Trabalho original de Lara Bereta Faria para a disciplina de História do Cinema, ministrada pelo professor Gledson Mercês na CAL (Casa de Artes de Laranjeiras).

INTRODUÇÃO

“Tem uma máquina grande chamada projetor. Dentro dela, tem uma luz grande e forte que projeta fotos de palhaços e acrobatas, e projetar significa mostrar. Essas fotos se movem muito rápido pela luz, 24 fotos por segundo. Na sua mente essas fotos ficam paradas por 15 avos de um segundo. Isso se chama persistência de visão. As imagens se movem mais rápido do que seu cérebro consegue acompanhar e é assim que os filmes enganam seu cérebro para pensar que elas estão se movendo. Um quadro em movimento (motion picture).”

Assim começa Os Fabelmans (2022), filme autobiográfico de Steven Spielberg. Antes de entrarem no cinema pela primeira vez, o pai de Sammy, Burt, explica como funciona a técnica por trás dos filmes. É a partir desse momento, depois de assistir “The greatest show on Earth” de De Mille (1952), que o menino desenvolve seu vício.

“Somos viciados e a arte é a nossa droga”. Foi isso que disse seu tio Boris alguns anos depois, ao tentar apaziguar a frustração de Sammy. Logo após o falecimento de sua avó, Burt pediu ao filho que deixasse de lado o filme em que estava trabalhando, e montasse um vídeo para sua mãe, Mitski, que estava profundamente absorta em seu luto. Enquanto cumpria, a contragosto, o pedido de seu pai, Sammy encontra vídeos do acampamento feito em família que revelam um segredo: Mistki traía Burt com seu melhor amigo e parceiro de trabalho, Bennie.

Depois de contar à mãe o que sabia, a família se muda para a Califórnia e deixa Bennie para trás. Contudo, somado à nova casa, à nova cidade e ao novo animal de estimação, os Fabelmans encontram, também, novos desafios. Sammy sofre bullying e antissemitismo na escola, conhece sua primeira namorada e cogita desistir do amor pelo cinema, ao mesmo tempo em que a situação entre seus pais fica cada vez pior. Logo, a narrativa culmina no divórcio do casal, a partir da decisão tomada por Mistki de retomar o relacionamento com Bennie.

Um ano depois, Sammy continua morando com Burt em Los Angeles, e, inspirado pela mãe, desiste da faculdade que cursava para seguir seu sonho de se tornar um cineasta.

 

UMA ODE AO CINEMA

Os Fabelmans é, em grande parte, uma homenagem de Spielberg ao amor de sua vida: o cinema. Por isso, o filme incorpora tantas menções à história do cinema, às técnicas e aos filmes que o inspiraram.

Em seus primeiros curta-metragens, Sammy começa a explorar os efeitos especiais, furando o rolo da câmera com um alfinete para produzir o efeito de tiros em uma narrativa de faroeste, usando sorvete de creme para uma cena em que pombos defecavam nos atores e suco de groselha como sangue falso em cenas de guerra. Assim, é notável a influência, mesmo que indireta, de George Mélies e sua obra Viagem à Lua, que ocupam uma posição de pioneirismo no que se trata de efeitos especiais cinematográficos (efeitos de câmera, iluminação, “stop motion”, etc).

Não só, mas Sammy também utiliza frequentemente o tipo de montagem contígua em seu curta faroeste. Na antecipação da briga entre caubóis, por exemplo, transita com a filmagem de um caubói para o outro, estando eles em espaços muito próximos. O uso de montagem foi uma descoberta fundamental no cinema, associada especialmente a D. W. Griffith (1875-1948) e obras como O nascimento de uma nação (1915).

Todavia, a relação com a história do cinema no filme se estabelece, principalmente, na introdução de Boris, tio de Sammy, que havia trabalhado como domador de leões em vaudevilles e como ator de filmes mudos. Dessa forma, Os Fabelmans remete aos primórdios da sétima arte, tendo os vaudeviles como locais propícios para seu florescimento e expansão.

Além da conexão histórica, é importante notar a conotação social associada aos artistas naquele período. Boris diz a Sammy: “Família. Arte. Isso vai dividir você.” Ele expressa, desse modo, a marginalização que sofriam aqueles que se associavam às formas artísticas dos vaudevilles, como a adestração de animais e as práticas acrobáticas, que eram vistas como pouco civilizadas.

Nesse sentido, o medo da rejeição acompanha Sammy durante toda a sua adolescência. Porém, quando supera esse percalço e persegue sua afeição pela arte, entendemos que Os Fabelmans é, acima de tudo, uma carta de amor de Spielberg para sua família.  

 

UMA ODE AO AFETO

A própria história do filme já concede ao espectador uma importante informação: entende-se o cinema como a arte de revelar, aumentando a lente sobre a vida e navegando pelo que se esconde atrás do que é tido como cotidiano. Prestando atenção, Sammy encontra em suas filmagens aquilo que ninguém pôde perceber no dia a dia, como a infelicidade de sua mãe, o crescente afeto entre ela e Bennie, sua busca pela liberdade.

Caso esses dados da narrativa fossem explicados a alguém que não assistiu o longa, a pessoa poderia pensar que se trata de uma relação de rancor. Entretanto, Spielberg busca o que se esconde além da obviedade, e mostra que a atenção é o pressuposto para o afeto.

O diretor elabora sua mãe, seu pai, Bennie e todos os outros personagens com a mesma reverência que aborda o cinema. A forma como os pais falam um do outro, sempre enxergando o melhor mesmo em conflito, a vulnerabilidade apresentada pelo “bully” no trecho da formatura de Sammy, e, em suma, a capacidade de amar de cada personagem, torna esse filme um retrato sensível e sensibilizador da vida de um dos cineastas mais conhecidos da atualidade.

Acredito, então, que o longa de Spielberg carrega uma lição sobre a arte: o fazer artístico está, principalmente, ligado à atenção, e o prestar atenção está profundamente conectado ao afeto. Segundo Artaud, o ator (aqui, leia-se artista num geral) é um atleta do coração, ou seja, o afeto é sua matéria-prima.

Por fim, a mensagem de Os Fabelmans pode ser resumida em uma das primeiras falas de Burt para Sammy: “Você não pode só amar alguma coisa, você precisa cuidar dela”.

 

Referências:

INÁCIO, Denise Scandarolli D. et al. O primeiro cinema-espetáculo: a influência da estética teatral nas primeiras projeções cinematográficas. 2014.

TECMUNDO. A história dos efeitos especiais no cinema: do início à virada do século XIX. 2018. Disponível aqui.

COSTA, Flávia Cesarino. O primeiro cinema-espetáculo: espetáculo, narrativa e gêneros. 2005. Disponível aqui.

WIKIPEDIA. The Fabelmans. Disponível aqui.

WIKIPEDIA. The Greatest Show on Earth (film). Disponível aqui.

BRODY, Richard. “Steven Spielberg’s “The Fabelmans” Is Long on Verve and Short on History”. The New Yorker. 2022. Disponível aqui.

WIKIPEDIA. Montagem. Disponível aqui.

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