Artigo de Márcia Bessa, pós-doutoranda do PPGCINE. Este artigo foi publicado originalmente nos Anais de textos completos do XXV Encontro da SOCINE em 2023.
A partir de especificidades e definições dos conceitos de continuidade intensificada – como sendo “a continuidade tradicional aumentada, elevada a um nível maior de ênfase” (BORDWELL, 2006, p. 120) – e de pós-continuidade (SHAVIRO, 2012) – que privilegia o imediatismo e a sensorialidade ilimitados –, e seus reflexos formais no blockbuster hollywoodiano contemporâneo, depreendemos que a essência do paradigma clássico permanece viva sobretudo nos raccords centrados nos eixos de ação e olhar e na montagem que respeita a intenção dramática e a causalidade. A classificação de pós-continuidade lançada por Steven Shaviro (2011) deriva diretamente do conceito de continuidade intensificada proposto por David Bordwell (2002) e se refere sobretudo a tendências observadas nos últimos vinte anos, em que o cinema hollywoodiano tem presenciado a produção de alguns filmes que parecem não se preocupar tanto com o desenvolvimento de uma continuidade lógica de fatos e de uma narrativa plenamente coerente e inteligível. Diretores como Michael Bay, Christopher Nolan, Tony Scott, Mark Neveldine e Brian Taylor parecem sublimar a predisposição clássica-narrativa; privilegiando a estimulação sensorial do público. Porém, os padrões tecno-estéticos e os recursos tecnológicos utilizados em prol de uma experiência cinematográfica mais imersiva não são propriamente a negação do modelo dominante, que permanece transmutado em novos e singulares estilos fílmicos das últimas duas décadas do cinema e influencia longas-metragens comerciais de uma maneira geral.
Inserida na hiper aceleração informacional e cotidiana da contemporaneidade, uma importante parcela do cinema comercial hollywoodiano vai procurar refletir essas características dentro do filão de seus “filmes diversão” (JULLIER: MARIE, 2009, p. 214), em uma busca de soluções para a crise de público nos espaços de exibição tradicionais. À vista disso, o grande êxito de Star Wars (1977) nas bilheterias já se torna um divisor de águas e consagra um estilo fílmico que se pauta em roteiros simples e de fácil entendimento, em estímulos sensoriais intensos e nas reações emocionais do público. Mas a narrativa clássica não chega a ser ameaçada nesse momento. Com David Bordwell (2002), entendemos que o sistema de continuidade sedimentado pelo modelo naturalista de Hollywood não sofre nenhuma mudança estrutural e se submete somente a uma aceleração rítmica e intensificação espetacular. “As famosas regras de continuidade funcionam justamente para estabelecer uma combinação de planos de modo que resulte uma seqüência fluente de imagens, tendente a dissolver a ‘descontinuidade visual elementar’ numa continuidade espaço-temporal reconstruída” (XAVIER, 2005, p. 32).
Segundo Jullier e Marie (2009, p. 216), a partir das tecnologias digitais, e seus incessantes avanços, se viabiliza a transição de um cinema teatral (do quadro-palco) para um outro pictórico (do quadro-mutante). Seres são criados inteiramente de forma digital, através de códigos alfanuméricos, como os Velociraptors, de Jurassic Park (1994), que interagem com personagens interpretados por atores de forma natural e realista. Cenas inteiras se efetivam através de códigos alfanuméricos, compostas pela sobreposição do que os autores chamam de “planos-telas” e por imagens hiper-realistas. Esse tipo de plano permite uma ampliação dos limites na composição das cenas. A partir da primeira década do século XXI, a chamada pós-continuidade (SHAVIRO, 2011) intensifica uma maior liberdade na montagem e que passa a ser canalizada prioritariamente no intuito de impactar o espectador. Histórias ainda são contadas à maneira clássica, mas essa não parecer ser mais a principal preocupação do segmento fílmico em questão. O privilégio da sensorialidade suplanta a preocupação com a inteligibilidade e naturalidade da linguagem clássica-narrativa. “Nesse caso, os cortes na
edição são utilizados para criar um ritmo que afeta o público o mais intensamente possível” (RODRIGUES, 2015). E talvez produza novos dogmas aos quais a edição cinematográfica terá que se submeter. O cinema dominante absorve muitas dessas inovações, incorporando-as ao seu próprio sistema e garante a sua manutenção. E isso acontece em síntese revisando e ramificando a noção de continuidade intensificada – filmes de caráter espetacular, de atração quase circense, experiência cada vez mais imersiva, montagem frenética dos planos e conceito de espaço-tempo reconfigurado –, como propõe David Bordwell (2006, p. 120):
As novas técnicas não desafiam todo o sistema de continuidade; elas revisam ele. Longe de rejeitar a continuidade tradicional em nome da fragmentação e da incoerência, o novo estilo equivale a uma intensificação das técnicas estabelecidas. A continuidade in- tensificada é a continuidade tradicional aumentada, elevada a um nível maior de ênfase. É o estilo dominante dos filmes americanos de audiência de massa hoje.
