Nos dias 19, 20 e 21 de outubro, o Centro de Artes da Universidade Federal Fluminense trouxe, em cartaz, a mostra Crias do FBCU (Festival Brasileiro de Cinema Universitário), que consistiu na exibição de curtas-metragens selecionados para alguma das mais de vinte edições do evento, bem como de debates com convidados ligados à história do mesmo. Produzida, coordenada e organizada por discentes das graduações em cinema da própria UFF, a principal questão putada pelo projeto fora a celebração de filmes e vivências que a inciativa do FBCU proporcionou ao longo dos anos. Mais do que isso, talvez, a experiência há de se provar muito rica para o retorno do festival no ano que vem em seu formato mais conhecido – após um hiato de quase meia década –, já que trouxera diversas questões sobre as quais irei me debruçar nesta coluna e que se apresentam como desafios palpáveis à qualquer empreitada. Já aproveito para agradecer pelo convite feito ao Observatório de Cinema e Audiovisual por parte dos responsáveis para produzir essa cobertura, sendo sempre muito solícitos com a nossa publicação.

Trago, neste texto, conversas com Eduardo Valente, Tetê Mattos, Alice Name-Bomtempo, entre outros nomes de realizadores, e com membros da organização do Crias também. Ademais, algumas impressões acerca dos filmes e provocações que pensei serem pertinentes também estarão postas. Para tanto, pautei-me em algumas produções acadêmicas que acredito serem bastante ricas em suas colocações. Sendo o primeiro festival com o recorte de filmes universitários em território brasileiro, muito se discutiu sobre sua relevância em diferentes esferas setoriais e momentos críticos para o audiovisual brasileiro. Em breve contexto, o projeto teve sua fundação no meio da década de 1990, numa parceria entre a Universidade de São Paulo (USP), a Fundação Armando Alvarez Penteado (FAAP) e, claro, a própria UFF. À época, esses três eram os únicos cursos de graduação de cinema no Brasil, uma vez que o departamento da Universidade de Brasília (UnB) estava passando por dificuldades e não ofertava a abertura de novas turmas. Em 2011, talvez o auge do FBCU, foram exibidos mais de 500 filmes de escolas de cinema, de todos as regiões do Brasil. Contudo, fica a questão de como se destacar dentro de um cenário que traz bem mais de uma centena de cursos na atualidade, sendo que vários deles possuem propostas similares de evento competitivos, com workshops e ações sociais.

Sete filmes, duas sessões

Antes de trazer a conversa que tive com Thiago Medeiros (que, entre outras funções, desempenhou o trabalho de curador), respostas essas as mais basilares para compreendermos essa empreitada em novo formato, proponho uma contextualização a respeito das sessões de abertura e de encerramento do evento, pois são elas que dão a base para a maior parte das minhas impressões sobre o Crias. Na primeira, o recorte apresentou ao público obras dos primeiros anos do festival e, na segunda, trouxe filmes de anos mais próximos ao momento histórico de hoje. Contudo, um mesmo elemento estético-narrativo surgiu destacado em ambas e me pareceu ligá-las de forma íntima: um trabalho de fabulação na mise-en-scène que se torna o principal meio pelo qual os personagens compreendem e são compreendidos por seus cosmos, ditando as possibilidades sobre as quais as poéticas dos diretores se apresentam. Na sessão dedicada às obras mais antigas, composta por Um Sol Alaranjado (2001), de Eduardo Valente, Era Araribóia um Astronauta? (1998), de Tetê Mattos, O Metro Quadrado (2002), de Flavia Candida, e Alvorecer (2002), de Marcelo Ikeda, esse ponto me pareceu se desenvolver de forma a sugerir que a fabulação se trata de um elemento alienante e disfuncional.

Em Um Sol Alaranjado, acompanhamos uma jovem cuidando do pai decrépito e em estado catatônico, numa rotina sufocante e privada de lazer e contatos externos ao da casa em que habita. Essa vivência do dia-a-dia, porém, também proporciona o afeto do progenitor à moça, ou pelo menos é assim que ela demonstra encarar. Seu pai não consegue acordar sozinho, comer, tomar banho ou ajudar nas tarefas domésticas – mas, ao assistirem à TV juntos, de noite e de mãos dadas, isso a faz sorrir radiante. Um novo dia se inicia. Dessa vez, os closes salientam que cada ato dela é, sim, genuíno e feito por amor, e que não deixam de ser uma relação compulsiva por isso também. O dia termina mais uma vez em frente à televisão e com as mãos dos dois entrelaçadas. No próximo, mais uma rotina cansativa. Ao contrário, porém, a garota encontra o pai dormindo no sofá quando termina de varrer o chão. Vemos a frustração em seu rosto nesse momento. Ela toma as mãos do homem nas suas, mesmo com ele desacordado, e assiste à TV. Mais ciclos se passam e, a partir de uma progressão narrativa que se aproveita do P&B e da falta de diálogos muito bem, o diretor consolida o ambiente da casa como representativo da melancolia daquela mulher. Até que o pai morre, e a filha não consegue deixar de cuidar dele – seu corpo sendo carregado como se fosse capaz de mimetizar a alma de alguma maneira; a única vida que a personagem conhece se repetindo, mesmo sem sentido. Surge, daí, o plano mais singelo do filme, com a protagonista aceitando o fato e olhando, sozinha, por uma janela para a rua. A moldura dentro de quadro remete à TV, mas ao invés dos jornais, propagandas e jogos de futebol, ouvimos as crianças (um clichê para a esperança, mas que se torna funcional aqui) correndo e brincando. Ela sorri. Fade to black.

Foi a vez, a seguir, de Era Araribóia um Astronauta?, documentário divertidíssimo e bem-humorado sobre ufólogos ganhando os holofotes da mídia no que um estranho acontecimento toma Niterói: surgem rastros misteriosos e inexplicáveis nas praias da cidade! Os círculos concêntricos ‘perfeitos’ evidenciam que vida originária de outros planetas habita entre nós, argumentam os personagens – e o filme todo é feito de forma escrachada e se deleita com a situação. As gags visuais, por exemplo, vão de montagens que brincam com a História da cidade, sugerindo que algum E.T. poderia ter passado por aqui há tempos, a ‘entrevistas’ nas quais pessoas céticas são interrompidas pelo aparecimento de um boneco de alienígena. Nesse contexto, o curta trabalha de forma crítica as crenças infundadas das pessoas em mitos. Retornando à montagem, há um corte no final em que sai do grande culpado pelos círculos, um senhor com os seus sessenta, setenta anos que demonstrava como produzira as marcas para a câmera, e chega num homem que acredita na tese dos extraterrestres. Este argumenta, contrariado, que aqueles círculos não são tão perfeitos quanto os primeiros (não é óbvio isso?, ele questiona) e que não fazia sentido a mídia divulgar a notícia de forma tão sensacionalista num dia e deixar a manchete morrer no outro. A primeira parte causou riso nos espectadores presentes durante a exibição; já a segunda, nem tanto.

