Artigo escrito por Eduardo Valente para o catálogo da mostra CINEMA BRASILEIRO: ANOS 2010 – 10 OLHARES. O artigo foi originalmente publicado no catálogo da mostra em 2021.

Como se pode tentar condensar uma década se, apenas no formato de longas metragens, em torno de 2000 títulos foram realizados no Brasil? Pois bem, houve uma alteração metodológica básica na forma como esse balanço de década foi estruturado, em comparação com os esforços que tentamos fazer em 2001 sobre os anos 90 e, depois, em 2011 sobre os anos 2000. Se lá está melhor explicada não só essa nova dinâmica como também os motivos para optarmos por ela, cumpre dizer que, ao apostarmos na relevância de colocar em primeiro plano esses dez olhares propostos por dez pontos de vista curatoriais que estiveram ativos ao longo da década, a lista de filmes e temas trazidos e tratados pela mostra se tornam, obrigatoriamente, muito mais propositivos do que retrospectivos, pois atendem muito mais a estímulos que movem o pensamento adiante do que a fazer balanços que se pretendam definitivos ou, por impossível, completos. 

Este movimento se associa a outro simultâneo, embora menos planejado, causado pela circunstância de precisarmos realizar a mostra no formato online, o que alterou praticamente tudo relacionado ao movimento efetivo de “dar a ver” alguns filmes pela mostra. Afinal, para além das eventuais impossibilidades práticas causadas por contratos de exclusividade de exploração e exibição de uma série de filmes neste formato (o que nos levou, inclusive, à necessidade de substituir alguns títulos selecionados pelos curadores da mostra), existe mesmo uma dimensão política advinda dessa prática distinta: qual o sentido de criar um novo espaço de visibilidade para obras que já estejam visíveis neste mesmo ambiente? Ou seja, se em 2001 levávamos de volta a uma sala de cinema física filmes como Cinderela Baiana ou um filme da Xuxa e os colocávamos em sequência/contraste com um filme quase invisível como O Vigilante, de Ozualdo Candeias, era porque uma determinada operação discursiva e estética se realizava ali no espaço da sala de uma maneira como não aconteceria jamais em outro lugar. Já em 2021, estando a mostra disponível para as pessoas em suas casas, nas suas próprias escolhas de se organizar para ver os filmes e, portanto, dando-nos uma possibilidade muito menor de sequenciar sessões ou experiências, qual seria o sentido real e prático de criar uma outra janela para filmes que já ocuparam várias delas e ainda as ocupam nesse fluxo de atenção digital-caseiro? 

Não nos escapou, porém, que, na soma entre essas duas opções, perdeu-se um pouco a possibilidade de ressignificar obras de extensa visibilidade, colocando-as em choque de maneira inesperada. Pois, claro, para uma curadoria centralizada escolhendo 54 longas de uma década era possível encontrar espaços para filmes que, individualmente, não seriam por si do apreço pessoal dos curadores, mas, em contato com outros filmes, permitiam enxergar linhas de força (ou, pelo contrário, ausências significativas) do que havia sido o cinema de uma década num país. Quando os curadores são, por nós, convidados a condensar olhares em quatro ou cinco longas e mais alguns curtas, por óbvio que seu movimento seja outro e que os caminhos seguidos necessariamente passem por outras maneiras de pensar e operar as aproximações e ecos. Um pouco por tudo isso nos pareceu importante trazer aqui um resquício do gesto das edições anteriores, permitindo que algumas obras ou tendências sejam registradas, lembradas e repensadas – inclusive para que também possamos voltar a elas no futuro.

Isso pareceu fazer ainda mais sentido porque as “questões” (e não olhares) sempre foram endereçadas ao futuro: ou seja, não apenas queríamos condensar pontos essenciais dos anos anteriores, mas também buscávamos projetar aquelas questões para a frente – por onde iriam ainda repercutir na continuidade. De alguma maneira, então, será um pouco a esse exercício que nos dedicamos aqui, agora – de novo, sem nenhuma expectativa de exaurir a produção da década, mas ao menos permitindo revisá-la por outros caminhos que complementam os olhares expostos e exibidos na mostra deste ano e que, assim como foram dez, e estes dez especificamente poderiam ter sido outros dez ou poderiam ter sido vinte ou trinta. O cinema brasileiro, ainda bem, não cabe todo numa mostra. O cinema popular, sempre em questão.

O CINEMA POPULAR, SEMPRE EM QUESTÃO

Por caminhos e enunciações diferentes, as mostras dos anos 90 e 2000 tentaram capturar o pulso do que foi se construindo ao longo daqueles anos como um “novo cinema popular” no Brasil, uma cinematografia que herdou tradições anteriores de tentativas de diálogo com um público amplo, mas que também deixou pela beira da estrada várias outras enquanto criava algumas novas. Podemos dizer que, nos anos 2010, constatamos um afunilamento das amplitudes do conceito de “cinema popular” – ao menos se tomarmos como régua a forma de medição mais comum até esta década (e que certamente será alterada para a próxima, ainda mais no pós-pandemia), que são os bilhetes vendidos em salas de cinema. De fato, por este caminho, se tomamos o Top 20 de bilheteria nacional como aproximação inicial, vemos que praticamente o cinema popular brasileiro se resumiu a dois gêneros: a comédia de situações, muitas vezes transportando personagens de ambientes midiático-culturais anteriores (televisivos, principalmente, mas também do teatro e da literatura em alguns casos); e o cinema religioso, em sua matriz neopentecostalevangélica. Se o primeiro esteve presente de maneira mais constante pela década e numerosa em quantidade de produtos, o segundo se consolidou sempre em dobradinha com produtos e profissionais advindos da TV Record, com poucos exemplares de resultados numéricos mais que expressivos (ainda que acompanhados pela polêmica acerca da compra de ingressos pelas igrejas e seu repasse gratuito para indivíduos – sendo muitos não utilizados na prática).

Neste panorama de concentração extrema, há nuances para entender o que foi sucesso, num exercício que também passa por olhar o que se perdeu pelo caminho como outras alternativas. No campo das comédias, por exemplo, alguns nomes se consolidaram no período, seja na frente (Paulo Gustavo, principalmente, mas também Leandro Hassum e Ingrid Guimarães), seja por trás das câmeras (Roberto Santucci, acima e mais frequentemente do que todos). No entanto, se, indubitavelmente, as comédias se afirmaram frente a outros universos (tendo sido responsáveis por nada menos que 17 das 20 principais bilheterias do cinema brasileiro na década), também é verdade que a enorme repetição de alguns dos seus nomes e processos levaram a um tamanho acúmulo de filmes realizados no gênero e, consequentemente, uma quantidade significativa deles tinha expectativas de público bem maiores do que os efetivamente atingidos. Se inegavelmente uma sensação de saturação tomou as bilheterias e distribuidores num certo momento, isso só deu mais valor a fenômenos indiscutíveis, como o do terceiro episódio da série Minha Mãe é Uma Peça, que, nos estertores do circuito pré-pandemia, estabeleceu-se como a maior renda do cinema nacional de todos os tempos em valores absolutos.