Para Steven Shaviro (2011), o apelo ao imediatismo e sensorialidade supera em muito a preocupação com os ditames da continuidade cinematográfica, seja em relação ao encadeamento dos planos seja na narrativa cênica como um todo. O filósofo americano, então, entende que há uma mudança significativa – notada, por exemplo, em filmes da franquia Transformers (2007; 2009; 2011) – ou pelo menos uma ramificação do que Bordwell (2006) chamou de continuidade intensificada; resultando em uma série distinta de filmes comerciais, aos quais ele atribui a alcunha de cinema de pós-continuidade. Esse modelo parece aflorar em decorrência das acentuadas mudanças tecnológicas (o aparecimento do universo digital, da internet etc.) e das condições socioeconômicas e políticas (globalização, neoliberalismo etc.) contemporâneas globais. Estendendo o entendimento de Bordwell (2006), em Shaviro (2011) a narrativa não pode mais ser definida por quantidade ou intensificação, mas pela forma de sua construção. Nesse sentido, já não se pensa em quebrar as regras de continuidade e muito menos em segui-las sistematicamente, elas são mesmo colocadas em segundo plano em prol de uma estimulação sensorial intensa e constante do público. O objetivo é chocar mais e mais o espectador, empenhando-se em conseguir sua reação física e sua atenção fisiológica mental; culminando no chamado neurocinema (SHAVIRO, 2011) – ressaltando novamente o processo iniciado na Hollywood de fins dos anos 1970, que procura progressivamente minimizar a subjetividade e privilegiar a pura sensação.
Em outras palavras, não é que a continuidade comande – seja em sua forma clássica ou “intensificada” – ela foi abandonada, ela nem mesmo é violada de forma combinada. Em vez disso, embora essas regras continuem a funcionar mais ou menos, perderam a sua siste- mática; e — mais ainda — perderam sua centralidade e importância. Eisso marca o limite da afirmação de Bordwell, em seu artigo “Intensified Continuity”, que mesmo os movimentos de câmera extravagantes, edições ostensivas e efeitos especiais do estilo “intensificado” ainda servem ao mesmo objetivo final da narração clássica: colocar o público na posição de “compreender a história” e “render-se à ressaca expressiva da história”. Estruturas de continuidade, no entanto, não são apenas para articular a narrativa. Ainda mais importante, talvez, seja elas trabalharem para fornecer um certo senso de orientação espacial e para regularizar o fluxo de tempo. Onde Bordwell vê o estabelecimento de relações espaço-temporais como cruciais para a articulação da narrativa, eu estou inclinado a achar que a situ ação real é a contrária. Mesmo em filmes clássicos-narrativos, seguir a história não é importante em si. É apenas mais uma das maneiras que somos conduzidos à matriz espaço-tempo do filme; pois é através desta matriz que experimentamos o filme em múltiplos níveis sensoriais e afetivos (SHAVIRO, 2011, p. 10).
