Texto escrito por Victoria Assunção da Silveira, estudante de Cinema e Audiovisual da UFF.
Fotógrafa, 19 anos. Escritora bilíngue de análise de filmes e livros.
A série de animação japonesa Paranoia Agent (2004), dirigida por Satoshi Kon, é comumente citada em discussões acerca da saúde mental no Japão contemporâneo, principalmente no que concerne ao trabalho e às expectativas e cobranças sociais. No decorrer dos episódios, somos apresentados a personagens divididos entre o que são e aquilo que lhes é esperado. A mentalidade cansada ou, ainda melhor, vencida que os domina e os rege é responsável por torná-los vítimas da inação e da reflexão circular destrutiva.
O que, por outro lado, não é muito convencional é a inserção da problemática das bombas atômicas à interpretação do psicológico desses personagens (Mlawski, 2009). Os Hibakusha (em tradução literal, pessoas afetadas pela bomba) são conturbados pela imprevisibilidade das coisas e atormentados pelo medo de repetição (Edwards, 2015); se valem do escapismo e da fuga da realidade, sendo estes a total ignorância perante às suas deteriorações mentais ou, até mesmo, a criação de uma second life (Subudhi, 2020) ou vida secundária que lhes assegura e refugia.
Os artifícios da memória em Millennium Actress[1] (2001) -, dos sonhos – em Paprika (2006) – e dos duplo-ambulantes – em Perfect Blue (1997) – são os mais referenciados ao se valer da mente e da contemporaneidade nas obras cinematográficas de Kon. No entanto, em Paranoia o diretor aponta para a necessidade igualmente importante do desbravamento da psique derrotada. Este, na série, é aliado à ancoragem no real – os casos de Hiroshima e Nagasaki, em Agosto de 1945 – e ao distanciamento daquilo que é considerado agradável e bom – abraçada à denominada estética da destruição.
No que se refere ao enredo, Paranoia discute temas como alienação, responsabilidade pessoais, a cultura do vitimismo e a ocupação japonesa com a fantasia (Mlawski, 2009). A série contempla diferentes histórias, mas todas partem da história de Tsukiko Sagi – ela é uma cartunista que, depois de ter criado um famoso e lucrativo personagem, Maromi, enfrenta um bloqueio criativo enquanto é pressionada pelo seu chefe e a empresa onde trabalha. Tal situação lhe causa alucinações (Maromi toma vida e conversa com ela) e, de forma subentendida, ela chega a criar Shonen Bat. Este é um personagem raso em essência e que, como norma, atenta contra diferentes personagens que “não sabem como lidar com a[s pressões do trabalho e da] vida” (Derrat, 2023).
Não há referências exatas às bombas atômicas em Paranoia – para além da música da abertura da série: “as crianças perdidas são uma espetacular nuvem de cogumelo no céu (…)”-, mas há uma espécie de sensação apocalíptica pairando no ar como, por exemplo, a existência hipotética de Shonen Bat. A estética da destruição, aqui, se dá do nível psicológico (a mentalidade do japonês empregado, mas pressionado no espaço de trabalho) ao real (alucinações, depreciação da saúde mental, violência e morte). Nota-se que, a fim de elevar esse estado de coisas e o terror da série, os animadores de Paranoia se aproveitaram da infinitude gráfica que o desenho e o CG (Computer Graphics) proporcionam para gerar deturpações imagéticas e figurações monstruosas para as alucinações
[1] Vale pontuar que a história de Millennium se passa durante a Segunda Guerra Mundial (isto é, antes da bomba atômica), mas ainda assim o artifício da memória é explorado na mesma perspectiva de um antes feliz e um depois apocalíptico.

Imagens de Paranoia Agent (2004). Dir: Satoshi Kon. Créditos: Madhouse
Os personagens de Paranoia têm a indicação de problemas mentais na fuga da realidade. As alucinações devem ser entendidas como manifestações dessa mentalidade destruída e vencida pelos medos e pelas pressões sociais, totalmente vulnerável e afetada pelo estado das coisas. O estilo de trabalho no Japão (relação cultural intrínseca das vidas pessoal e profissional; grandes exigências em prazos encurtados e com poucos recursos) é interpretado, aqui, como uma espécie de epidemia dentre o japonês ordinário. Há um distanciamento das expectativas de uma vida que te trata bem, radicalmente substituída por fantasias desagradáveis. Afinal, a figura de Shonen Bat é uma personificação do sistema laboral[1] apocalíptico do Japão.
Outros animês que exploram a estética da destruição são Akira (1988), dirigido por Katsuhiro Otomo, e Memories (1995) – um package film composto pelos médias-metragens Magnetic Rose (dirigido por Koji Morimoto e escrito por Satoshi Kon), Stink Bomb (de Tensai Okamura) e Cannon Fodder (de Katsuhiro Otomo).
Primeiramente, percebe-se, em Akira, tal estética aplicada ao enredo. A própria Neo-Tóquio, o local distópico onde se passa a história, surge de uma bomba no dia 16 de Julho de 1988; fica claro, no desenvolvimento da trama, que o evento, análogo às bombas de Hiroshima e Nagasaki, influencia diretamente a vida das gerações futuras do Japão. É como se houvesse a criação de um novo país, em que a mentalidade geral condizesse com a pertinente delinquência juvenil e a estética do cyberpunk
[1]Voltando a Paprika (2006), há uma cena em que trabalhadores de colarinho branco se jogam do prédio corporativo com sorrisos estampados nos rostos enquanto seguem uma coreografia de salto ornamental, muito parecida com nado sincronizado. Esse também é um exemplo do sistema laboral japonês em questão, partindo dos históricos Kamikazes.

