Arsenal Pulp Press, 2002. 223– 236
STATISTA. Anime Movie Opinions By Gender. 2020. https://www.statista.com/statistics/1095810/anime-movie-opinions-us-by-gender/
Robot Girl, TV Tropes. 2023. https://tvtropes.org/pmwiki/pmwiki.php/Main/RobotGirl