A documentarista norteamericana Kristine Stolakis veio ao Brasil divulgar seu filme Pray Away (2021). O documentário aborda a chamada “terapia de conversão” sexual nos EUA, mais conhecida no Brasil como “cura gay”. O filme conta como essa prática nociva era e ainda é imposta à comunidade LGBTQIAPN+ e como as terapias de conversão causam danos psicológicos e físicos às vítimas. O recorte do primeiro longa-metragem de Stolakis é interessante porque através de sua pesquisa ela observou que os líderes destes grupos eram comandados por pessoas que se diziam ex-gays. A cineasta entrevistou esses ex-líderes e sobreviventes da chamada terapia de conversão. O filme, disponível na Netflix, mostra como os discursos preconceituosos fazem com que as próprias pessoas LGBTQIAPN+ internalizem o ódio que recebem. Apesar dos métodos de reversão de orientação sexual serem proibidos pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) desde 1999, esses métodos seguem existindo no Brasil.
O Consulado dos Estados Unidos da América no Rio de Janeiro e o Grupo Arco-Íris de Cidadania LGBTI+ realizaram um evento na Biblioteca Parque do Rio de Janeiro no dia 21/06/23 em que foi exibido o filme e houve uma roda de conversa com a presença da diretora. O evento foi muito emocionante porque contou com a participação de sobreviventes de terapia de conversão e também teve a presença de líderes religiosos que eram LGBTQIAPN+ e estão interessados em criar ambientes religiosos acolhedores para pessoas LGBTQIAPN+. Um dos participantes do evento foi o psicólogo Héder Bello. Héder foi submetido à terapia de conversão quando adolescente pelo grupo Exodus, o mesmo grupo religioso que Stolakis documenta em Pray Away (2021). O psicólogo destacou a importância das universidades públicas para as pessoas LGBTQIAPN+, porque foi através do seu egresso no curso de graduação de psicologia da UFF que ele conseguiu sair dos grupos de cura gay que fazia parte.
Confira a seguir a entrevista realizada com a cineasta Kristine Stolakis no evento.
1) JULIA ALIMONDA: De onde surgiu o interesse pelo tema?
KRISTINE STOLAKIS: Eu me interessei pelo tema porque meu tio fez terapia de conversão sexual quando era criança e se assumiu como pessoa trans, nos anos 1960. Meu tio realmente começou a pensar que ele tinha alguma doença e isso foi reforçado pela cultura católica. Ele ficou mais velho e nunca encontrou um espaço de auto aceitação, sempre esteve em sofrimento psicológico. O auto ódio nesses ambientes é tão comum, você começa a se odiar por conta de todas as forças externas que recebe e quando sai destes grupos de terapia de conversão, esses discursos não saem de você. Por isso existem tantos casos de automutilação e suicido.
Meu tio definitivamente foi ensinado a se odiar e eu vi isso de perto, como membra da família que o amava. Ele faleceu um pouco antes de que eu entrasse na faculdade de cinema e durante a minha graduação decidi que esse seria o primeiro tema que gostaria de abordar em um filme.
Comecei a pesquisar e descobri que a maioria das organizações de terapia de conversão são lideradas por pessoas que falam que eram gays e conseguiram mudar. É um mundo de auto ódio internalizado. Notei que por anos a estrutura da terapia de conversão da Exodus funcionava como uma organização guarda-chuva nos Estados Unidos e que continua a existir como uma aliança global.
Uma coisa que tentei mostrar no filme é que enquanto existir homofobia e transfobia no mundo isso vai continuar a acontecer. Mesmo que as terapias de conversão sejam ilegais no mundo todo, se existe ódio contra pessoas LGBTQIAPN+ essas coisas vão continuar a acontecer de alguma forma.
2)J.A.: Gostaria que você falasse um pouco do processo de pesquisa. Como você encontrou esses personagens e as imagens de arquivo?
K.S.: Eu queria que o filme desconstruísse as relações de poder que acontecem nesse espaço e mostrar uma história poderosa de como essas pessoas estiveram conectadas com a mesma organização de conversão de terapia, a Exodus, a maior organização de terapia de conversão do mundo. Ela era uma referência de terapias de conversão. E era uma organização internacional com sede até no Brasil e que está ativa aqui até hoje.
Meu primeiro curta foi sobre mulheres que lutam por igualdade de gênero em comunidades mórmons. Através destas personagens tive acesso à sobreviventes de terapias de conversão que conheciam os líderes desses movimentos. Assim que optei por ter a Exodus como cerne do filme em termos narrativos pensei em como poderia chegar até essas pessoas. E isso é típico dos caminhos dos documentários, você meio que tenta entender por meio de relações pessoais como chegar perto das fontes que quer trabalhar. Quando um dos ex-líderes da Exodus topou em fazer parte do projeto, outras pessoas também aceitaram. Depois de criar uma boa relação com eles, eles confiaram que eu poderia contar a história de uma maneira interessante.
Nossa pesquisa em imagens de arquivo foi uma loucura. Pesquisamos nos arquivos pessoais dos personagens, em sites específicos cristãos que vendiam cursos de terapia de conversão, bibliotecas de universidades… os materiais vieram de lugares muito variados e eu e minha editora Carla Gutierrez tentamos fazer a melhor seleção para deixar a história coesa.
3)J.A.: Acho que o filme fala também do senso de comunidade. É importante pensar a comunidade LGBTQIAPN+ como uma comunidade. Da mesma forma, o cinema também é feito em conjunto, através de várias mãos. Como foi dirigir esta equipe?