Sigamos para O Metro Quadrado. Nele, a diretora apresenta a seguinte premissa: e se, numa sala de repartição pública, da noite para o dia as paredes passassem a se aproximar umas das outras, encolhendo o espaço com os trabalhadores dentro? É a partir de uma excelente decupagem que ficamos presos junto a eles nessa claustrofobia. No início, apenas as mesas quebram e sequer vemos isso acontecer em tela, mas quando a coisa escalona, temos cinco ou seis corpos dentro de quadro – próximos, exaustos e suados. A sensação é de arrepiar. Contudo, a sacada aqui parte do pressuposto de que eles poderiam, tranquilamente, sair da sala se quisessem, e só não o fazem por medo de não conseguir voltar para o trabalho depois. As condições insalubres as quais o povo é submetido e sua alienação quanto a isso são os alvos do comentário da vez. Tal ideia se escancara, ainda mais, quando um dos personagens teoriza que a coisa toda teve início muito provavelmente porque indivíduos das salas aos lados empurraram suas paredes para ganhar mais espaço. Na conclusão, talvez haja certa ingenuidade por parte do roteiro, mas não posso dizer que isso fuja ao tom do projeto. Os personagens descobrem que devem empurrar as paredes de volta para suas posições originais, todos juntos, como meio de reverter a situação. E eu digo que a resolução conversa com tom do projeto, talvez o maior destaque da obra, porque ele sabe muito bem atravessar a proposta com leveza. Mistura-se a estética noir dos anos 40 com as narrativas seriadas de espião dos 60 de maneira exageradamente maravilhosa. O resultado é uma comédia absurdista de grande qualidade.

Por fim, Alvorecer se utiliza da captação digital, que dava seus primeiros passos no Brasil dos anos 2000, para propor um experimentalismo formal muito autoral. Depois de alguns planos do começo do filme, as cortinas de uma janela de apartamento são enquadradas e se abrem para os prédios construídos no quarteirão da frente. Essa primeira imagem, que poderia cair no território da banalidade, permite que encontremos outra dimensão de sensibilidade por conta de sua duração prolongada e do que surge a seguir. O filme é composto por closes em objetos pertencentes a uma vida não narrada no sentido convencional do conceito, mas que é sintetizada através desses ‘fiapos’ (em algum momento de fato surgem fiapos em cena) e da música que versa sobre a ideia de mundano e embala a montagem. É essa dimensão diária e, sim, repetitiva que parece que interessar a Ikeda. Porém, o mais curioso uso de linguagem se dá ao final do curta e a partir de uma panorâmica. Em seu movimento, as mesmas cortinas do início, agora fechadas, a câmera se volta para a televisão que está ao lado, na sala. Encontramos mais uma vez os prédios do outro lado da rua, filmados através do mesmo ângulo de antes, mas reproduzidos em VHS. O onirismo da imagem digital versus a sua própria mimese sem vida é a imagem-síntese aqui. Ambas qualidades do cinema inerentes ao modo de fazer, é o que me parece que o filme conclui.

Foi muito interessante compreender quais questões estavam sendo articuladas nesse período da virada dos anos 1990 para 2000. Pode até não ter sido intenção dos diretores propor discussões nos termos de uma fabulação, mas, levando em conta que o trabalho da curadoria é também produzir sentidos e ressignificações de obras (algo que eu acredito já ter me alongado bastante na cobertura da mostra Pesadelo na Tela), ainda assim isso foi o que mais me saltou aos olhos.

Os filmes dos realizadores mais jovens apresentaram outras abordagens simbólicas e estratégicas, ainda nesse mesmo assunto. Em BR3 (2018), de Bruno Barreto, Ensaio Sobre Minha Mãe (2014), de Jocimar Dias Jr., e Todas as Memórias Falam de Mim (2015), de Alice Name-Bomtempo, a fabulação se apresenta como uma possível libertação para os personagens, de um mundo muitas vezes confuso, cruel, mas, ainda assim, potente nos encontros que proporciona com o belo.

BR3 pensa a sua história a partir de espaços sociais periféricos. Em específico, trabalha com o universo de pessoas transexuais que se prostituem para garantir um teto sobre suas cabeças. Um travelling da protagonista caminhando pelas ruas, com sua mala, até a casa que servirá de nova moradia abre o curta. No local, a vemos interagir com a dona do imóvel através de uma câmera da mão, e, depois, quando têm a primeira conversa acerca de “começar”, a direção faz uso do tripé. Até esse momento, o filme adota uma estética que se tornou comum a diferentes trabalhos com temáticas semelhantes em âmbito nacional. Os planos mais longos e contemplativos (e sóbrios em tom) propõe uma temporalidade íntima e muito humana. Contudo, uma tendência que cresce a cada ano e desponta em realizadores como Leonardo Martinelli é a de abraçar gêneros considerados historicamente como alienantes e fazer deles a principal força da obra. Esse é o caminho que BR3 trilha. Logo após essa última conversa que descrevi, temos uma cena musical, na qual montagem e direção se embalam junto à personagem – sobe o som e ela canta livremente numa praça da cidade. Assim, ao retornarmos para o regime anterior de representação, temos uma cena de encerramento ainda mais potente por ser precedida por essa breve intervenção. Um certo tableau que concentra os sonhos de uma parcela da população de forma muito bonita e sensível, mas não por isso menos agitada e aberta a processos de estilização formal.