Com o surgimento de diversas outras mídias, o cinema comercial hollywoodiano precisou se reinventar para não perder seu público. Nessa era pós-cinemática (SHAVIRO, 2011), situamos o cinema de pós-continuidade – linguagem do videogame, estímulo sensorial, espetáculo de sensações, reações constantes, imediatismo e intensidade – como o principal trunfo de Hollywood para tentar recuperar o sucesso massivo de seus filmes. Nesse cinema, o espectador passa a ser uma testemunha próxima das ações que se desenrolam na tela. A câmera é nervosa, inquieta, se movimenta incessantemente pelo cenário e acompanha o espetáculo bem de perto; colocando o público no interior da cena. Os personagens são vistos objetiva e proximamente em toda a sua movimentação e intensidade. “É como se essa câmera se tornasse um corpo e esse corpo fizesse o papel do público, sempre o posicionado no meio da ação” (RODRIGUES, 2015).
Um filme de pós-continuidade talvez funcione como algo mais próximo das atrações sensacionalistas (das variedades e fantasmagorias dos primórdios do cinema), dos brinquedos eletrizantes dos parques de diversões ou dos mais perigosos números circenses. Assim, o cinema comercial hollywoodiano permanece produzindo e lucrando com seus filmes. Mas percebemos que esse sucesso renovado parece surgir de transformações cinematográficas viabilizadas nas últimas duas décadas, nas quais o cinema fez sua transição e consolidação digital. E, se formos analisar bem, os primeiros indícios dessas significativas mudanças já podem ser vistos efetivamente em filmes da última década do século passado, como Jurassic Park (1994), como mencionamos anteriormente. Podemos afirmar que a adoção de tecnologias digitais, cada vez mais avançadas, delinearam um tipo de cinema não contemplativo, hiper-realista, de edição frenética e contornos espetaculares. Essas tecnologias, que possibilitam a produção de cenas tecnológicas, acabam também por influenciar a linguagem dos filmes e mais ainda quando trabalham na intersecção com outras mídias pós-cinema.
As regras de continuidade fundamentaram as bases do cinema clássico narrativo, refletindo-se, particularmente, no sistema de representação naturalista hollywoodiano. Como nos diz Amiel (2007, p. 22), a historiografia do cinema, assenta-se no próprio princípio da decupagem clássica. “E ainda hoje, evidentemente, a maioria dos filmes utiliza esta convenção, segundo a qual as imagens devem contar uma história, participar num projecto de narrativa”. A história mantém o espectador suspenso e impõe uma escrita fílmica que liga os planos entre si, dando-lhes equilíbrio individual para que só possam ser apreciados e entendidos em sua sucessão contínua. E as próprias transformações pelas quais vem passando o cinema dominante ao longo de sua trajetória de existência vêm servindo de sustentáculo para a reafirmação do cinema Hollywoodiano como forma de contar histórias audiovisuais pela continuidade de fatos e pela contiguidade da lógica espaço-temporal fílmica.
Das vanguardas audiovisuais ao cinema de pós-continuidade (SHAVIRO, 2011), discursos dissonantes e rupturas propostas, que possibilitaram reflexões e avanços essenciais à evolução e sobrevivência da produção cinematográfica não romperam completamente com os ditames do sistema de continuidade, mantendo o cinema clássico narrativo ainda como o modelo dominante nos circuitos comerciais ocidentais. Entendemos que a essência do paradigma clássico permanece viva sobretudo nos raccords centrados nos eixos de ação e olhar e na montagem que respeita a intenção dramática e a causalidade. Sendo assim, quais seriam as consequências para a montagem fílmica dos apelos sensoriais, espetaculares, hiperativos e computacionais levados ao extremo? Esse cinema de excessos de sensações não impõe certos limites à edição audiovisual, que fica presa ao objetivo primordial de emocionar forte e imediatamente? A edição frenética e espetacular desse neurocinema (SHAVIRO, 2011, p. 153) eliminará totalmente a subjetividade em prol de um envolvimento intenso, contínuo e quase físico do espectador? O filme tradicionalmente narrativo está fadado a desaparecer no Século XXI? Quem sabe a pós-continuidade nos aproxime mais das fantásticas curiosidades pré-cinema e do espantoso “cinema de atrações” (GUNNING, 1995, p. 56) do que propriamente dos filmes da Era de Ouro de Hollywood? Acreditamos que as potencialidades do(s) cinema(s) de pós-continuidade(s), e suas relações com a montagem fílmica, possam trazer respostas a esses e a outros questionamentos.