Em termos de diretores realizando sucessos comerciais, um fenômeno curioso deve ser notado: essa comédia predominante como fenômeno nos anos 2010 foi realizada, principalmente, por realizadores que se afirmaram e se exercitaram eminentemente no cinema. Acima citamos Roberto Santucci como o exemplo mais óbvio, mas vários outros nomes também poderiam ser citados, para ficarmos em alguns, apenas, os de André Pellenz, Cesar Rodrigues, Pedro Amorim, Pedro Antônio, Julia Rezende, Susana Garcia, Bruno Garotti, que marcaram presença em vários lançamentos cada um. Isso configurou uma novidade, típica de uma década onde o financiamento de filmes comerciais encontrou um modelo (via FSA através algumas grandes produtoras/distribuidoras) que dava uma regularidade de carreira muito mais forte do que em décadas anteriores. Nesse movimento, por exemplo é que vemos como uma antiga assistente de direção de Daniel Filho, Cris D’Amato, foi responsável por muito mais filmes no registro do sucesso comercial na década do que o próprio Daniel, que havia sido o principal nome das comédias de sucesso nas duas décadas anteriores e que, nos anos 2010, além de filmar menos, dedicou-se a exercícios mais pessoais, como Boca de Ouro ou O Silêncio da Chuva. Vale comparar esse momento com alguns anteriores, onde, em geral, os maiores sucessos cômicos nas bilheterias vinham de profissionais com uma mais longa e constante carreira na dramaturgia televisiva, como o próprio Daniel Filho, mas também Guel Arraes, José Alvarenga ou Maurício Farias. A década de 2010 afirmou, ao menos na comédia, a criação de uma geração de realizadores, principalmente de cinema comercial (mesmo que com experiências eventuais na TV por parte de alguns). Vale dizer que, enquanto isso, no cinema religioso de megassucesso, a relação com a TV Record seguiu umbilical, sendo Alexandre Avancini, responsável pelas maiores telenovelas da rede, o diretor dos três filmes que integraram o Top 20 nesse recorte.

Por outro lado, se nos anos 2000 nomes como os de Hector Babenco, Fernando Meirelles, José Padilha, Sandra Werneck ou Walter Carvalho frequentaram o Top 20 de bilheterias, sendo todos realizadores com graus de reconhecimento crítico ou trajetórias e passagens pelos grandes festivais do país e do mundo com vários de seus filmes, isso já não aconteceu nos anos 2010. Se é verdade que isso se explica, em parte, pelo fato de que alguns desses nomes se dedicaram na maior parte da década a realizar projetos de maior fôlego no cinema internacional (caso de Meirelles) ou no universo das séries para streaming ou TV a cabo (caso de Padilha), por outro lado, não se pode negar que muitos filmes realizados com o desejo de dialogar com o grande público não chegaram a se afirmar como fenômenos de bilheteria, malgrado vultosas produções e a assinatura de nomes como Breno Silveira (que teve Dois Filhos de Francisco como o terceiro maior público dos anos 2000, mas não emplacou nenhum dos seus esforços dos anos 2010 como fenômeno), Mauro Lima ou Miguel Falabella, para ficarmos apenas nos realizadores com grandes fenômenos de público nas décadas anteriores como exemplo. A concentração extrema nas bilheterias entre a “comédia serial” e o fenômeno religioso levou a que praticamente todas as tentativas de sucesso nas bilheterias por outros caminhos de comunicação se vissem afastadas para a margem.

De fato, alguns gêneros com considerável histórico de sucesso no cinema brasileiro, como o das cinebiografias, prestaram-se melhor, na maior parte das vezes, utilizando possibilidades de exploração por outros caminhos: se nos anos 2000 o já citado Dois Filhos de Francisco teve a companhia de filmes como Cazuza ou Olga entre os maiores sucessos, via, de regra, esforços como Gonzaga, Tim Maia, Elis, Chacrinha ou Hebe encontrarem resultados bem menos expressivos, quando não muito fracos, nas bilheterias, sendo, porém, depois destrinchados e reeditados em novos produtos híbridos, entre a ficção e o documental, exibidos como séries de TV na Rede Globo. Curiosamente, uma exceção foi o sucesso bem grande em salas de Somos Tão Jovens, cinebiografia de Renato Russo que não era co-realizada pela Globo Filmes e que acabou fazendo um outro tipo de dobradinha com o sucesso de Faroeste Caboclo, adaptação para formato de longa da narrativa existente na canção eternizada por Russo (Eduardo e Mônica, filme seguinte do mesmo realizador, René Sampaio, acabou sendo um dos lançamentos cancelados em 2020 pela pandemia).

O mesmo caminho de um hibridismo com um produto de TV foi seguido, também, por alguns filmes com estrutura ficcional, mas baseados em fatos reais (como Alemão, Xingu e Serra Pelada), ou ainda com obras plenamente ficcionais e originais, como Entre Irmãs, do já citado Breno Silveira. Essa situação dos produtos híbridos com a TV, para além das já tradicionais adaptações para o cinema dos sucessos televisivos (que, nos anos 2010, teve sucessos como Vai que Cola ou Cilada.com seguindo a trilha de Os Normais, mas também teve fracassos retumbantes, como a volta à vida de Sai de Baixo como um longa), foi testando misturas cada vez mais indistintas entre os suportes, com ainda maior frequência a partir do momento em que as séries foram se consolidando como fenômeno hiper-presente, como em casos como Carcereiros, Sob Pressão ou A Divisão, já no final da década, materiais mais ou menos similares empacotados para multiplataformas. O fenômeno da internet do Porta dos Fundos, por sua vez, deu com os burros n’água na sua adaptação para o cinema de longa, mas terminou encontrando nos seus especiais de Natal via Netflix, já no final da década, seu spin-off mais bem-sucedido no formato mais longo. Já um caso raro de sucesso no cinema que migrou para a TV a cabo (também com sucesso ali) foi o de Bruna Surfistinha, que deu origem à série Meu Nome é Bruna. De fato, estas misturas e confusões entre formatos tendem a aumentar, ainda mais com o futuro incerto das salas de cinema no pós-pandemia.