Ensaio Sobre Minha Mãe constrói imagens e sons líricos, que vão desde uma cena musical até outra que abraça a fantasia por completo. Acompanhamos, nesse filme, uma mulher solitária por não poder contar com o marido. Típico homem que se vê como o trabalhador que provê, ele demonstra acreditar que não precisa ser carinhoso ou ajudar com as tarefas de casa. A protagonista, contudo, decide que merece mais do que a vida lhe oferece e, tendo o filho saído casa, toma uma atitude quanto a isso. Nesse ponto, vale mencionar que também há uma crítica direta à televisão na obra, através do culto evangélico que prega que “o que Deus uniu, nenhum homem pode separar”. A música cantada e que traz essa letra, contudo, se torna um meio para a personagem se expressar apesar das palavras: é através dela que a mãe demonstra sua realidade interior e anseios de uma vida melhor. Por exemplo, sua voz fica vacilante quando o marido chega em casa no meio do filme e passa a cantar de forma desafinada junto a ela, sem cumprimenta-la ou fazer menção de possuir afeto. Nós logo compreendamos seus motivos, é o que quero dizer. A mãe vai embora no meio da noite e chega, na imagem onírica que serve como último plano, em uma praia com sua mala debaixo do braço. Ela sai literalmente do mar e se aproxima da câmera, fitando o horizonte antes que rolem os créditos.

Todas as Memórias Falam de Mim traz, a partir de um regime documental de arquivo, diversos relatos de pessoas identificadas, em sua maioria, apenas pela voz. As personagens fabulam em narrações, pensando o que teria sido de suas vidas caso tivessem tomado outros caminhos, ou sobre como carregam sentimentos conflitantes de culpa e desejo. As imagens nos colocam em estado de suspensão em cada uma das histórias. Vemos aqui, na verdade, a utilização de imagens-sínteses para representar as perspectivas que acompanhamos em cada seguimento. Não necessariamente as histórias conversam entre si, cabendo ao dispositivo, guiado por essas imagens, ser o fio-condutor da narrativa. O primeiro plano que surge é desacelerado e possui uma cor vibrante: trata-se de uma pessoa num bondinho sorrindo. Em outro momento, uma vela encerra determinada história de luto. As ligações entre tais imagens de arquivo com relação às memórias também não são óbvias. Algumas, de fato, conectam-se sem muita cerimônia (um ambiente narrado surge na tela, como no caso da estação de metrô), mas, em outros, a direção também propõe sua dose de exercício formal. Dependendo do ponto em que me encontrava, as imagens tomavam tanto a minha atenção que eu deixava de me atentar às memórias; já em outros, acontecia o contrário. Em nenhum deles eu senti que isso se tornou um problema. O curta me pareceu a tradução audiovisual de lembranças em constante flutuação, mas, ainda assim, vívidas e poderosas.

Entrevista com a curadoria

Bem, eu resumi essa ideia que propus acima e perguntei a Thiago quais questões haviam conduzido a curadoria da mostra. Também quis saber qual era a sua opinião no diz respeito ao emprego da fabulação no cinema brasileiro contemporâneo.

Thiago Medeiros: “O ponto de partida da curadoria, na verdade, não foi muito pensado na perspectiva estética dos filmes. Foi mais essa questão do ponto de encontro entre as pessoas que passaram, de uma geração, com as pessoas que estão aqui e agora. A ideia era colocar filmes que, de diversas maneiras, mostrassem as possibilidades do fazer universitário. Então não passou pela curadoria essa perspectiva estética e narrativa, mas eu concordo muito com o que você está falando e eu estava pensando, assistindo à sessão, aos filmes juntos, em como os filmes são diferentes dos filmes da primeira sessão. São outras questões que a gente está pensando agora. Tem uma coisa que conversa muito com o contemporâneo. Tem uma coisa do videoclipe, tem uma coisa do musical, tem uma coisa das imagens de arquivo, da memória. São muito interessantes essas formas… Lá atrás eles pensavam com pouco dinheiro em como fazer esse cinema universitário, e hoje em dia a gente vê essas estratégias que a sessão de hoje propôs nesses filmes.”

A seguir, o questionei sobre qual discurso o FBCU buscava trazer com essa mostra e também sobre seus pensamentos para o futuro do projeto.

Thiago Medeiros: “É realmente uma questão que a gente foi pensar fazendo a curadoria, já que, primeiro, são vinte e uma edições, e, segundo, a gente não tem acesso a todos os filmes. Então a curadoria partiu, a princípio, da leitura da sinopse nos catálogos, que estão no nosso acervo digital e físico. E é muito abstrato e subjetivo [o] que tirar das sinopses. A gente foi, ali, meio que tentando pensar pautas que são mais relevantes hoje em dia, como ‘será que esse realizador é negro?’, ‘será que essa realizadora é mulher?’, ‘será que esse filme conversa com a periferia?’, ‘será que esse filme conversa com sexualidade, com corpos dissidentes?’, e, a partir disso, tanto que tem muitos filmes da Filmes de Plástico, por exemplo… tem filmes da Juliana Vicente também… a gente foi tentando pensar em como articular esse passado, essa história que, claro, tem vários espíritos do tempo, tem várias problemáticas, mas que representam, de certa forma, o fazer universitário e a potência do fazer universitário, não é? Então, a gente pensou em como articular isso para, ao mesmo tempo em que mostra a relevância do fazer universitário, mostra a relevância do festival em si de trazer esses filmes, e o festival vai se refirmando como um espaço importante de difusão. E o que a gente quer a partir disso é realmente gerar esse pontapé, esse reinício do festival através da mostra. E não vai ser só essa mostra. A ideia é que ela seja parte do festival em si. Que ela seja um produto que a gente possa aplicar em diversos estados, em diversos lugares. Então é a partir dessa ideia, desse registro do encontro entre gerações, que a gente possa pensar junto com esse público novo. Porque, por exemplo, o último FBCU foi em 2019. Então, a geração de 2020, 2021 não faz ideia do quê que é o FBCU. Essa mostra parte desse princípio de colocar esses realizadores com os estudantes, e essa é a ideia que a gente quer pensar para o futuro, sabe? A partir desse encontro, pensar nas possibilidades. Então, eu acho que é realmente esse momento de encontro, de troca, para a gente pensar esse futuro, de como trazer esse público, o que esse público quer, que filmes são esses, que realizadores são esses e começa com o contemporâneo. Com o Bruno Ribeiro, que veio hoje, com o Jocimar Dias Júnior, com Alice Name-Bomtempo… Esses e outros nomes. Então é isso que a gente quer agora: juntar essa galera para gente pensar juntos o futuro. Inclusive com outras universidades. Tentando fugir da UFF. Remetendo ao que foi no passado.”

