Crítica escrita por Ernesto Loaiza para a cobertura do 25º Festival do Rio.
Sinopse: Em 1940, duas crianças do povo indígena Krahô encontram na escuridão da floresta um boi perigosamente perto da sua aldeia. Era o prenúncio de um violento massacre, perpetuado pelos fazendeiros da região. Em 1969, durante a ditadura militar, o Estado brasileiro incita muitos dos sobreviventes a integrarem uma unidade militar. Hoje, diante de velhas e novas ameaças, os Krahô seguem caminhando sobre sua terra sangrada, reinventando diariamente as infinitas formas de resistência.
“Eu acho que eles já pegaram os filhotes de arara”, diz uma das crianças Krahô ao notar uma árvore com rastros de escalada. Desde a infância, os Krahô deparam-se com a realidade de que suas terras são desrespeitadas e seus bens roubados, e a de que deverão resistir a essa violência, lutar por isso. Assim, A Flor do Buriti (2023) narra as diferentes formas de resistência indígena, ao longo das últimas décadas, até chegar nos dias de hoje, enquanto aborda as transformações do povo Krahô, com muita sensibilidade na direção e na montagem que, com ritmo lento e, por vezes, contemplativo, constrói desde o suspense que paira sobre os Krahô até o íntimo espiritual e político das personagens.
Há um plano, logo no início do filme, que merece destaque para indicar a construção desse suspense que acompanha os povos indígenas. É de noite quando a aldeia entoa uma canção sob as estrelas para o Buriti, espécie de palmeira simbólica para esse povo. A selva, um pouco mais distante da clareira, é escura e densa, e ouvem-se apenas os sons de insetos, de pássaros e do balançar das folhas. Porém, em um plano fixo que mostra algumas árvores de baixo para cima com o céu estrelado atrás, de repente, em pouquíssimos segundos, é tomado por uma luz circular, que parece ser de uma lanterna. O corte seco que é feito conecta o segmento do tempo passado com o do tempo presente, e, compreende-se, ao longo do filme, a história por trás desta luz de lanterna que corrompe o território dos Krahô, revelando um controle do suspense por parte da direção. Mais tarde, o filme apresenta um dos tantos relatos de ataques impiedosos à aldeia, no caso, quando um grupo de fazendeiros realiza uma chacina em um dia festivo, demonstrando a situação contemporânea dos Krahô.
Aliás, essa alternância na temporalidade das narrativas é intrigante. Aqui, mesclam-se encenações do passado, com figurinos e adereços de época, com documentais do presente, em que os Krahô se organizam para participar dos atos do Acampamento Terra Livre, o maior encontro anual de povos indígenas do país, em abril de 2022. Durante dois terços do filme, acompanha-se o dia a dia do povo Krahô, principalmente pelo ponto de vista de Ilda Patpro, jovem que acompanha a política brasileira pela internet, e Francisco Hyjnõ, o pajé, que organiza a viagem enquanto pensa no parto de sua esposa, Crowrã, e vigia uma criança que com forte espiritualidade. O ritmo devagar, alternando passado e presente, com conversas entre vários integrantes da aldeia, faz com que no momento em que Patpro e Hyjnõ vão para Brasília a agitação visual e sonora da multidão contraste com potência, fazendo com que a magnitude do evento seja realmente apresentada. Além do mais, o filme imerge tanto na intimidade, nos anseios, na história da aldeia Krahô, que, quando apresenta milhares de indígenas de todo o país em protesto, nota-se, além do peso político do ato, as diferentes percepções, entre Patpro e Hyjnõ, do evento. Para Patpro, isso simboliza esperança na resistência, local de encontro com seus “parentes”, oportunidade de engajar-se. Já Hyjnõ, mesmo impressionado com o evento, sente-se deslocado, deixa de ter seus sonhos costumeiros e pensa ansiosamente em voltar para a aldeia e acompanhar o parto de sua filha.
É claro, a diferença geracional é crucial nessa diferença de percepção, até pela proximidade que Patpro tem com a internet. Hyjnõ, no entanto, sabe, assim como seus antepassados sabiam, que a transformação é inevitável e necessária — é preciso, também, aprender com os filhos e netos. Os ritos e costumes vão adaptando-se com o tempo, e mesmo que a conexão espiritual continue sendo cultivada, as formas organizacionais adequam-se, cada vez mais, ao contexto social do presente. Se os cupes, homens brancos, invadem as terras indígenas e roubam suas riquezas, há de se fazer guarda, levantar cercas. Hoje, na contemporaneidade, se o Governo é conivente com os inúmeros problemas referentes aos povos indígenas, esses diferentes povos unem-se para, em atos políticos, reclamar os seus direitos naturais, que tanto tentam atacar.
A Flor do Buriti mostra que a transformação e a luta andam juntas na cultura dos povos ameríndios; os opositores persistem, com diversas formas e em diferentes tempos, desde colonizadores, fazendeiros, traficantes e até políticos. Contudo, sempre nascerão mais indivíduos para resistir. Aliás, o próprio nascimento é celebrado não só pela nova vida, mas também pela chegada de mais um para lutar, como cantam na fantástica cena final do filme, o parto de Crowrã: “chama outro, mais um, mais um guerreiro”.