Texto escrito por Alexandre Berçott, estudante de cinema e audiovisual da UFF, para a disciplina de Teoria e Prática das Narrativas do Professor Pedro Lauria em 2023.1

Do Princípio

Este breve texto se propõe a analisar a representação da brasilidade no cinema brasileiro e a consequente despersonalização dos indivíduos para o tratamento de temas que são, em geral, caros ao meio, sobretudo quanto à fome, à miséria e à violência. Assim, utilizar-se-á, como base, os textos Eztétyka da Fome (Glauber Rocha, 1965) e Sertões e favelas no cinema brasileiro contemporâneo: estética e cosmética da fome (Ivana Bentes, 2007) e, como principais objetos de estudo, Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964) e Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002).

Da Introdução

Glauber Rocha diz que “nossa originalidade é a nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida” (ROCHA, 1965). Então, esse passa a ser um dos princípios básicos do Cinema Novo, que busca desenvolver uma “estética da violência” para elaborar sua linguagem e seu discurso estético-político, com o objetivo de alcançar um cinema independente e brasileiro. Nesse momento, o cinema brasileiro começa a retratar de modo mais direto e com discurso decolonial, tendo em vista as relações colonizador-colonizado, o povo e o Brasil.

Entretanto, tal estética implica no que se pode entender como uma despersonalização dessa “galeria de famintos” em prol de uma tese e de uma linguagem crua que é violenta “antes de ser primitiva e revolucionária” para que “o colonizador compreenda a existência do colonizado” e, “pelo horror, a força da cultura que ele explora” (ROCHA, 1965). A despersonalização apontada aqui não se trata de uma consequência inevitável, mas sim da consequência de se ignorar a individualidade dos seres representados e da construção de “‘sujeitos incompletos’ no sentido de que são excluídas de possuir certas esferas de subjetividade reconhecidas, a saber: a política, social e individual” (KILOMBA, 2008).

Postulada essa estética e esse discurso como influencias fundamentais, o cinema brasileiro retrata e trata essas figuras “famintas” e o que as cerca como temas caros — e destacam-se duas problemáticas: personagens majoritariamente brancas, o que não representa a população brasileira, e a despersonalização. E, com o desenvolver do meio, o cinema pós- retomada esquece os preceitos da “estética da fome”, o que Ivana Bentes defende quando propõe o termo “ cosmética da fome”. Ela ainda aponta que

“passamos da ideia da cabeça e da câmera na mão ao steadcam, a câmera que surfa sobre a realidade, signo de um discurso que valoriza o ‘belo’ e a ‘qualidade’ da imagem, ou ainda, o domínio da técnica e da narrativa clássicas” (BENTES, 2007).

Da Estética da Fome e da Despersonalização

O Cinema Novo é, sem dúvidas, um marco na História do cinema brasileiro e fundamental para a construção do meio cinematográfico do país. Entretanto, o movimento peca, de certo modo, ao retratar a população “faminta”, a qual dispõe tratar de modo a violentar o olhar do colonizador para que este possa enxergar sua existência, que é a existência do colonizado (GLAUBER, 1965), grupo ao qual se incluem os realizadores desse cinema — todos homens, brancos e cisheteronormativos, que tem um olhar de fora, influenciado, ainda que de modo inconsciente, pela perspectiva colonial.

Ao trazer para o protagonismo um sertão seco e cru, Glauber Rocha ainda constrói um certo ambiente mítico em torno desse sertão em Deus e o Diabo na Terra do Sol. A alegoria é um dos princípios fundamentais para compreender o cinema glauberiano. E, talvez por isso, esse ambiente e essa despersonalização das personagens existam — e de forma consciente —, mas, ao postular como intenção do Cinema Novo um cinema brasileiro e radicalmente revolucionário, disposto a trazer a existência do povo à tela, a própria linguagem tira desses indivíduos a condição de sujeito completo.