Entrevista com os realizadores:

Tendo a oportunidade e esse panorama geral, perguntei aos diretores das obras exibidas na sessão de encerramento sobre como eles encaram as estratégias de fabulação no cinema nacional e sobre quais eram as suas impressões acerca das diferenças de abordagem geracionais.

Bruno Barreto: “Existem muitas estratégias de fabulação e, ciclicamente, o cinema brasileiro sempre vai renovando suas estratégias. A gente se inspira muito em outras gerações… Às vezes na nossa própria geração ou em gerações muito próximas, mas, na verdade, o cinema, desde o início da sua existência, sempre teve estratégias de fabulação. E, ao mesmo tempo, pelo próprio aparato, que é um aparato de registro de uma matéria concreta em frente à câmera, se é que você vai utilizar a câmera: a fabulação pode, inclusive, estar em um documentário talking heads. Mas, quando eu penso nessa sessão de hoje, quando eu penso nos filmes do Jocimar e da Alice, eu vejo também um interesse em explorar isso cinematograficamente. De realmente propor a partir de um certo conceito, de um certo dispositivo. De ver até onde o filme pode nos levar sem necessariamente ter uma preconcepção tão forte do que ele mesmo vai ser. Muito do que eu vejo em safras de filmes mais contemporâneos, principalmente curtas-metragens, são obras que, sim, abraçam a fabulação enquanto algo primeiro, ali, dentro da estratégia do filme… Mas eu também vejo muitas vezes tendo quase uma certa pregação de uma necessidade de se ater a uma realidade, sendo que a própria ideia de realidade fora do filme é algo subjetivo. A gente não vai perceber o mundo e a realidade sempre da mesma forma. Então, eu penso que, de certa forma, a fabulação está em tudo. Se você tem consciência de que o filme é esse campo da fabulação, independente do seu controle, da sua rigidez, isso pode te permitir um divertimento maior com o fazer. Mas, enfim, isso aí já sou eu pirando um pouquinho.”

Alice Name-Bomtempo: “Pegando alguns ganchos: você [Bruno] foi mais geral, então eu vou para coisas mais específicas. Cinema não é necessariamente contar histórias, mas produzir algo a partir do mundo – e eu acho que isso é fabular, mesmo que busque ser o mais próximo da realidade possível. Eu, pessoalmente, fui cada vez mais me aproximando da fantasia, da ficção especulativa. É algo que nesse filme [Todas as Memórias Falam de Mim] não está de maneira explícita, ainda que haja fabulação, e eu acho que passa por aí. Eu me lembrei muito de uma fala da Ursula K. Le Guin, que é uma autora de ficção científica: “a realidade é uma questão de imaginação”, e acho que atravessa isso. E, pensando que o cinema brasileiro contemporâneo vem tendo uma produção maior de fantasias, de filmes de terror, ainda meio tímida com relação ao que poderia ser, é verdade… Num contexto independente, às vezes ficam meio entre o que seria o cinema de autor e o comercial, deslocados. Mas que eu acho que eles também trazem uma reflexão a partir de um “e se” mais esticado. Todo o processo é uma fabulação, então está sujeito a essas transformações. Eu, pessoalmente, acho que é saudável a gente se afetar por isso e não ficar preso. A mim, não interessa muito fazer um filme que tenha certeza. Se eu tenho certeza de uma coisa, vou num bar conversar sobre isso. Eu vou fazer uma coisa concreta sobre isso. Dá muito trabalho fazer um filme para afirmar coisas que eu já sei, mas eu entendo que têm outros filmes e pessoas que não são assim.”

Jocimar Dias Jr.: “O que eu diria em relação à fabulação é que, às vezes, quando a gente fala de fabulação a gente se refere a uma coisa do senso comum, de uma fábula, de uma história de conto de fadas. Mas eu acho que pensar fabulação nesses filmes [da última sessão], do meu, pelo menos… A gente estava trabalhando muito essa dimensão da fabulação no sentido das potências do falso, e eu acho que é inevitável pensar no Deleuze. A fabulação não é uma coisa que é falsa, aqueles personagens não estão vivendo uma falsidade. É a potência do que eles conseguem imaginar, do que eles conseguem sonhar. Isso não vai necessariamente salvar eles, no caso da minha mãe no filme [Ensaio Sobre Minha Mãe]. É um filme muito mais cíclico, tem uma dimensão das questões materiais que impedem que as coisas mudem, mas, ao mesmo tempo, existe um sonho. Existe aquela imagem de sair da água, sair do mar, para que possamos imaginar um futuro diferente, uma outra coisa que não é o que está dado. Então, uma dimensão do fabular que o cinema brasileiro contemporâneo trabalha muito é o quê que a gente pode fazer junto para burlar o sistema e tentar criar uma outra dimensão que, de repente, até vira realidade? O cinema brasileiro dos últimos 10 anos tentou muito fazer isso.

E eu só queria comentar que eu sinto muita inspiração, no meu filme, dos filmes do Allan Ribeiro. Se a gente pegar Esse amor que nos consome… é um filme muito importante para pensar o dispositivo desse filme, de como tratar de uma história real e pensar em como criar um dispositivo que conte ela de uma forma totalmente mecânica e artificial, mas que mesmo assim consiga atingir algum tipo de emoção no público. E aí você falou do Martinelli e eu lembrei de um curta muito lindo do Allan, que é o Brilho dos Meus Olhos, que tem a ver com isso. É um trabalhador que está na obra da zona norte e que tem um momento em que ele extravasa através do musical. Então tem essa dimensão de um cinema universitário que está trabalhando com o musical como uma forma de inventar outros mundos. Eu acho que tem mais a ver com os nossos filmes [meu e do Bruno], mas eu acho que o coro de vozes da Alice também inventa outras coisas. Através daquele choque de mundos.”