Um caso bastante único nesse sentido, e que merece seu próprio parágrafo, foi o de Cine Holliúdy: adaptação para o formato de longa de um curta-metragem com vasta carreira nos festivais realizado pelo seu diretor, Halder Gomes, o filme passou quase um ano circulando em festivais de cinema até que seu distribuidor (a onipresente Downtown, cujo papel à frente do mercado do filme brasileiro no período, em associação com a Paris Filmes, merece um estudo à parte com outras finalidades e atenções do que esse texto) decidiu lança-lo como um fenômeno eminentemente regional, começando pelo Nordeste e, em particular, pelo seu Ceará de origem. Esse fenômeno do cinema regional, num país continental como o Brasil, segue pouco explorado, algo ressaltado pelo sucesso eventual de produtos como a série de filmes hiperindependentes maranhenses sob a alcunha Muleque Té Doido: são, ainda hoje, OVNIs. No entanto, o filme de Halder Gomes explodiu, não só batendo recordes na bilheteria local, como, inclusive, vencendo grandes blockbusters americanos na atenção do público dos multiplexes locais. Seu sucesso, ainda que não tenha sido suficientemente grande para entrar em listas como o Top 20 da década no país, foi enorme para as dimensões de seu orçamento e campanha de marketing – e, como tal, deu origem não só a uma continuação, como foi depois seguido por uma série original da Rede Globo, onde também encontrou enorme audiência. Para além da série e da continuação, seu criador Halder Gomes se cacifou realizando outros filmes com considerável repercussão, como Os Parças e Shaolin do Sertão, se consolidando como uma das mais criativas e originais vozes de um cinema comercial inconfundivelmente brasileiro.

Já no universo de um outro antigo cavalo de batalha das bilheterias nacionais, o cinema infantil, responsável por alguns dos maiores sucessos de bilheteria do cinema brasileiro entre os anos 70 e até os anos 2000 (em que alguns filmes de Xuxa ainda contavam entre os maiores sucessos), alguns materiais retrabalhados da TV para a tela grande (como as adaptações da novela Carrossel ou da série de TV Detetives do Prédio Azul) encontraram um público fiel disposto a ir ao cinema, o mesmo acontecendo com a adaptação para o cinema com atores da Turma da Mônica, em Laços. No entanto, vale notar que nenhum deles chegou a estar no Top 20 de bilheterias e que nenhum material realmente original se criou com sucesso a partir do cinema e, em especial a animação infantil, praticamente deixou de lado o universo das salas, se firmando nos canais da TV a cabo com séries de grande sucesso como Show da Luna ou Irmão do Jorel. Finalmente, não podemos deixar de lembrar que a década também marcou de vez a despedida de Xuxa ou dos Trapalhões, cuja refilmagem do sucesso com seus Saltimbancos, por exemplo, nem chegou a 100 mil espectadores no seu lançamento.

Já um gênero que passou a década prometendo se firmar na sua vertente nacional, mas que nunca fez efetivamente o salto para o sucesso mainstream, foi o do terror-fantástico. De fato, foi uma década com muitas tentativas distintas de mergulho neste universo, desde produções maiores com grandes nomes na direção e no elenco como O Juízo, O Rastro ou Morto Não Fala, passando por produções hiper-independentes como as do cineasta capixaba Rodrigo Aragão (que realizou nada menos que cinco longas na década) até tentativas mais no campo do cinema autoral com influências do horror, como os filmes de Gabriela Amaral Almeida, Ramon Porto Mota ou ainda filmes como As Boas Maneiras (este exibido aqui na mostra). Se os últimos encontraram alguma repercussão nos festivais do Brasil e fora, e os anteriores desenvolveram uma certa aura cult que os permitiu chegarem à televisão a cabo pela via dos canais mais populares com a Lei da TV a cabo, fato é que nenhum deles conseguiu quebrar, nas salas de cinema, o preconceito do espectador: se inúmeros filmes americanos no gênero seguem atingindo um milhão de espectadores ou mais, enquanto isso, os brasileiros não passaram nem perto dessa marca. De fato, mesmo que ampliemos o entendimento do “cinema de gênero” para outras fronteiras além do fantástico, apenas O Assalto ao Banco Central e Polícia Federal – A Lei é Para Todos (ambos mais próximos de uma larga tradição de cinema brasileiro policial ilustrando casos reais) passaram do milhão de espectadores, enquanto outras tentativas ambiciosas como 2 Coelhos, Autorrad ou O Doutrinador pouco conseguiram de atenção.

Finalmente, é preciso no tema do “popular” citar a difícil vida do chamado “cinema médio”, entendido como aquele que não se propõe necessariamente a realizar os maiores blockbusters de um cinema nacional, mas que, ao mesmo tempo, possui maiores ambições de comunicabilidade do que o chamado “cinema de autor”, mais estrito, aquele voltado para o universo dos festivais, principalmente como maior foco. Não que isso se trate de uma exclusividade do cinema brasileiro, longe disso: o fato de que estes filmes praticamente não conseguiram resultados significativos nas bilheterias dos EUA à França, apenas para ficarmos em dois mercados onde este tipo de cinema já encontrou maiores espaços, foi muito discutido também por lá, tentando entender o quanto ele foi se tornando cada vez mais sufocado pela cultura do blockbuster de um lado e o estrangulamento dos circuitos de exibição menos puramente comerciais do outro, com a migração da atenção do seu público para as séries e o streaming. De fato, para além do já citado Faroeste Caboclo, que contava com o “universo” prévio da canção e da figura de Renato Russo, o único sucesso realmente significativo de toda a década neste campo foi o de O Palhaço, dirigido por Selton Mello e produzido por Vania Catani, que chegou muito perto de 1,5 milhão de espectadores em 2011. Aquilo que poderia parecer um auspicioso sinal para o começo da década, revelou-se uma pista falsa – e o esforço seguinte dos dois trabalhando juntos, o mais ambicioso O Filme da Minha Vida, não chegaria aos 300 mil espectadores em 2017 (um número certamente nada desprezível num ambiente comercial bastante menos aberto a este tipo de aventura, mas ainda assim sendo menos de 1/5 do filme anterior).