Quando traz personagens e situações extremamente simbólicas, como o Deus Negro e o seu discurso para a população sertaneja junto aos símbolos e à fé, Glauber alcança o que talvez seja a síntese expressiva do que é a condição dessas personagens que matam para comer,  mas, ao mesmo tempo, reduz sua existência à essa condição — pois se trata da condição dessas personagens e não dessas personagens. Elas são arquétipos do sertão: o cangaceiro, a mulher que teme a morte do marido, o dono de terras, o sertanejo que se revolta, etc. Além disso, há uma certa mitificação desse sertão e dessas personagens, que é evidente quando se observa o enfrentamento entre Corisco e Manuel e se vê a repercussão desse confronto em outras personagens. A figura de Corisco, por si só, evidencia esse aspecto. Embora a construção da fotografia consiga transpor em imagens a sequidão, a aridez e a crueza do ambiente, o mítico e o simbólico se sobressaem, muito por conta do texto — extremamente bem construído, mas inelegível e hermético para a maior parte da população, que tem a urgência da fome.

Dessa forma, a construção arquétipica das personagens age de modo a despersonalizá-los. Tal construção objetiva, também, mediante aos princípios do Cinema Novo, mostrar a crueza do povo brasileiro a ele próprio — o que é bastante contraditório — e ao colonizador. Para isso, retira a camada individual de uma personagem com o intuito de representar grupos da sociedade em apenas um corpo. Esse corpo torna-se, então, representação de um arquétipo, cuja existência socio-política é priorizada. Quando ocorre esse processo, as personagens deixam de ser um ser próprio e perdem o seu em si para atuar em prol das teses dos cineastas. O fato é que o Cinema Novo — e, nesse caso em específico, o cinema de Glauber Rocha — quase como violenta suas personagens ao retirar essa camada, que é, sobretudo, política, pois a existência individual do povo é, em si, um ato de resistência, que é reduzido e violado pelo movimento,  que busca, contraditoriamente, alcançar o cerne do Brasil — e é por conta dessas intenções e princípios que a despersonalização se torna uma problemática.

Não fosse o contexto em que se coloca essa obra, considerar-se-ia apenas seus recursos técnicos e de linguagem, que a tornam uma grande obra do cinema brasileiro. Ela não deixa de ser, porém é preciso olhar para o além disso: trata-se de uma questão ética que só se pode enxergar e desenvolver agora: a questão da plena existência do sujeito, que tem o direito de se ver para além da violência e do arquétipo.

Outro ponto a se considerar é o afastamento do Cinema Novo, sobretudo do cinema glauberiano, do público. Apesar de Glauber ter perseguido “a fórmula do folhetim revolucionário (épico-didático) que alcançou em Deus e o Diabo e oDragão da maldade contra o santo guerreiro” (BENTES, 1997), seus filmes caminharam para o hermético, o longe do povo, como — e talvez o melhor exemplo — emTerra em Transe (Glauber Rocha, 1964), onde seu lirismo poético e seu simbolismo ganham total força e, embora esse fator contribua para que seja uma de suas maiores obras, faz com que ela fuja um pouco do que é proposto quanto à própria estética do movimento. Uma cena emblemática do filme é quando Paulo, personagem de Jardel Filho, literalmente cala a boca de um homem (a “massa”) quando este resolve falar. Toda a sequência revela uma intelectualidade — burguesa, branca, masculina e cisheteronormativa — que subestima o povo e não conversa diretamente e do mesmo lugar com este, mas sim se considera superior e parece usar desse mesmo povo para provar suas teses.

Eztétika da Fome é um texto fundamental e coloca, junto ao Cinema Novo, questões de extrema relevância.

Um texto corajoso contra certo humanismo piedoso, contra as imagens clichês da miséria que até hoje alimentam o circuito da informação internacional. Glauber coloca uma questão, que a meu ver não foi superada nem resolvida nem pelo cinema brasileiro, nem pela televisão, nem pelo cinema internacional (BENTES, 2007).