Outras Três Sessões

As outras sessões da mostra se dividiram em Panorama 2000Panorama 2010 e Sal Grosso. As duas primeiras contaram, como obras exibidas, com Como Comer um Elefante (2009, Rio de Janeiro), de Jansen Raveira, O Corpo da Carne (2012, Distrito Federal), de Marisa Mendonça, Fantasmas (2010, Minas Gerais), de André Novais Oliveira, A Galinha que Burlou o Sistema (2012, São Paulo), de Quico Meirelles, Lembranças de Maura (2013, São Paulo), de Bruna Lessa, Filme de Sábado (2009, Minas Gerais), de Gabriel Martins, Contagem (2010, Minas Gerais), de Gabriel Martins e Maurílio Martins, Só Sei Que Foi Assim (2018, Rio Grande do Sul), de Giovanna Muzel, Rebento (2019, Bahia), de Vinicius Eliziário, e Cores e Botas (2010, São Paulo), de Juliana Vicente – filmes muito diferentes em estética, narrativa e poética. Desempenharam, ambas, muito bem a função de reapresentar as últimas duas décadas do FBCU para o público, portanto. Em geral, eu gostei bastante dos curtas e alguns deles se tornaram referência não só no cinema universitário. Eu perdi as contas, por exemplo, de quantas vezes assisti a Fantasmas na graduação ou em cursos de cinema. De certo, foram mais de três. Já Contagem me proporcionou um agradável segundo encontro. Dentre todos, na verdade, apenas Rebento soou para mim como deslocado do restante.

A obra apresenta não apenas uma relação de proposta/execução técnica díspar das demais, como também não consegue encaixar sua sensibilidade na história contada. Trata-se de um filme arquetípico em narrativa, com personagens supostamente esféricos e trama com começo, meio e fim, mas, ao contrário da forma clássica, a coisa toda aqui cai na obviedade e no lugar-comum. Já sabemos, desde a primeira cena (um travelling que acompanha protagonista e antagonista verbalizando sobre quem são), que estamos diante de uma história de gravidez na adolescência, e que esse menino que iremos acompanhar fora abandonado pelo pai quando nasceu – eis o conflito do curta. Não que uma história precise de mais de um ponto de resolução (“curtas-metragens devem vencer por nocaute”, diria um professor de roteiro em livre-adaptação da famosa frase de Julio Cortázar), mas aqui não há nada que fuja ao texto do roteiro. Na verdade, quando a direção resolve se aventurar no regime da representação, acerta numa moralidade para lá de questionável. Por exemplo, ao posicionar o antagonista como um jovem que fuma maconha sem camisa e solta pipa nas lajes da favela – são estereótipos de um vagabundo que não possui camadas que estão sendo colocados em jogo aqui. Poderia se argumentar que a questão é social e que isso não está tanto na conta dos personagens, mas não me parece que o filme fuja a uma ideia, inclusive de classes, de quem são seus arquétipos. Se há um problema, é possível apontá-lo sem corroborar para a perpetuação do mesmo.

E, para encerrar a discussão sobre os filmes, na sessão Sal Grosso os curadores selecionaram as obras GOD.O.TV (2002), de Carlos Dowling, Procurando Falatório (2003), de Luciana Tanure, Concerto Número Três (2004), de Marco Dutra, Sobre a Maré (2005), de Guile Martins, Esconde-Esconde (2007), de Alvaro Furloni, e Impermanência (2019), de Bárbara Roma. O recorte teve como base o projeto homônimo do FBCU que, pelo menos no início, unia as equipes de diferentes filmes e instituições que foram premiados no ano anterior de modo departamental (o melhor diretor assume essa posição em um curta produzido para o evento do ano seguinte, e assim por diante). Alguns experimentos se destacam mais, como o de Dutra, mas, em geral, todos ficaram num lugar um tanto impessoal (e com isso eu não quero dizer que faltou estilo), sem conseguir dar a volta e se sustentar como filmes. A proposta é para lá de interessante, mas imagino que o processo de produzir com uma equipe montada pelo próprio festival, em um tempo curto e trazendo muitas visões diferentes acerca de certos temas, tornou os filmes um tanto convolutos. Não achei eles ruins, de forma alguma, só creio que talvez as próximas edições pudessem repensar o formato para que reflita uma autoria maior e mais íntima de seus realizadores.

Uma Antiga Geração a Casa Torna

Dia 19, eu entrevistei três dos quatro diretores que tiveram seus filmes exibidos: Tetê Mattos, Flavia Candida e Eduardo Valente. Com eles, quis falar sobre as áreas de atuação que desempenham, dentro, claro, do universo do FBCU. Tetê é professora na UFF e uma das maiores referências nacionais em pesquisa de mostras e festivais, Flavia é curadora conhecida por seus trabalhos de impacto e Eduardo venceu o primeiro prêmio de Cannes de melhor filme produzido numa escola de cinema, além de ser comissário do Festival de Berlim no Brasil.

Baseando-me em seu artigo escrito em coautoria com Antonio Leal, Festivais Audiovisuais Brasileiros: Um Diagnóstico do Setor (2009), perguntei a Tetê qual era a importância histórica e simbólica da produção de eventos como o FBCU para o audiovisual brasileiro. E, aqui, a ideia era a de que o contexto universitário fosse mesmo colocado em pauta, visto que, na pesquisa supracitada, afirma-se que as principais contribuições de festivais para o setor são a movimentação econômica expressiva que proporcionam, gerando empregos, prestação de serviços, pagamento de impostos, renda, etc., e um apelo a causas sociais. Em ambos quesitos, uma inciativa nesse formato e que ocorre a partir de cursos de graduação possui menor capacidade de competição com outros de mesma modalidade. Os próprios produtores do FBCU, ao longo dos três dias (e talvez além do ponto), frisaram que possuem parcerias pontuais para o ano que vem e que estão atrás de levantar dinheiro para fazer acontecer.

Tetê Mattos: “O festival [de cinema universitário] é fundamental para a formação dos jovens; de uma primeira experiência; de um contato com os pares – enquanto você está começando a pensar seus filmes, também está conhecendo muita gente. E eu penso que tem uma coisa muito importante, nessa produção universitária, que é a liberdade. Muita liberdade de criar, de ousar… Falando até por mim mesma: o filme [Era Araribóia um Astronauta?] foi feito no contexto universitário e era exatamente o que eu queria fazer, em 16 mm, com 27 minutos… Nessa juventude, você vem com o frescor de cinema. E é o início, também, da formação de cineastas que vão, depois, atuar no mercado. Mesmo ele não tendo um sintoma econômico que a gente veja de forma tão direta, ele está impactando nessa formação. E eu sou muito fã desses espaços de encontro, de troca dos festivais. Eles são grandes mobilizadores do cinema.”