Imagens de Akira (1988). Dir: Katsuhiro Otomo. Créditos: Akira Committee Company Ltd.
Há, depois, a temática da bomba no personagem Tetsuo. Ele, ao longo do filme, se entende por gente e chega, até mesmo literalmente, a crescer imensuravelmente e explodir para se entender como ninguém mais e ninguém menos que Tetsuo. O caminho identitário se dá, metaforicamente, como uma verdadeira bomba – aliado, novamente, à estética da destruição.
Por fim, é interessante notar as formas de representação gráfica aplicadas à Selective Animation. A conversa entre a Limited (2D) e a Full Animation (3D), possibilitada pelas técnicas do Cel Animation e os avanços tecnológicos do CGI, viabiliza sobreposições de diferentes figuras e o uso de efeitos especiais dos mais diversos. Em conformidade, isso contribui para o sucesso da estética da destruição, marcada pelas múltiplas informações na tela e pela mistura e justaposição dos meios gráficos:

Imagens de Akira (1988). Dir: Katsuhiro Otomo. Créditos: Akira Committee Company Ltd.
Memories, por sua vez, toma a ideia de um agora feliz e um depois apocalíptico para compor a ambiência tipicamente associada à estética da destruição. O primeiro média, Magnetic Rose, é um extremo exemplo disso: no espaço, dois tripulantes, seguindo um sinal, investigam um desconhecido (mas interessante) aglomerado de asteroides; ali, adentram um mundo imaginário e alucinógeno criado pelas memórias de uma antiga cantora de ópera. Os espaços cinematográficos são representativos da estética da destruição:

Imagens de Magnetic Rose (1995). Dir: Koji Morimoto. Créditos: Madhouse
O que encontram ali variam entre boas memórias (dos tripulantes na Terra, com suas famílias e vivendo romances) e alucinações ruins. Isto é, neste ponto, a estética da destruição se dá pelo fim das boas expectativas, como as de Heintz com o futuro de sua pequena filha:

Imagens de Magnetic Rose (1995). Dir: Koji Morimoto. Créditos: Madhouse
O segundo média, Stink Bomb, fala de um jovem químico que, ao tomar a pílula-teste errada, não só continua resfriado como se transforma numa arma biológica implacável. É óbvio que a própria temática remete às bombas atômicas, mas o que é interessante aqui é o desconhecido em forma de pílula e o surgimento de uma invenção que muda tudo, assim como são as armas nucleares. No terceiro média, Cannon Fodder, se tem um dia numa cidade que tem como único propósito disparar canhões em inimigos desconhecidos. Neste, uma postura de ataque, antes de uma defesa – essa mentalidade indica que o desconhecido é tão assustador que deve ser destruído antes mesmo de se mostrar. Ou seja, tudo aquilo que é ruim, já que potencialmente destruiria as memórias cultivadas e as expectativas de futuro dos povos, deve ser prontamente aniquilado.
Em conclusão, tanto Paranoia Agent quanto Akira e Memories se valem da estética da destruição nos enredos e na representação gráfica dos espaços cinematográficos. A representação do real é completamente ligada às possibilidades que o Selective Animation e o CG permitem às animações e sustentada, além de demonstrações literais, por analogias e metáforas. De forma geral, fala-se da necessidade do desbravamento da psique derrotada, dessa mentalidade apocalíptica que circunda o imaginário japonês e tópicos da saúde mental, assim como suas vidas pessoal e profissional.
Referências bibliográficas
DERRAT, Max. Paranoia Agent – The Most Terrifying Anime Ever?. Max Derrat Stay Yellow, 2023. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=JlJynW0zrXA. Acesso em 8 de Julho de 2023.
EDWARDS, Matthew. The Atomic Bomb in Japanese Cinema: Critical Essays. McFarland, 2015. Disponível em
Acesso em 8 de Julho de 2023.
MLAWSKI, Seth. Overthinking Anime: Kawaii Culture, Superflat, and the Bomb in Paranoia Agent. Revista Overthinking it, 2009. Disponível em https://www.overthinkingit.com/2009/03/24/overthinking-anime-kawaii-culture-superflat-and-the-bomb-in-paranoia-agent/. Acesso em 8 de Julho de 2023.
SUBUDHI, Rabi. DAS, Srikant. SAHU, Sonalimayee. Digital Escapism. Horizon Journals. Journal of Humanities and Social Sciences Research, 2020. Disponível em https://horizon-jhssr.com/view-issue.php?id=63. Acesso em 8 de Julho de 2023.