De fato, foram inúmeros os filmes com ambições comerciais maiores que apostaram, seja em grandes nomes no elenco com visibilidade mais que consolidada principalmente no universo global das telenovelas, seja em formatos em diálogo com antecessores de sucesso. No entanto, muito poucos dentre estes conseguiram sequer ultrapassar os 100 mil espectadores, incluindo-se aí esforços advindos de realizadores com longa experiência no universo televisivo, como José Luiz Villamarin (que também trabalhou com a produção de Catani) ou até mesmo refilmagens de fenômenos anteriores (além do citado Saltimbancos Trapalhões, a nova versão de Dona Flor e Seus Dois Maridos foi um retumbante fracasso de público). Por outro lado, a década viu cineastas com carreira anterior de bom reconhecimento no viés mais autoral que buscaram voos maiores de comunicação e de tamanho de lançamento (nomes como Tata Amaral, Paulo Sacramento, Marcos Jorge, Lais Bodansky, Daniela Thomas, Jeferson De, José Eduardo Belmonte, Toni Venturi), além de cineastas que tentaram estabelecer, desde seus primeiros longas, um possível ambiente nesse meio termo entre os valores chamados artísticos e a comunicabilidade, como Carolina Jabor, Caio Sóh, Fernando Coimbra ou Daniel Rezende, para citarmos alguns. Poucos dentre eles conseguiram encontrar seu público nas salas. De fato, a frustração com as possibilidades de resultados nesse caminho fez com que alguns cineastas migrassem, de maneira mais definitiva, para espaços como a própria TV (caso de Cao Hamburger, que, depois do resultado fraco na bilheteria de Xingu, não realizou outro longa e esteve envolvido com premiados esforços em séries e na novela de longa duração Malhação) ou que fossem tentar a sorte em projetos no formato seriado via TV a cabo (Sérgio Machado ou Vicente Amorim, por exemplo) ou, mais recentemente, no streaming, casos de Esmir Filho e Daniel Ribeiro, por exemplo). Assim como nos EUA e na Europa, o futuro parece mais promissor para os diretores com ambições de comunicação, mas sem o pendor para o blockbuster, nesse ambiente – salvo, é claro, os muito eventuais fenômenos internacionais estabelecidos a partir do universo dos maiores festivais do mundo. O que nos leva justamente a nossa questão seguinte…

QUE BRASIL SE VÊ DE FORA?

Outra questão cujo pulso tiramos nos anos 90 e 2000 foram os tipos de cinema feitos pelo Brasil que encontraram eco para além das fronteiras do país. Nesse sentido, inegavelmente houve uma quantidade grande de filmes de repercussão promissora que nos permite rascunhar, talvez, alguns caminhos de aproximação. Uma primeira observação é que a geração que havia se consolidado de maneira mais firme neste universo externo entre a passagem dos anos 90 para a primeira década dos 2000 (Walter Salles, Fernando Meirelles e José Padilha, principalmente) filmou muito pouco no formato do longa no Brasil – tendo se dedicado, conforme já dito, ou a grandes produções internacionais (e até mesmo hollywoodianas) ou a explorações do formato das séries, no Brasil, mas não apenas. Com isso, e com a presença bastante marginal (com trocadilho) dos últimos remanescentes da geração do Cinema Novo ainda em atividade, podemos ver que se deixou um certo vácuo de representação pelo viés do reconhecimento autoral, o qual pôde, mais naturalmente, ser ocupado pelas gerações seguintes.

Nesse sentido, e tomando por base principal os chamados “três grandes festivais mundiais” (Cannes, Veneza e Berlim), e, em particular, suas mostras competitivas (sendo importante anotar que no Festival de Veneza, talvez hoje o mais mainstream deles, não houve nenhum filme brasileiro em competição em toda a década), o que se viu na década foi a consolidação dos nomes de Karim Aïnouz (com O Abismo Prateado na Quinzena dos Realizadores de Cannes, Praia do Futuro competindo em Berlim e A Vida Invisível ganhando prêmio em Cannes na Um Certain Regard) e Marcelo Gomes (Joaquim competindo em Berlim) como integrantes já bastante fixados nesse clube um tanto exclusivo; e o inegável fenômeno que foram os longas de Kleber Mendonça Filho, em particular seus dois últimos, os únicos filmes brasileiros a competir em Cannes na década: Aquarius e Bacurau (este último co-dirigido por Juliano Dornelles). No caso destes dois filmes, é preciso complementar dizendo que o sucesso a partir de Cannes se expandiu e levou não só a prêmios em inúmeros festivais pelo mundo, como à sua presença em listas de melhores do ano de críticos americanos e europeus (no entanto, sendo, os dois, preteridos na escolha do famoso indicado brasileiro ao Oscar de Filme Estrangeiro, em circunstâncias bem distintas mas igualmente polêmicas). Foi assim que se construiu, para eles, quase como uma consequência inevitável, um resultado de público nas salas de cinema no Brasil bastante significativo para suas dimensões de produção e lançamento, configurando-se em conjunto com Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert (este também exibido antes, e com sucesso e prêmios, nos festivais de Sundance e de Berlim) nos únicos filmes que conseguiram ultrapassar de forma mais consistente as tais fronteiras do “circuitinho de arte” para o sucesso não apenas comercial como de entrada no campo mais largo da indústria cultural (todos os três filmes geraram uma nada desprezível quantidade de memes).

Pode-se dizer que estes foram os filmes brasileiros de maior visibilidade internacional no período e valeria notar algumas características que os podem aproximar. Difícil não notar, de saída, que quatro dos cinco diretores citados acima sejam cineastas vindos do Nordeste – ainda que não tenham se limitado a filmar na região. O Nordeste, como uma das paisagens míticas de reconhecimento internacional do Brasil pelo cinema (a outra possivelmente sendo as favelas e praias do Rio de Janeiro), ainda pode fascinar como um espaço “autenticamente” (com todas as problematizações possíveis e necessárias) brasileiro para essa plateia estrangeira, que, seguramente, encontra, em Bacurau, uma atualização de algumas de suas memórias mais profundas sobre o país a partir do cinema, ao mesmo tempo em que se estabelecem e estilizam novos diálogos com tradições de um cinema internacional (o melodrama nos filmes de Karim, o cinema de gênero nos de Kleber).

No entanto, essa busca pelo “específico local” não se deve confundir necessariamente com uma dimensão unívoca de certa exotização: de fato, o grande “produto brasileiro multinacional for export” do período foi um dos mais retumbantes fracassos da década, seja lá fora ou aqui. Capítulo brasileiro da franquia internacional, Rio, Eu Te Amo, como projeto, tentava surfar na junção de um formato “pronto” (curtas de nomes do cinema brasileiro de grande reconhecimento – José Padilha, Carlos Saldanha, Andrucha Waddington, Fernando Meirelles; com nomes internacionais de destaque – Paolo Sorrentino, Nadine Labaki, John Turturro) com a paisagem da capital fluminense num momento de euforia pelo Brasil (Copa do Mundo, Olimpíadas), mas seu naufrágio absoluto talvez já fosse um sinal de que o ufanismo romantizado e idealizado já não colava como esperado.