Marco Antônio Bonatelli: E, na sua opinião, um festival universitário deve adotar uma curadoria autoral, pensando em como terá impactos mais diretos em questões estéticas e de linguagem, ou deve ser mais amplo e buscar por outros objetivos?

Tetê Mattos: “Eu só trabalhei no FBCU, mas é interessante partir de uma ideia panorâmica para se conhecer o que está sendo produzido e não por isso deixar de trabalhar esteticamente com os filmes. Claro que cada festival vai ter um perfil. Antes, quando o FBCU foi criado, ele era o único festival [de cinema universitário do Brasil], então era muito importante mostrar o que estava se produzindo não só no país, mas também nas mostras internacionais. Talvez, com a pluralidade hoje dos festivais universitários, faça sentido ter outros eventos que acabem dando um perfil mais específico, até para diferenciar um pouco do que já tem, mas isso fica muito a cargo de cada grupo que cria um festival.

Agora, você tocou em uma coisa que eu também acho que é muito interessante, porque também é uma experiência de exercício curatorial que acontece ali, para um grupo que está começando a organizar um evento. Essa experiência da produção, de pensar o que é a cara do evento, ou fazer esse exercício de selecionar os filmes… de que critérios adotar… e a própria crítica e cobertura são uma maneira de estar formando futuros profissionais que vão atuar na área. O festival também impacta nesse sentido. Pegando até o grupo que esteve à frente desse festival universitário, olha como tantos deles vão atuar no campo da exibição: a Flávia na curadoria, o Alex produz outro festival, o Eduardo Valente, que é também curador, foi atuar nas políticas [públicas de fomento], então o FBCU forma pessoas.”

Eu questionei Flávia Cândida sobre quais desafios ela pensava que se colocariam diante do FBCU em sua retomada, levando em conta sua experiência como coordenadora do evento durante mais de uma década e sua percepção sobre o cenário atual do audiovisual. Além disso, perguntei se ela poderia, de forma genérica, dar uma dica para os alunos da UFF e dizer o que acredita ser importante caso um filme queira se destacar aos olhos da curadoria de um festival.

Flávia Cândida: “Os desafios do FBCU estão alinhados com as políticas públicas de fomento, porque, nos últimos anos, a gente viabilizou o evento através dos editais de apoio a mostras e festivais. Eu acho que é se ligar nisso. Esse ano teve edital da RioFilme e a SAV [Secretaria do Audiovisual] já vai voltar no ano que vem com políticas de apoio a mostras e festivais. Então, o FBCU tem que estar alinhado a essas políticas. A gente frequentava muito as reuniões da Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas; a gente sabe como esses encontros ajudaram a construir políticas públicas para o audiovisual aqui no Rio de Janeiro. Eu penso que vale estar ligado com isso… Voltar a frequentar essas reuniões, onde se tem um pensamento nesse sentido. Ajudar a reconstruir o que foi devastado nos últimos anos.

E o que um filme precisa trazer? Cara, eu lembrei de uma vez, quando voltei a fazer o Curta Cinema em 2011, e tinha um comitê gigantesco e muito louco de pessoas que vinham de fontes diferentes. A Paula Barreto – que é ex-aluna da UFF também, bem anterior à minha geração, mas a gente ficou amiga fora da instituição –, falava assim: ‘cara, pensa nisso que você quer fazer sendo exibido na tela do Odeon. Você acha que segura uma sessão? Segura o interesse de pelo menos dez, vinte, trinta pessoas? De 10% da sala?’ Isso na época em que o Odeon tinha 600 lugares. Então vá com tudo. Chame os seus e vá com tudo.”

Tendo sido selecionado para um festival de cinema, como fazer dessa participação efetiva para se dar os próximos passos na carreira? Pensei que Eduardo Valente poderia ser a pessoa certa para responder a essa questão, bem como sobre pontos a serem considerados antes de inscrever um filme em algum edital de seleção.

Eduardo Valente: “Rapaz, eu acho que a coisa começa pela participação, porque um festival de cinema é um ambiente onde sempre se encontra muita gente parecida com você: que tem projetos, que tem novas ideias, que quer partilhar… Então, eu acho que a primeira coisa é, como você falou, inscrever [o filme], ser selecionado e frequentar festivais. Inclusive quando não tiver com filmes passando. Porque são ambientes onde você vai trocar, vai encontrar, vai fazer relações – que muitas vezes vão durar. Então, eu acho que mais do que pensar num plano de carreira, necessariamente com passos, eu acho que essa é uma questão de estar fazendo parte desse tipo de ambiente. A nossa geração, por exemplo, que se conheceu no início dos anos 2000, no fim dos anos 90… todo mundo fica em contato até hoje. Fizeram muitos projetos juntos simplesmente por terem se conhecido e trabalhado juntos. Então, acho que o principal é a participação mesmo. É sair de casa.”

Por fim e retomando o tema das gerações , perguntei sobre as principais diferenças do momento histórico no qual ele se inseriu durante a graduação, quase trinta anos atrás, com relação ao atual.

Eduardo Valente: “Cara, eu acho que a grande diferença e eu acho que a gente tem que enxergar sempre positivamente em relação ao presente é que gente tinha pouca estrutura naquele momento. No geral, para o cinema brasileiro era um momento difícil do meio para o fim dos anos 90. Os cursos de cinema eram poucos. As oportunidades de trabalho eram poucas… Então, assim, a gente meio que tinha que criar e inventar as nossas próprias oportunidades, como foi com o FBCU – que é uma inciativa dos alunos para alunos. Eu acho que as novas gerações têm a vantagem de que muitas dessas coisas estão melhor colocadas agora. Você tem mais de cento e cinquenta cursos de Cinema e Audiovisual pelo Brasil. Tem um mercado de trabalho efetivo entre TV, streaming, cinema… Várias oportunidades diferentes. Festivais mesmo, há vários. Então, a estrutura está muito melhor colocada, só que, às vezes, isso tira um pouco esse sentido da urgência. De perceber a preciosidade de determinadas situações… como o próprio FBCU era para a nossa geração como ponto de encontro, como ponto de saber o que cada um está fazendo e se apoiar. Então, eu acho que tem que usar o que está a favor nesse momento, que é um sistema, um meio audiovisual como um todo, muito mais vantajoso, com muito mais oportunidades do que antes, mas não deixar, também, isso levar a um certo desânimo, a uma certa sensação de que não tem nada a ser feito. Tem muito a ser feito, sempre. Agora, tem que também buscar engajar. Para a gente, era muito importante essa ideia, por exemplo, do curso de cinema antes de tudo. O curso de cinema da UFF estava o tempo inteiro muito engajado ao redor do FBCU. O FBCU não pode nunca ser a iniciativa de algumas poucas pessoas, entendeu? Ela tem que ser uma iniciativa do curso. Eu não digo isso no sentido que todo mundo tem que estar envolvido na produção, mas que a produção e a divulgação têm que estar o tempo inteiro trazendo os alunos e os participantes do curso para dentro dele, porque isso vai ajudar ele a ganhar corpo.”

