Crítica escrita por Helena Zimbrão, graduada em cinema pela UFF.
É sempre uma delícia ver um cinema cheio, ainda mais se for por causa de um filme brasileiro. O novo filme de Kleber Mendonça Filho percorre as salas do Brasil em sua semana de pré-estreia e chega ao circuito comercial no dia 24 de agosto. Retratos Fantasmas é o quinto longa-metragem do diretor recifense e seu segundo documentário. Ou melhor, “documentário fantasia”, como ele mesmo define.
A verdade é que não importa se Retratos Fantasmas é ou não uma ficção. A todo momento, ele nos afirma que todos os filmes são documentos, independente de serem dramatizados; e que ao mesmo tempo, devemos desconfiar de tudo que vemos na tela. Aquilo que julgamos como “normal” – como uma cena em uma rua à noite – pode estar manipulado pela “imagem de cinema” – como vários canhões de luz que estão ali para iluminar essa mesma rua, sem que, no entanto, possamos perceber que ela foi artificialmente iluminada, graças à disposição da câmera. É nesse momento que Kleber sutilmente nos lembra que o cinema é a arte da ilusão (e que se “os filmes de ficção são os melhores documentários”, os filmes documentais são as melhores ficções).
Com um vasto acervo de imagens de arquivo coletadas ao longo de sete anos, Retratos Fantasmas dramatiza cenas reais da vida de Kleber e do centro de Recife, assim como transforma cenas ficcionais de filmes recifenses em documentos dessa história. Algumas são imagens caseiras – aparentemente sem muito tratamento, mas que passaram sim por um processo de restauração para que a nossa experiência fosse potencializada. Outras são cenas divertidíssimas dos bastidores dos filmes de Kleber – um prato cheio para o “fã clube”. E há ainda fotografias e sequências belíssimas, como a do fantasma que dança sobre a Ponte da Boa Vista. A brilhante montagem de Matheus Farias usa e abusa da justaposição dessas imagens, pelas quais somos conduzidos sob a costura do primoroso trabalho de som feito por Kleber (design de som) e Ricardo Cutz (montagem e mixagem de som). Além da narração absolutamente espontânea de Kleber, a trilha, a sonoplastia e os audaciosos momentos de puro silêncio reforçam a marca registrada desse diretor, que passou a perceber a importância do som nos filmes no falecido Cinema Veneza, em Recife.
Afinal, quem são os fantasmas dessa história? As memórias de um tempo passado ou nós, espectadores, que as vemos sem sermos vistos? De imediato, associei Retratos Fantasmas ao livro A Invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares (1940). Inclusive, tive a chance de perguntar ao Kleber se ele já havia lido o livro e se por acaso a obra tinha servido de inspiração para o filme. Ele me disse que não, mas que achava muito interessante essas correlações que acontecem por acaso. Em A Invenção de Morel, um refugiado está foragido em uma ilha habitada por “pessoas” que ele pode ver, mas que não podem vê-lo. Sem mais spoilers, o livro é uma grande analogia ao cinema e sobre sua capacidade de “fotografar o tempo”.
Retratos Fantasmas é um filme sobre os cinemas de Recife e sobre o Cinema feito em Recife, sobretudo aquele que é feito por Kleber Mendonça Filho. É muito interessante ver como elementos da vida pessoal de Kleber acabam virando parte de seus filmes – como é o caso do cachorro Nico, de O Som Ao Redor (2012) e dos cupins em Aquarius (2016).
Sim, o filme é uma carta de amor ao cinema, mas principalmente aos cinemas de rua e como as práticas de sociabilidade ali construídas transformam esses espaços em lugares de afeto, lugares de encontro. Faz-se urgente a luta para que os cinema de rua que ainda resistem não morram. Ocupá-los é a melhor forma de revitalizá-los. Nesse sentido, é notável o trabalho de distribuição que a Vitrine Filmes tem feito com Retratos Fantasmas. É uma pena que nem todos os filmes brasileiros e/ou documentários recebam essa mesma atenção (mas esse é um assunto para outro texto).

Certamente, foi uma experiência única ver um filme que carrega tanta memória sobre os cinemas de rua em um lugar como o Estação NET Botafogo, uma das poucas salas de rua do Rio de Janeiro que ainda resiste às severas transformações urbanas de individualização dos espaços – e que ainda preserva as marquises com letreiros que “comentavam a vida no mundo”, tão apaixonadamente representadas no longa.
A partir da década de 1980, no Rio, assim como em Recife, vários cinemas de rua fecharam e viraram igrejas. Curiosamente, o caminho inverso aconteceu com um dos personagens de Retratos Fantasmas: o Cinema São Luiz foi construído na década de 1950 bem no lugar onde havia uma igreja anglicana do século XIX. São esses “roteiros da vida real” – assim como a instigante história do herói-camelô recifense e o queridíssimo personagem Alexandre, o Projecionista – que nos mostram as infinitas possibilidades de fabulação da realidade.
No uber, voltando pra casa, a música estava cinematograficamente alta. Lembrei do maravilhoso diálogo entre Kleber e o personagem de Rubéns Santos. Fiquei o tempo todo olhando para o banco do motorista pra ver se ele ainda estava lá. Para entender o que estou falando, só indo ver Retratos Fantasmas nos cinemas.
Repetindo, nos cinemas! Para que fique bem claro 🙂