K.S.: Concordo totalmente com a ideia de que os filmes se fazem em conjunto. O problema da teoria do autor é que se centra na figura do diretor, como se o diretor estivesse acima da sua equipe, acho que é um entendimento errado do papel da direção. Acho que a direção é a condução dos caminhos. Às vezes falam como se a pessoa na direção tivesse feito tudo sozinha e o resto da equipe não tivesse feito nada. Você tem que estar colaborando com seus produtores, seus editores e seus personagens.
J.A.: A teoria do cinema feminista vê o processo fílmico de forma bem diferente.
K.S.: Exatamente. A teoria feminista do cinema e a teoria queer mostram como é possível pensar o cinema criativamente de tantas formas. E acredito que exista uma tensão maior em estar na direção quando se faz parte de alguma minoria, se você é uma mulher, uma pessoa negra, uma pessoa queer. Nem sempre nós conseguimos reivindicar nosso espaço e ter orgulho das nossas conquistas. Eu estou orgulhosa desse filme e trabalhei duro junto com uma equipe incrível. Minha equipe foi composta por mulheres e pessoas queer e trabalhamos com a produtora Multitude Films, que é uma produtora queer. Contribuiram para este filme sobreviventes de terapia de conversão, pessoas queer em comunidades religiosas conservadoras… O filme foi feito com todas essas contribuições desde o início, por isso vejo uma verdade nele. Gosto de pensar que foi porque minha equipe foi muito diversa, as pessoas tinham experiências muito diferentes.
4)J.A.: Inicialmente achei que sentiria raiva ao assistir ao filme, mas o meu sentimento principal foi tristeza. Apesar dos personagens terem feito coisas ruins e você não esconder isso, eles também são vítimas de um sistema que estigmatiza pessoas LGBTQIAPN+. Como você criou o ambiente confortável para que seus personagens pudessem ser honestos e vulneráveis diante das câmeras?
K.S.: Um princípio básico para mim que me guia como cineasta é a ideia de que para o filme ser bom você precisa ter boa relação com as pessoas que você entrevista e com sua equipe. Não tem mágica para ter boas relações, é preciso tempo e você deve compartilhar suas intenções de forma transparente. Tentei deixar claro que não importa o que acontecesse nós íamos filmar, deixei claro que não ia esconder as coisas ruins que eles fizeram. Mas quis mostrar que não era problema de um indivíduo só. A cultura da homofobia é internalizada e é o que motiva as pessoas LGBTQIAPN+ a tentarem mudar e virar heterossexuais.
Assim como você, eu comecei sentindo raiva, frustração, me sentindo sobrecarregada. Eu ouvi essas pessoas falando as coisas que fizerem meu tio se odiar e achar que deveria mudar. Mas no final do processo do filme eu só senti uma profunda tristeza. Esse filme mostra que existem várias camadas de trauma, o trauma faz com que mais pessoas sejam traumatizadas. Nós tentamos montar o filme pensando nessa montanha russa de emoções. Queríamos que o público sentisse compaixão, raiva, indignação. Já me falaram que é emocionalmente cansativo assistir Pray Away. Não gosto de filmes que sejam muito didáticos, que falam o que você deve pensar, acho que temos que sentir os filmes, eu espero ter conseguido fazer isso.
5)J.A.: Seus outros dois curtas, Where We Stand (2015) e The Typist (2017), abordam sexualidade e gênero em ambientes conservadores, dá pra ver que é um tema recorrente na sua filmografia. Em Where We Stand (2015) você dcoumenta um grupo de mulheres que luta por direitos iguais em uma comunidade mórmon e em The Typist (2017), é um veterano de guerra gay enrustido que era o responsável por dispensar os marinheiros gays assumidos. Em Where We Stand uma das personagens falam como os mórmons odeiam confrontos. E acho que seus filmes expões esses confrontos, em Pray Away (2021) você poderia só ter condenado os grupos religiosos de maneira genérica, mas você expõe uma complexidade. Como você vê essa contradição entre sexualidade e religião?
K.S.: Obrigada pelos seus comentários! Minha coisa preferida sobre os documentários é que eles conseguem sustentar a verdadeira complexidade. Não acho que o mundo possa ser visto de forma tão binária. As respostas simples e diretas são importantes, mas acho que é nossa função refletir de forma complexa sobre o mundo. As pessoas falam que faço filmes sobre religião, mas acho que Pray Away (20121) é sobre dinâmicas de poder e a religião concentra poder no nosso mundo. Acho que meus filmes que envolvem o universo religioso acabaram, não vou mais seguir com este tema. Agora estou trabalhando em um filme sobre jovens adolescentes com transtornos alimentares. Acho que a religião e outras forças na nossa cultura tem o poder de dizer o que é o certo e o que é errado, como devemos nos comportar e isso interfere nos corpos femininos.
6)J.A.: Que dicas você daria para jovens mulheres que querem ser documentaristas?
K.S.: Termine seus filmes. Nós mulheres achamos que precisamos fazer tudo perfeito e que não podemos cometer erros. O seu primeiro filme provavelmente não será incrível e isso é totalmente aceitável. E você precisa terminá-lo e ir fazer o próximo para ganhar habilidade. Além da pressão interna, acho que como minorias nós sofremos uma pressão externa para sermos as melhores que conseguimos. Sentimos pressão porque devemos ser a melhor cineasta, sentimos que não podemos fracassar por causa da nossa comunidade. Mas o que nós precisamos é de mais espaço nas mídias. Então você precisa se dar o espaço de errar, de terminar seu filme e passar para o próximo.

Imagem do evento realizado na Biblioteca Parque. Da esquerda pra direita: Esther Morgana, Claudio Nascimento, Kristine Stolakis, Claudia Machado, Luiz Gustavo Silva e Heder Bello. Imagem do Consulado Geral EUA – Rio.