E Outras Também

Em Cinema é Celebração: A cena de exibição de cinema e audiovisual independentes do Rio de Janeiro na virada dos anos 2000 (2022), dissertação de Thiago Nogueira Carvalho pela Federal do Rio de Janeiro, o autor afirma que a geração fundadora do FBCU pode ser definida como composta por jovens ‘anárquico-idealistas’. Esses jovens, ainda segundo o pesquisador, buscaram por maneiras de levar a uma mudança no cenário nacional, que era pouco favorável a eles, para que houvesse projetos que fugissem àqueles já consolidados. Hoje, o esforço se provou frutífero e diversos nomes, como a professora Tetê colocou em sua resposta, se inserem no mercado e fomentam a cultura e a economia do país. Contudo, a mostra Crias do FBCU teve, nos dois primeiros dias, uma falta de engajamento do público universitário. Entrando numa roda que se formara diante do Cine Arte, logo antes da terceira sessão, quis saber de alguns nomes que ou ajudaram a fundar o festival ou estiveram à frente dele em outras edições se a falta de engajamento do público, em uma semana acadêmica, deveria gerar um sinal de alerta para os organizadores com relação ao festival do ano que vem.

Roberta Sauerbronn: “Teve baixa adesão ontem?”

Marco Antônio Bonatelli: Teve.

Julia Couto: “Quantas pessoas?”

Marco Antônio Bonatelli: Tinha mais gente na produção do que gente que veio assistir aos filmes.

Julia Couto: “Mas quantas?”

Marco Antônio Bonatelli: Vinte, trinta pessoas no máximo.

Roberta Sauerbronn: “A gente tem que falar de conjuntura político-social…”

Julia Couto: “É, isso é importante.”

Roberta Sauerbronn: “Não é simples assim.”

Julia Couto: “E não é único do FBCU. É uma questão do cinema brasileiro: a baixa adesão do público, principalmente depois da pandemia, se deu porque cinema é uma produção cultural baseada em hábito, e a gente passou dois, três anos consumindo filmes em casa. Criou-se uma grande quantidade de streamings, de conteúdo disponível nessa modalidade sob demanda, de TV doméstica. Então é uma questão nacional…”

Roberta Sauerbronn: “Não é só no Brasil, é no mundo todo. A baixa aderência às salas de cinema não é um problema só aqui. A pandemia piorou um problema que já vinha acontecendo. Na nossa época, para a gente assistir ao filme do coleguinha tinha que vir ao festival de cinema. Hoje você vê o filme no seu celular, porque o coleguinha digitaliza e manda pra você na hora. Então tem uma outra conjuntura que esses jovens vão ter que entender sobre como lidar com ela, mas não é porque a UFF tem baixa aderência. As pessoas mudaram seus hábitos de consumo de cultura, de consumo de arte. Talvez vejam até mais filmes agora. Mas estão vendo de outra forma. O espaço do festival é um espaço muito rico, é um espaço muito importante de troca, mas ele tem que ser construído e mantido. É ótimo que eles tenham feito essa chamada, ótimo que eles tinham feito a mostra aqui, mas vai ter que se manter um trabalho constante. Eles vão ter que ficar engajando com frequência, porque senão isso não vai acontecer.”

Julia Couto: “Eu acho que essa pergunta tem uma chave, que é esse aspecto, que eu achei engraçado, do conceito anárquico-idealista. Porque era, de fato, e segue sendo retirado dos festivais de cinema “profissionais”, mainstreaming. Então, precisou se criar esse espaço de exibição, lutar por ele e estabelecer ele como nicho lá atrás. A questão, agora, é que o nicho tem um novo modus operandi. Não é mais tanto combativo e precisa que se mostre estrategicamente, em especial para os estudantes, como esse espaço é rico e como é necessário articular para manter ele vivo, operante e em continuidade. Tem que ser uma iniciativa coletiva. Não se faz mais cinema como se fazia antes. Não se tem mais a mesma quantidade de editais, a lógica de promoção de festivais não é a mesma, mas tem que reinventar. Isso tem que partir deles, porque eles são desse tempo de agora.”

Mencionei, então, a ideia de estratégias não-óbvias que outros projetos adotaram já no pós-pandemia e que deram certo, como aquela dos espetáculos de soundpainting que ocorreram no Centro de Artes há algum tempo. As sessões lotaram, nesse caso. É claro que é preciso levar em conta que a Cine Orquestra possuía apoio da prefeitura e uma estrutura muito mais consolidada para sua divulgação, mas, mesmo assim, conseguir atrair mais estudantes da UFF do que dois dias do Crias me pareceu um tanto estranho. 

Marco Antônio Bonatelli: A partir da experiência profissional de vocês, que um dia fizeram a coisa acontecer, é possível pensar numa guinada nesse sentido, criando novos espaços de cultura para a população?

Guilherme Tristão: “Eu acho que essa pergunta tem que ser feita justamente à nova geração que está implementando agora o festival. Uma das coisas que fez com que o festival universitário, na sua forma antiga, desse uma parada, digamos assim, é que a fórmula que estava sendo carregada, a visão de festival, a visão de como deveriam ser os filmes de universitários e como deveriam ser as discussões sobre eles, estava meio cansada. Cabe agora a esse novo pessoal que está vendo a importância de reunir filmes, divulgar filmes, reunir gente para discutir sobre isso, criar uma forma nova dentro das necessidades da visão do mundo que eles têm e dessa coisa cultural, entendeu? É um desafio! Mas é um desafio que cabe agora à nova geração.”

Marco Antônio Bonatelli: Isso passa por compreender e se inserir na renovação estética do cinema brasileiro contemporâneo?