Assim, o Cinema Novo desenvolve uma estética revolucionária e corajosa. Mas, com a violência — necessária — de desenvolver sua tese nos filmes e com a falta de cuidado em relação ao tratamento do indivíduo, acaba por violentar, de certa maneira, o próprio povo que quer representar e, como consequência de todos esses fatores, esse povo é despersonalizado.

Da Cosmética da Fome e da Despersonalização

Ivana Bentes desenvolve o termo “cosmética da fome” que designa “um cinema ‘internacional’ ou ‘globalizado’ cuja fórmula seria um tema local, histórico ou tradicional, e uma estética ‘internacional’” (BENTES, 2007). A partir disso, analisa-se que o cinema brasileiro passa a ter uma visão ainda mais de fora do que no cenário do Cinema Novo — quando é preciso um olhar de dentro. Cineastas como Walter Salles e Fernando Meireles saem da classe média de onde vêm e vão ao sertão e aos morros. Viciados em um olhar colonizado, eles o reproduzem e passam a enxergar, simbolicamente, os personagens marginalizados que representam em seu cinema como “o outro”, sem abrir mão de uma linguagem e estética mais consumíveis.

É preciso abordar dois pontos: o conceito de “outro” e a narrativa que se torna digestiva para o público — e para o público internacional, bem como para o colonizador.

O conceito de “o outro” é trazido aqui pela sua significação simbólica: é a persona que ameaça a estabilidade de uma sociedade hegemônica. Por isso, é marginalizada e neutralizada, violentada para garantir o status quo da hegemonia. Em se tratando de Cidade de Deus, as personagens passam a ser vistas dessa maneira sobretudo por conta de quem conta essa história. Os cargos de chefia no audiovisual brasileiro são ocupados majoritariamente por pessoas brancas, sobretudo homens brancos. No caso de Cidade de Deus não é diferente. Fernando Meirelles e Kátia Lund são duas pessoas brancas da classe média brasileira que, a partir do livro de Paulo Lins, contam a história da Cidade de Deus de forma a tornar a violência protagonista e, ainda mais, fazer dela um espetáculo. Bentes fala de “gozo espetacular da violência” e de “pobreza consumível” onde

A favela é o cartão-postal às avessas, uma espécie de museu da miséria, etapa histórica, não-superada, do capitalismo e os pobres, que deveriam, dada toda produção de riquezas do mundo, estar entrando em extinção, são parte dessa estranha “reserva”, “preservada” e que a qualquer momento sai do controle do Estado e explode, “ameaçando” a cidade (BENTES, 2007).

A favela é “isolada do resto da cidade, como um território autônomo” (BENTES, 2007) e não há indícios de nenhuma influência do que é externo àquele ambiente, de modo que a miséria e a violência não só existem ali, mas são oriundas dali — e a culpa dessa miséria e violência está nesse ambiente. Assim, observa-se um olhar externo, olhar de estrangeiro, de turista: o olhar do colonizador que afeta a classe média brasileira.

Há, também, a narrativa consumível que o filme traz. “O espetáculo consumível dos pobresse matando entre si” (BENTES, 2007). Cidade de Deus passeia pela violência como fosse um espetáculo e, com estética clássica, mira, sobretudo, o público internacional e uma aceitação, não só por parte desse público, mas também por parte do que quer ver um bom filme de ação com violência e, obviamente, uma construção estilística bela e digestível — no sentido de ser mais clássica e mirar o hollywoodiano.

Diferente do Cinema Novo, há, aqui, um evidente interesse comercial e a exploração descarada desse “outro” favelado, aspecto que transcende a ficção. Com o documentário Cidade de Deus — 10 anos depois (Cavi Borges e Luciano Vidigal, 2013), fica ainda mais escancarada a exploração que os, na época, não atores, em sua maioria, sofreram. Eles receberam quantias extremamente baixas por seu trabalho, sobretudo quando se compara com o sucesso comercial do filme. E é mais sistemático ainda o fato de serem homens — muitos, na época, meninos — negros explorados por diretores brancos, que, para alguns, permaneceram como salvadores, o que também é um sintoma da questão colonial do Brasil.