De fato, os filmes brasileiros que mais circularam traziam notícias muito frescas de um Brasil onde a luta de classes (e raças e gêneros) encontra soluções pouco convencionais, seja na perspectiva histórica de Joaquim, seja na masculinidade tóxica de A Vida Invisível e Praia do Futuro, seja nas narrativas de resistência e algum grau de vingança, inclusive, em O Som ao Redor, Aquarius, Bacurau e, também, Que Horas Ela Volta?. Importante destacar, no caso desse último, que não só se localiza no ambiente urbano da metrópole menos “filmada” (ou seria mais exato, menos vista filmada pelos festivais internacionais) que é São Paulo, como ainda é o único dirigido por uma mulher. Não é difícil imaginar, porém, que outros nomes femininos venham a se impor no circuito internacional nas próximas décadas, além de outros sotaques e perspectivas.

Isso porque, pode-se notar, há uma inegável lógica no modus operandi destes grandes festivais: antes de se consolidarem nas competições dos três grandes festivais, vários dos filmes anteriores de Karim e Marcelo Gomes passaram pelas mostras paralelas destes mesmos eventos, enquanto outros realizadores passam por competições de festivais considerados imediatamente seguintes a estes três num imaginário ranking de visibilidade internacional (caso de O Som ao Redor, estreia de Kleber Mendonça Filho nos longas de ficção, que concorreu em Roterdã em 2011). De fato, nestas mostras paralelas dos maiores eventos ou competições no escalão seguinte foram muitos os nomes de cineastas brasileiros que tiveram múltiplos trabalhos exibidos nos últimos anos. Dentre estes, podemos destacar, pela frequência, os nomes de Marco Dutra e seus parceiros (que competiu em Berlim no ano que fechou a década em co-direção com Caetano Gotardo, depois de ter estado antes em paralelas de Cannes e competição em Locarno junto com Juliana Rojas); Gabriel Mascaro (que ao longo da década competiu em Locarno, Toronto e Sundance, e passou, também, em paralelas de Veneza e Berlim); Felipe Bragança e Marina Meliande (juntos em Cannes na Quinzena, ele solo em Sundance e em Roterdã, ela solo em competição em Roterdã). Além destes nomes que exibiram múltiplos filmes, houve ,também, alguns nomes com dois longas circulando no período dos últimos dez anos, como: Fellipe Barbosa (competição em Roterdã e paralela em Cannes), Julia Murat (mostras paralelas em Veneza, San Sebastian e Berlim), Helvecio Marins (San Sebastian e Veneza na parceria com Clarissa Campolina, depois Berlim), Gustavo Pizzi (competição em Sundance e com uma série em Berlim), Davi Pretto (dois filmes em Berlim, um deles ganhador do prêmio principal em Jeonju, Coreia), Márcio Reolon e Felipe Matzembacher (dois filmes em Berlim, um deles ganhador do Prêmio Teddy), Sandra Kogut (dois filmes em Toronto nos anos 2010 depois do seu primeiro longa ter passado pela Quinzena dos Realizadores), Aly Muritiba (San Sebastian e Sundance), Eryk Rocha (premiado em Cannes), Marília Rocha (Roterdã, com dois longas), Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira (Roterdã com dois longas), Sérgio Andrade (Roterdã e Berlim), Daniel Aragão (Locarno e Roterdã), ou, para citar dois cineastas com filmes na mostra, Adirley Queirós e André Novais Oliveira (ambos em Locarno). Finalmente, podemos lembrar, também, de uma série de nomes que, por enquanto, realizaram apenas um longa no período, mas que já estiveram em competições ou prêmios importantes como Maya Da-Rin, premiada na competição em Locarno; Beatriz Seigner (Quinzena em Cannes), Fernando Coimbra (indicado ao DGA nos EUA, passagem por Toronto e San Sebastian), além de Daniel Ribeiro, Alice Furtado, Anita Rocha da Silveira, Armando Praça, Ricardo Alves Jr, Gabriel Martins e Maurílio Martins, Maria Clara Escobar…

Como se pode ver é uma lista realmente enorme, cuja consistência na sua quantidade e frequência na presença nos festivais deve, necessariamente, ser entendida para além de uma multiplicação das oportunidades de financiamento e de modos de filmar muito diferentes. De fato, é preciso ir além dos diretores nesse momento e perceber como a década também formou uma geração de produtores que transitam com muita frequência no ambiente internacional, colocando seus curtas em grandes festivais, seus projetos em laboratórios e em mercados de financiamento, seus filmes em montagem em seções de indústria. Assim, por trás desses nomes de realizadores, seguindo os passos abertos com muito esforço e frequência por nomes como Sara Silveira, os irmãos Gullane, Vania Catani ou João Junior, há produtores como Tatiana Leite, Luana Melgaço, Tiago Macedo, Diana Almeida, Emilie Lesclaux, Leonardo Mecchi, Ana Alice Morais, Paula Pripas, Antônio Junior, Rachel Ellis, figuras tão relevantes para o posicionamento e efetiva realização dessas obras como os nomes mais conhecidos de seus diretores e diretoras. Neste esforço de internacionalização, são essas pessoas que, em geral, abrem as portas, por exemplo, para as coproduções internacionais que muitas vezes ajudam muito a posicionar os projetos desde sua origem. Vários destes filmes citados acima tinham co-produtores franceses, alemães, portugueses, argentinos, etc. Da mesma maneira, várias dessas produtoras também estiveram presentes como coprodutores minoritários em filmes de enorme destaque internacional como os argentinos Zama e Jauja (ambos coproduzidos por Vania Catani, com passagem por Veneza e Cannes), o paraguaio As Herdeiras (coproduzido por Julia Murat, premiado em Berlim) ou o francês Amazônia (coproduzido pela Gullane, filme de encerramento em Veneza), para ficarmos em alguns títulos. Com a desvalorização crescente do real frente às moedas como o dólar e o euro e a crise de financiamento a partir da Ancine no final da década, porém, fica bastante incerta a continuidade dessa operação, pelo menos nas dimensões que ela teve nestes dez anos.