Guilherme Tristão: “Eu não sei se é só uma renovação estética, mas a própria necessidade do que mostrar, de como mostrar, de como discutir… Qual é o formato do festival? Eu me lembro que um rapaz, naquele ano que eu fui lá no IACS, o João Arthur… O João Arthur teve uma ideia na época que eu achei excelente, porque ele via o festival universitário como uma coisa mais inserida dentro de uma coisa cultural, então não seriam só filmes. Seria uma feira cultural, digamos assim, e que, de repente, você teria poesia, teria a música como você sugeriu agora, desse festival que faz essa relação música-cinema. Quer dizer, seria uma espécie de encontro artístico-universitário, onde os filmes fariam parte, mas não necessariamente de modo competitivo. É uma ideia. Resta saber que outras surgirão e como serão incorporadas à instituição a qual está submetida.”

Seguindo a dica de Tristão, puxei João Victor Magrani e Louise Willner, que atuam na produção e organização do festival, para a roda e perguntei a ambos sobre a baixa adesão de público mais uma vez.

João Victor Magrani: “Cara, eu vejo um certo egoísmo, uma individualidade das pessoas que fazem cinema no Brasil, principalmente cinema universitário, que é uma talvez um pouco falta de maturidade, é uma coisa… Você viu os filmes que são feitos… São sempre filmes sobre experiência pessoal. Talvez a edição passada tivesse uma vantagem que essa retrospectiva não vai ter, já que as pessoas vão inscrever os seus próprios filmes. Então eu acho que começa com essa base, da gente fazer um festival para as pessoas compartilharem o que elas fizeram, e aí tentamos incorporar na produção essa questão do estar, de competir… Pegar essa base de filmes que as pessoas escreveram e aí fazer a curadoria disso de uma forma que consiga construir os valores que a gente quer impor. Que é essa coletividade. Mas eu acho que é difícil lutar contra a natureza humana e esse egoísmo e individualidade. Então, o que a gente pode fazer é fazer um acordo, uma negociação. E, enfim, eu acho que se a gente conseguir fazer um festival que seja construtivo, que seja legal, as pessoas vão vir. Eu acho que começa daí: fazer um festival que seja daora, que seja bacana, e, para isso, a gente precisa de orçamento, que a gente está indo atrás, mas a gente, se conseguir pegar essa base individualista e transformar de uma forma bacana, vai ser um sucesso.”

Marco Antônio Bonatelli: E há estratégias não-óbvias pensadas para serem implementadas, com outras artes inclusas?

João Victor Magrani: “Eu acho que é difícil, porque a gente passou agora por um período de três, quatro anos que estava sem ter nada. Estava parado, o FBCU. Então a gente está meio que voltando agora, e aí partir disso pra essas coisas mais elaboradas, para essas dinâmicas diferentes, para essas experimentalidades, é diferente para gente que é universitário. Só que, óbvio: é super legal ter esse tipo de festival, esse tipo de evento, mas é uma dificuldade que a gente tem de ir atrás de fazer isso. Mas, enfim, eu acho que a ideia é que daqui a dois, três anos, seja incluir esses espaços, essas áreas do audiovisual. Não sei se a gente já pensa nisso, e eu sou da produção, não da coordenação, mas é legal que existe público para isso. Lotou esses eventos, como você falou.”

Pesando mais uma vez que o FBCU teve mais de 500 filmes exibidos em 2011, perguntei se havia um pensamento de trazer de volta esse montante de exibições logo na próxima edição ou se as questões deviam ser outras.

Louise Willner: “É super o nosso objetivo e a gente está trabalhando muito para isso. A gente fez essa mostra agora mais numa intenção de retomada mesmo, de mostrar que a gente existe, que a gente ainda está aqui, que a gente vai voltar. Tanto que na nossa vinheta até brinca: “voltamos… ou quase”. A gente está com muitos projetos, pensando em muitas parcerias. A sessão de hoje, especificamente a do Sal Grosso, é muito importante para gente pensar porque a gente também tem muita vontade de retomar essa questão do FBCU como um espaço de fomento à produção universitária mesmo, de fornecer esse apoio para a produção em si, não apenas como um local de exibição. E também fornecer oficinas, como era nas edições antigas. Então, tem muita coisa sendo planejada e, ano que vem, se tudo der certo, vem aí. Vai ser muito legal, vai ser muito maneiro. Eu tenho certeza de que a galera vai voltar e engajar.”

Considerações Finais

A mostra Crias do FBCU se apresentou como uma celebração de conquistas do passado e como uma evidência do amor irrestrito de todas as partes envolvidas nela. Foi muito bonito ver alguns pares olhos seguindo, por breves momentos, rumo há anos atrás e relembrando as próprias vivências a partir dos relatos dos demais. Contudo, de fato, há várias perguntas que esses organizadores de agora terão de responder com a próxima edição do festival. Algumas surgiram ao longo desse texto. Havia três cursos superiores de Audiovisual no Brasil em 1995, e agora que há mais de cento e cinquenta, tendo vários deles propostas similares ao dessa iniciativa, como se diferenciar? Como fazer com que o público universitário, que no último dia lotou o que eu acredito ter sido mais de meia sala de cinema, compareça, também, nos dias de semana, definindo como prioridade ir ao Centro de Artes numa quinta ou sexta-feira à noite? A finalidade do FBCU é pensar no cinema de formação como um molde ou os organizadores darão um passo a mais, propondo transformações a partir de suas iniciativas?

O público mudou mesmo. O cinema mudou. Mas há maneiras de continuar produzindo de forma ampla e, como disse Eduardo Valente, muitos caminhos a serem percorridos. As pessoas precisam ser conquistas e levadas a crer de novo nas questões que o FBCU propuser em 2024. Isso eu acredito que permanece igual desde aquele tempo, de décadas atrás, até os dias de hoje. Foi como os depoimentos me soaram, pelo menos. Não há dinheiro, mas o espírito permanece? A grande resposta talvez venha daí no sentido de que, ao arriscar uma mudança mais contundente, pode-se flertar com perder de vez o público ou reconquistar o lugar de grande relevância que o FBCU um dia possuiu. Eu sempre sou a favor do manifesto, contudo. Por acreditar que, nisto, a formação da UFF pode ter, mais do que em qualquer outra instância, o seu efeito mais duradouro.

Mal posso esperar para descobrir as respostas que o festival entregará no ano que vem.

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