REFERÊNCIAS
AMIEL, V. A estética da montagem. Lisboa, PT: Edições Texto & Grafia, 2007.
BATTLEFIELD. Criação: Johan Persson. Desenvolvimento: Electronic Arts, DICE, Visceral Games, Neowiz Games, Coldwood Interactive AB, Industrial Toys e Easy Studios. Estados Unidos: Electronic Arts e DICE, 2002. Série de Videogrames.
BORDWELL, D. The way Hollywood tells it: story and style in modern movies. Los Angeles: University of California Press, 2006.
______; THOMPSON, K. A Arte do Cinema: uma Introdução. Campinas: Editora da UNICAMP, 2013.
DUBOIS, P.; FURTADO, B. (Org.). Pós-fotografia, pós-cinema: novas configurações das imagens. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2019.
GAMER. Direção: de Mark Neveldine e Brian Taylor. Produção: Gary Lucchesi; Tom Rosenberg; Richard S. Wright & Skip Williamson. Estados Unidos: Lakeshore Entertainment, 2009. 1 DVD.
GUNNING, T. Uma estética do espanto: O cinema das origens e o espectador (in)crédulo. Revista Imagens, São Paulo: Editora da Unicamp, n.º 5, ago. / dez. 1995.
JULLIER, L.; MARIE, M. Lendo as imagens do cinema. São Paulo: Editora SENAC, 2009.
JURASSIK PARK. Direção: Steven Spielberg. Produção: Gerald R. Molen; Kathleen Kennedy. Estados Unidos: Universal Pictures, 1993. 1 DVD.
METZ, C. A significação no cinema. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.
REIZ, K.; MILLAR, G. A técnica da montagem cinematográfica. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1978.
RODRIGUES, R. Pós-modernidade e o cinema de pós-continuidade. Revista Arte Contexto, v. 3, n. 8, nov., 2015. Disponível em: http://artcontexto.com.br/artigo-edicao08_radael-rezende.html. Acesso em: 20 Mai. 2022.
______. Transformers: Pós-Continuidade e Cinema de Atrações nos filmes de ação. Anais digitais do XIX Encontro da SOCINE, UNICAMP – Campinas/SP, 2015.
SHAVIRO, S. Post-continuity: full text of my talk. 2012. Disponível em: http://www.shaviro.com/Blog/?p=1034. Acesso em: 17 mai. 2022.
______. The cinematic body: theory out of bounds. Minnesota, US: University of Minnesota Press, 2011.
______. Post Cinematic Affect. London, UK: John Hunt Publishing, 2010.
STAR WARS. Direção: George Lucas. Produção: Rick McCallum. Estados Unidos: 20th Century Fox, 1977. 1 DVD.
TRANSFORMERS – O filme. Direção: Michael Bay. Produção: Steven Spielberg, Michael Bay, Brian Goldner e Mark Vahradian. Estados Unidos: Paramount Pictures/Dreamworks, 2007. 1 DVD.
TRANSFORMERS: a vingança dos derrotados. Direção: Michael Bay. Produção: Steven Spielberg. Estados Unidos: Paramount Pictures, 2009. 1 DVD.
TRANSFORMERS: o lado oculto da lua. Direção: Michael Bay. Produção: Lorenzo di Bonaventura; Tom DeSanto; Don Murphy & Ian Bryce. Estados Unidos: Paramount Pictures, 2011. 1 DVD.
XAVIER, I. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2005.