Finalmente, é preciso citar, no campo da visibilidade internacional, dois fenômenos bastante específicos: primeiro, o fato de que a animação brasileira venceu em dois anos seguidos o principal festival mundial dedicado ao formato, em Annecy na França: primeiro, com Uma História de Amor e Fúria, de Luiz Bolognesi, em 2013; e depois, com O Menino e o Mundo, de Alê Abreu, em 2014, filme que ainda somaria uma inédita indicação ao Oscar de melhor longa de animação no ano seguinte – ambos apontando um amadurecimento do segmento da animação brasileira, que viu algumas de suas séries viajarem pelo mundo nos canais internacionais voltados para o formato (Cartoon Network, Discovery Kids, etc). E, claro, a outra indicação inédita ao Oscar, que veio no último ano da década, para o documentário Democracia em Vertigem, de Petra Costa, que, para além de consolidar a carreira da cineasta que já tinha tido seus dois primeiros longas bastante viajados e reconhecidos, ainda consolidou uma forma de trabalhar com as novas plataformas, a partir da Netflix, que certamente apontará para novos caminhos na próxima década. Isso para além de indicar o que talvez venha a ser um foco de muita expectativa e interesse para os próximos anos, que são os filmes sobre a situação política brasileira dos últimos anos (vale lembrar que O Processo, de Maria Augusta Ramos, também teve enorme repercussão internacional, e que filmes como Marighella, de Wagner Moura, certamente devem muito do interesse – para além do nome internacional do seu realizador, como ator – ao contexto de sua produção e lançamento). 

O QUE AINDA HOUVE NO CINEMA NOVO E NAS GERAÇÕES SEGUINTES

Desde a década de 90, na medida em que o cinema brasileiro foi traçando novos caminhos e incorporando, naturalmente, uma série de gerações distintas ao seu processo, sempre nos pareceu essencial medir as marcas deixadas sobre esse cinema não apenas pela força da memória sempre viva de alguns de seus marcos históricos como, necessariamente, pela continuidade da carreira de vários dos nomes mais importantes das gerações anteriores, na medida em que estes se adaptavam (ou não) aos novos tempos. Lá em 2001, por exemplo, perguntar “O que havia de novo no Cinema Novo?”, como fizemos naquele momento, acerca dos anos 90, era essencial pois a herança deste movimento ainda estava muito viva, inclusive literalmente nas obras em processo de muitos dos realizadores que vinham daquele momento. Da mesma forma, quando olhamos para os anos 2000, em 2011, alguns dos filmes realizados por pessoas como Eduardo Coutinho, Carlos Reichenbach ou Rogério Sganzerla foram essenciais para entendermos muito do que se passou de mais forte naquele período.

Curioso notar, nesse sentido, que os três cineastas que começaram a filmar ainda nos anos 60 e que surgiram com filmes na escolha dos curadores nesta mostra dos anos 2010 são todos associados ao chamado “cinema marginal”, e não ao Cinema Novo: Julio Bressane (que, mais uma vez, teve uma década de produção bastante constante), Andrea Tonacci e Luiz Rosemberg Filho (ambos, tristemente, tendo nos deixado na parte final destes anos de 2010). Mais do que analisar a pertinência e permanência das suas obras (algo que os curadores que escolheram seus filmes aludem em seus textos), parece fascinante entender de que forma, nessa passagem dos anos 90 aos 2010, foi se consolidando essa herança mais firme, pelo menos como continuidade de relação, da obra desses chamados “cineastas marginais” com as novas gerações. Os acima citados, assim como num outro registro, os também falecidos na década (mas ainda produtivos em parte da dela) José Mojica Marins e Ricardo Miranda, além da cada vezmais cineasta Helena Ignez (embora ainda magistral atriz), sem sombras de dúvida seriam alguns dos nomes mais lembrados por cineastas jovens de hoje como referências fundamentais aos seus trabalhos. Além destes, vale notar ainda que a única outra cineasta exibida pela mostra que estreou em longas ainda no século 20 é Paula Gaitán, que tem um trajeto muito único para ser incorporada no espaço específico de algum movimento.

Já no campo dos cineastas oriundos do entorno do chamado Cinema Novo, também curiosamente, talvez a obra mais referenciada na década tenha vindo já no seu último ano e de um cineasta que, embora tenha suas origens inegavelmente em parte daquele universo, nunca foi exatamente reconhecido como um cinemanovista: Sertânia, de Geraldo Sarno, um filme que encontrou enorme reconhecimento por um público cinéfilo muito jovem a partir do formato dos festivais online ao longo do ano da pandemia (embora tenha sido exibido em cinema no último festival brasileiro antes da parada, Tiradentes em 2020). Para além de Sarno, os caminhos bastante idiossincráticos na década da continuidade das carreiras de nomes como Cacá Diegues (malgrado seu Grande Circo Místico ter sido escolhido para representar o Brasil no Oscar e exibido em sessão especial em Cannes, certamente em reconhecimento à sua trajetória que atravessa seis décadas do cinema brasileiro), Ruy Guerra, Neville D’Almeida e Walter Lima Jr, para citarmos quatro nomes ainda em atividade, não repercutiram de maneira tão decisiva no olhar dos críticos, realizadores ou cinéfilos das gerações mais novas (com algumas exceções, em especial nos casos de Neville e Ruy).

Se lembramos que esta foi a década que se despediu ainda de Eduardo Coutinho (tragicamente, com a sensação de interrupção de uma carreira ainda em processo) e Nelson Pereira dos Santos (que nela só lançou seus dois últimos documentários sobre Tom Jobim), ficamos um pouco com a impressão de que a herança do Cinema Novo começa mesmo a “virar história” (e talvez não seja por acaso que a década viu não só documentários sobre, por exemplo, o próprio Coutinho, Hugo Carvana ou Luiz Carlos Barreto, além de nomes como Antonio Pitanga, Paulo José ou Gianfrancesco Guarnieri – a maioria deles no modelo dos balanços de carreira/vida, mesmo no caso daqueles ainda vivos, como Barretão ou Paulo). Mais ousado no formato, vale dizer que a década também deu origem ao filme de Eryk Rocha, premiadoem Cannes, sob o título Cinema Novo e que ressignificava imagens e falas do momento daquela produção, reforçando seu papel central na memória do cinema brasileiro. O filme se uniu a Ozualdo Candeias e o Cinema, de Eugenio Puppo; e Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava, de Fernanda Pessoa, como os filmes que remexeram nos baús das imagens do passado do cinema brasileiro extraindo delas a maior pregnância e novos sentidos.