Ainda, como no Cinema Novo, essas personagens passam por um processo de despersonalização, no entanto, de modo diferente. Para se encaixarem nos arquétipos racistas do traficante, do menino cruel e violento, do menino que quer se desvencilhar do “destino” que lhe é imposto e tem um sonho, etc., é preciso que sejam despersonalizados e percam a condição de existência plena enquanto sujeitos para satisfazer a gana de um olhar colonial, sendo apenas objetos do discurso — como também aconteceu no Cinema Novo — mas principalmente objetos de um certo prazer.

A cena icônica de Zé Pequeno, personagem de Douglas Silva, uma criança, matando viria a se tornar um marco na cultura pop, chegando a ser referenciada nos quadrinhos do Coringa (Brian Azarello, ilustrada  por Lee Bermejo, 2008). Fora essa cena, outras tantas de violência banalizada, mortes e assassinatos envolvendo a figura de crianças e jovens numa perspectiva de crueldade intrínseca  e criminalidade se tornaram, também, marcos na cultura pop, o que leva, mais uma vez, ao digestível e consumível da narrativa. Seu âmbito sociopolítico é deixado de lado e ela passa a repercutir como obra meramente comercial, que reforça os estereótipos e apresenta uma brasilidade equivocada. Transforma-se a realidade “num estranho surrealismo tropical” (ROCHA, 1965).

“Somos capazes de produzir e fazer circular nossos próprios clichês em que negros saudáveis e reluzentes e com uma arma na mão não conseguem ter nenhuma outra boa idéia além do extermínio mútuo” (BENTES, 2007).

 Das Considerações Finais

A proposta desenvolvida nesse texto se baseia e implica em repercussões socioculturais, de modo que trata de questões políticas da individualidade e plena existência do ser. A análise traz um olhar mais atento e crítico para obras canônicas com o objeto de repensá-las, bem como repensar a contemporaneidade e as obras contemporâneas.

Num primeiro momento, o Cinema Novo e Glauber Rocha trazem, na busca de um cinema independente e revolucionário, um brasileiro despersonalizado para embasar seu discurso decolonial que visa mostrar ao povo, “ignorante de si mesmo”, sua realidade e representa-lo de modo a lhe dar existência. Falham. O que ocorre é a despersonalização deste, que é subestimado e violentado.

Num segundo momento, Cidade de Deus é um sucesso internacional e comercial e torna espetáculo a violência nas favelas sob um olhar colonial, colocando o favelado no lugar simbólico do “outro”. Com uma perspectiva mais industrial, o filme explora de forma descarada seus atores negros e apresenta um discurso neoliberal que, além de apontar a educação e o sonho do progresso individual como solução de todos os problemas — esses, responsabilidade do próprio favelado —, evita qualquer menção à revolução.

Ambos os casos se utilizam de suas personagens como objetos do discurso e não como sujeitos do discurso, de modo que estes ficam restritos aos arquétipos que lhes são conferidos. Uma brasilidade equivocada, baseada nesses arquétipos e preconceitos, é representada no cinema brasileiro.

Assim, o discurso e a discussão proposta evocam um revisionismo — que já acontece, mas precisa ser intensificado — acerca da História do cinema e do próprio Brasil. É preciso olhar para si mesmo, compreender o país e seus meandros, suas estruturas, para que um cinema mais digno e coeso nasça e se desenvolva, o que já foi provado ser possível com filmes como Marte Um (Gabriel Martins, 2022). É preciso olhar de dentro.

Referências Bibliográficas

BENTES, Ivana. Sertões e favelas no cinema brasileiro contemporâneo: estética e cosmética da fome. ALCEU, Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, p. 242-255, 2007.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

ROCHA, Glauber. Cartas ao Mundo. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1997.

__________.   Eztétyka     da               Fome..              Hambre,     setembro     de     2013.

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