De todos os nomes oriundos dos anos 60, porém, talvez quem tenha vivido a década mais inquieta e produtiva foi Domingos Oliveira. Antes de nos deixar no começo de 2019, Domingos filmou como nunca, tendo lançado nada menos do que seis longas, fazendo desta sua década mais produtiva. De fato, e assim como Coutinho e Luiz Rosemberg Filho, não seria exagero dizer que ele reencontrou-se em caminho totalmente novo a partir do abraço à tecnologia do digital: seus filmes quase todos do período têm o frescor (e a precariedade, muitas vezes) dos exercícios descompromissados entre amigos de várias gerações, principalmente com seus atores de múltiplas gerações. No entanto, ao menos dois deles tinham ambições maiores (de produção e de conteúdo): com Infância (2014) e BR716 (2016), Domingos buscou reconstituir sua infância e juventude,crespectivamente, num movimento em que a quase sempre presente primeira pessoa típica do seu cinema encontra um memorialismo pouco ou nada sisudo, passando a limpo épocas passadas pelo olhar, inclusive estético, do hoje. Me parecem obras que vão ficar, e às quais ainda se vai voltar.

De uma geração imediatamente posterior, começando nos anos 70, também tiveram uma década incrivelmente produtiva nomes como Lucia Murat e Silvio Tendler, ambos lançando filmes com enorme frequência e variedade de formatos (ela, entre a ficção e o documentário, como desde seu começo de carreira; ele, entre longas, curtas e séries). De fato, no documentário tivemos continuidades de várias carreiras importantes, como as de Orlando Senna (que realiza uma ficção longa depois de muitos anos no último ano da década), Vladimir Carvalho, Jorge Bodanzky, André Luiz Oliveira, Helena Solberg, Silvio Da-Rin, Miguel Farias, José Joffily, Paulo Thiago, Murilo Salles (estes dois também fizeram ficções). Além destes, parece especialmente relevante lembrar também que filmaram pouco, mas de forma contundente, inclusive por se posicionarem a partir dos próprios filmes, em grande parte já como algo “deslocados do seu tempo”, Ana Carolina e Sergio Bianchi, nomes que exibimos nas nossas retrospectivas dos anos 90 e 2000 com grande centralidade. E que a década viu ainda até mesmo um derradeiro filme de um representante da pornochanchada, Fauzi Mansur.

Uma outra geração que pareceu ter dificuldades de encontrar espaços mais adequados para se encaixar foi a dos cineastas que iniciaram a sua carreira nos anos 80, um grupo particularmente sacrificado pela tragédia dos anos Collor, os quais descontinuaram de forma muito forte suas trajetórias. De fato, ao longo da década nomes tão variados quanto Roberto Gervitz, Ugo Giorgetti, Oswaldo Caldeira, Hermano Penna, Augusto Sevá, Alain Fresnot, Jorge Durán, Sérgio Rezende, Sandra Werneck, Flavio Tambellini, Luiz Carlos Lacerda, Carlos Gerbase, Edgard Navarro, Ivan Cardoso estiveram envolvidos ou em processos muito longos de financiamento/finalização de obras ou em tentativas de filmes com maior apelo comercial ou, ainda, alguns riscos artísticos mais radicais, mas que, ao final, não conseguiram fazer com que suas obras encontrassem um eco mais amplo nos distintos espaços em que se aventuraram. Arriscaria dizer que algumas destas obras ainda correm sério risco de serem redescobertas com curiosidade no futuro (caso, por exemplo, de Cara ou Coroa, de Giorgetti; ou O Homem que Não Dormia, de Navarro), como tantas outras obras já foram na história. Mas não seria exagero dizer que, no momento de sua vinda ao mundo, elas não encontraram a conexão que, certamente, seus diretores tanto buscavam.

Por fim, é muito importante registrar outros nomes muito relevantes do cinema brasileiro com algumas décadas de serviços prestados que nos deixaram nos anos 2010, para além dos que já citamos acima: foi o caso de Paulo Cesar Saraceni, Sérgio Ricardo ou Hugo Carvana, todos ainda lançando derradeiros filmes no período, além do grande Carlos Reichenbach, que se não filmou nos anos 2010, deixou uma performance póstuma memorável como ator em Avanti Popolo, de Michael Wahrmann. Entre as gerações seguintes, cabe lembrar as partidas de Hector Babenco (que também deu origem a um documentário muito reconhecido, realizado por Bárbara Paz), Conceição Senna, Nelson Hoineff, Manfredo Caldas, Geraldo Moraes, Márcio Curi e Chico Teixeira, isso para ficarmos no campo dos diretores (porque, abrindo para atores, técnicos, críticos, etc., seria impossível qualquer exercício de síntese – e, seguramente, já omitimos nomes importantes aqui, pois este breve obituário não se pretende, de forma alguma, exaustivo).

QUE OUTRAS MARCAS DOS ANOS 90 AOS 2010?

Finalmente, vale dizer que várias das questões mais marcadamente estéticas ou conteudísticas que propusemos aos filmes dos anos 90 e 2000 de alguma maneira se encontram renovadas nos olhares dos curadores sobre os anos 2010. Assim, questões sobre a alteridade, sobre os heróis nacionais, sobre as construções ou desconstruções do país nas telas, sobre os dispositivos e maneiras de filmar mais constantes e presentes atravessam várias das problemáticas levantadas em cada um dos olhares propostos aqui em 2021. Se não serão “respondidas” exatamente é porque nunca foram pensadas na chave da conclusão, como nas teses acadêmicas, e sim na importância de levantar hipóteses que se renovam e que reencarnam a partir de outras problemáticas. Mas há sim perguntas que nos assombram na passagem destes já 20 anos entre a primeira mostra e esta de agora, ou linhas de força para além das que veremos em exibição na mostra, as quais nos deixam, no mínimo, curiosos – seja em busca de respostas em filmes futuros, seja em ganharmos um pouco mais de perspectiva e distanciamento a este momento para que, de longe, alguns contornos talvez pareçam mais claros. No espaço entre 2001 e 2021, por exemplo, causa curiosidade saber por que filmou tão pouco na década alguém como Beto Brant, que nos anos 90 e 2000 se impunha como um dos nomes centrais da geração surgida no período. De fato, podemos ir além e nos perguntar por que repercutiram bem menos as realizações no período dos mais centrais nomes do cinema pernambucano das décadas anteriores, como Claudio Assis, Lirio Ferreira e Paulo Caldas. Senão se poderia “retrospectar” os anos 90 sem passar por Baile Perfumado ou os anos 2000 sem exibir O Invasor ou Amarelo Manga/Baixio das Bestas, é com alguma surpresa que estes nomes (mas também os de Ricardo Elias, Cao Guimarães, Jorge Furtado, Joel Pizzini, Bia Lessa, para ficar em alguns outros com filmes decisivos nas décadas anteriores) tenham passado pelos anos 2010 tão discretamente. A maioria filmou pouco, é verdade, mas mesmo os que chegaram a realizar mais filmes (caso de Furtado ou Assis), viram seus filmes repercutirem significativamente menos do que nas décadas anteriores. Sinal dos tempos ou algo mais, e o quê exatamente? Afinal, se filmes como Febre do Rato ou Eu Receberia as Piores Notícias dos Teus Lindos Lábios ainda pareceram causar impacto nos primeiros anos da década, por que vieram tão pouco à memória ao final dela?

Mas não é o único ponto cego no balanço do período em termos de gerações mais novas. Cumpre ver como alguns dos nossos mais dedicados jovens cineastas maneiristas também encontraram pouco eco no recorte do grupo dos curadores convidades (de gostos muito variados, é bom que se diga). Quando pensamos em cinemas tão diferentes como os de Eduardo Nunes, Felipe Hirsch, Camilo Cavalcante, Gregorio Graziosi, Rodrigo de Oliveira, Eder Santos, Carlos Segundo, Petrus Cariry, Guilherme Weber, Bruno Safadi, Frederico Machado, Tiago Mata Machado, Gustavo Jahn e Melissa Dulius, Lucas Camargo de Barros, Rodrigo Lima, Ricardo Targino, Lina Chamie, Rodrigo Grota, Daniel Nolasco, nos pegamos pensando se estariam, estes, de alguma maneira “fora de seu tempo” ou se a natureza mesmo de suas obras torna mais difícil agrupá-los por recortes relacionais. No entanto, se são um grupo tão numeroso (que não se esgota aqui), isso já não apontaria uma linha de força que pede maior investigação? E se for questão de pensar sobre essa desconexão temporal, o que dizer de um OVNI como Chatô, literalmente um filme de muitos tempos? Feito ao longo de quase 20 anos, o filme nasce para o mundo como um objeto sui generis que representa vários momentos do cinema brasileiro em um só trabalho.

No exato oposto do espectro estético, também estaria, de alguma maneira, “fora do seu tempo” o cinema em notas menores, aquele das ficções do micro, que não necessariamente chamava a atenção para suas condições de produção? Pensamos aqui no cinema feito na década por nomes como Fábio Meira, Felipe Sholl, Cristiane Oliveira, Cláudio Marques e Marília Hughes, Dida Andrade e Andradina Azevedo, Hilton Lacerda, José Barahona, Felipe André Silva, Fabiano de Souza, Leo Lacca, Eliane Coster, Marcelo Lordello, Vinicius Reis, Ives Rosenfeld, Iberê Carvalho, entre outros. De alguma forma e com todas as suas diferenças, são todos cineastas do roteiro, num certo sentido, que parecem não buscar chamar a atenção para seus gestos autorais no estabelecimento do seu olhar, nas marcas da autoria cinematográfica talvez mais facilmente identificável. Pois, qual o lugar desse cinema num balanço dos momentos mais amplos de uma história? Lembramos aqui como o Cinema Novo, por exemplo, aglutina as memórias do cinema brasileiro dos anos 60 de forma quase totalizante quando representava, estatisticamente falando, uma minoria da produção do período. Quem ainda lembra que Victor Lima e J. B. Tanko foram os cineastas que mais filmaram longas naquela década? Na medida em que a produção total não para de aumentar, cada vez mais essas singularidades correm o risco de um apagamento pelas construções dos discursos mais totalizadores. Daí a importância de, ao menos, citar e relembrar/ registrar cineastas que fizeram obras bastante únicas no período.

Isso nos faz pensar ainda num outro exato oposto do espectro: no sentido da urgência de um específico histórico, como falar daqueles cineastas que realizavam obras “excessivamente do seu tempo”, como no cinema documentário de um gesto direto como em Bloqueio, de Quentin Delaroche e Victoria Álvares, ou nos filmes de Marcos Pimentel ou Miguel Augusto Ramos ou Alice Riff ou Dea Ferraz? Ou ainda as ficções de Renan Rovida ou Thiago Mendonça? Será que, com uma distância maior no tempo, eles serão convocados a nos esclarecer coisas sobre o Brasil dos anos 2010 que os tornarão incontornáveis de uma maneira que nem se pode perceber ainda, uma maneira que pediria justamente a distância histórica que ainda não temos?

E, finalmente, o que dizer do cinema que pareceu pôr em questão os alicerces mesmo em que se construiu uma proto-indústria ao longo destes dez anos, a qual hoje se encontra senão exatamente em ruínas (por enquanto, ao menos), certamente com muito receio de estar mais perto desta condição do que daquilo que imaginava como um crescendo de institucionalização? Pensamos aqui num cinema que quase não se reconhece como tal, nesse sentido da institucionalização ou dos formatos mais clássicos, pensando no cinema de um Arthur Tuoto, um Lucas Nassif, um Leo Pyrata, um Gabraz Sanna, um Luis Alberto Rocha Melo? Ou ainda um hiperativo cinema que parece não conseguir parar de filmar literalmente a qualquer custo e sejam quais forem as condições, como as numerosas realizações de um Dellani Lima ou de um Cristiano Burlan? Serão eles também marcas de um tempo específico (de barateamento das condições de produção, da incorporação de outros formatos de cinema quase artesanal e individual), ou apontam apenas o começo de algo que ainda não se vislumbra totalmente?

É assim que vemos como são intermináveis as perguntas que podemos jogar para a década de 2010 do cinema brasileiro. Lembremos mais uma vez: são em torno de 2000 longas! Com os curtas, os audiovisuais da web, os conteúdos na TV, os caminhos são infindáveis. A Revista Cinética, por exemplo, no seu esforço de olhar para essa década, propôs, entre suas “revisões dos anos 10” (http://revistacinetica.com.br/nova/tag/revisoesanos10/) uma série de textos sobre o que chamou de “Cinema de Rede”, fenômeno que mal margeamos aqui nesses balanços. É que é disso mesmo que se trata: aqui é só o começo, em vários sentidos, de uma conversa. Que para fazer sentido de fato pode e deve, necessariamente, continuar.

Eduardo Valente, idealizador da mostra, é formado em cinema pela UFF, com mestrado na ECA/USP e doutorado no PPGCINE/UFF. Trabalhou como programador em vários festivais e, desde 2016, é membro da equipe do Olhar de Cinema – Festival Internacional Curitiba, assim como delegado para o Brasil do Festival de Berlim. Trabalhou como crítico de cinema e editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011), e foi assessor internacional da Ancine (2011-2016). Como cineasta, realizou três curtas (Um Sol Alaranjado, 2001; Castanho, 2003; O Monstro, 2006) e um longa-metragem (No Meu Lugar, 2009), todos exibidos no Festival de Cannes, entre outros.

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