Originalmente publicado no e-book Comunicação Pública e Cidadania: Experiências e Práticas Inovadoras – vol. 2 – 2022 e apresentado no I Congresso Brasileiro de Comunicação Pública, Cidadania e Informação – 2021 – ABCPública. Selecionado no III Congresso TeleVisões – 2022 – UFF.
- RESUMO
Quem de nós não chegou a cogitar o fim do mundo, ou o fim da espécie diante do duplo vírus que ainda assola nosso país? Partindo dessa premissa, recorremos a Ailton Krenak com suas ideias para adiar o fim do mundo e ao mesmo tempo, clamamos por Davi Kopenawa para evitar a queda do céu. É neste clima, que abordaremos temas como pensar a televisão pública a partir da arte e da cultura, uma televisão pública que legitima o lugar de fala das minorias, que exerça uma comunicação pública que busca alcançar as pessoas em sua perspectiva de cidadã. Traremos o programa Peri, nosso principal estudo de caso, que é uma produção da TV Universitária da UFRN, que ressignifica a periferia através de uma perspectiva sociocultural e artística.
- PALAVRAS-CHAVE
Televisão pública; Periferia; Fim do mundo;Arte; Cultura.
NO PRINCÍPIO ERA O VERBO QUE SE FEZ IMAGEM OU A DESTRUIÇÃO? UMA INTRODUÇÃO
A televisão pública teve seu marco inicial na vigência da ditadura militar, logo após o golpe de 64. A primeira delas a entrar no ar foi em Recife, no ano de 1967, vinculada a Universidade Federal de Pernambuco, a UFPE, e em 1972, foi a vez da TVU de Natal, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a UFRN. Embora ambas sejam chamadas de TV Universitária, são na verdade, televisões educativas, criadas com objetivo de fazer parte do programa de teleducação do país, o PRONTEL (Programa Nacional de Teleducação). A partir de São José dos Campos – SP, as aulas eram transmitidas via satélite para Natal – RN e a partir da TV Universitária que opera em sinal aberto, retransmitia para diversas localizações do estado, atendendo, digamos assim, às lacunas da carência educacional. Faremos aqui um adendo para fazer a distinção entre tv educativa e universitária. As educativas foram criadas para operar em sinal aberto, com total acesso à população, diferente das tvs universitárias que surgiram anos depois, através da Lei a Cabo, a partir do final da década de 90, e todas elas têm acesso restrito, vinculados a tvs por assinatura, portanto, não são canais abertos.
Esse caráter educativo da radiodifusão brasileira utilizadas pelos militares nesse período citado da criação das tvs educativas/universitárias em pauta, em que investiram na teleducação, tinha o pretexto, como diz Luiz Beltran, citado por Jonas Valente, no texto Concepções e abordagens conceituais sobre sistema público de comunicação , de qualificar mão de obra a fim de impulsionar a industrialização do país, e ao mesmo tempo que as mídias públicas massificariam a educação , apoiariam os processos educacionais e permitiriam atingir, com relativa facilidade, as populações que estavam excluídas dos círculos sociais da educação. Tal assertiva nos remete ao que Raymond Williams coloca de que um regime fascista pode vislumbrar rapidamente o uso da radiodifusão para controle político e social. O teórico acrescenta que em sociedade fascista o controle direto por parte do Estado era um instrumento político natural. Quando pensamos, que passados mais de 50 anos do surgimento da televisão pública , ainda vemos essa prática se repetir. O que no faz corroborar com o pensamento do teórico ao concluir que
a radiodifusão pública foi efetivamente, desde o início, um mercado competitivo . As principais redes, que começaram a se formar em 1926, tornaram-se as instituições características do rádio e, por fim, da televisão. O serviço público, no sentido amplo de não vinculado ao mercadológico, desenvolveu-se em uma estrutura já dominada por essas instituições. (Williams,2016: p.46)
Vimos que o processo complexo da invenção da televisão pública teve intenções específicas militares, administrativas e comerciais, e cada uma delas, como disse Williams, interagiu com o que foram , por períodos reais, ainda que tenham sido limitados. Ele traz um exemplo que acho interessante ilustrar como forma de nos situar dentro daquilo que ainda experienciamos, e nos instiga a perceber que qualquer semelhança, não é mera coincidência.
O teórico nos diz ser interessante que no início da revolução industrial na Grã-Bretanha, quando a educação teve de ser reorganizada, a classe dominante decidiu ensinar os trabalhadores a ler, mas não a escrever. Se eles pudessem ler, entenderiam novos tipos de instruções e, ainda, a Bíblia, para a elevação moral. Eles não precisavam saber escrever, já que não teriam ordens, instruções nem lições a comunicar. No máximo, eles poderiam se esforçar para produzir assinaturas simples, que seriam exigidas, ocasionalmente, para propósitos oficiais. O aprendizado completo da escrita se deu depois, com um maior desenvolvimento da sociedade e da economia. E o que aconteceu com a leitura é muito significativo, pois não há maneira de ensinar um homem a ler a Bíblia que não o capacite também para ler os jornais. “ Uma intenção controlada tornou-se um efeito incontrolado. (….) É interessante que muitas das contradições da democracia capitalista emergiram com o argumento do controle televisivo”. (ibidem, p. 140 e 141)
Fizemos um intróito do caminho de nossa pesquisa, e sem a intenção de traçar um histórico, situamos, a princípio, o contexto em que essas tvs foram criadas, e outras surgiram para além da Região Nordeste, no entanto, nosso objeto de pesquisa centra-se -á nesta região, e com foco na Tv Universitária da UFRN. Iremos investigar a tv pública naquilo que ela vem realizando no campo da arte e da cultura, verificando a linha do tempo dentro de um dado período que compreende 50 anos da TVURN, 1972 a 2022. E como pano de fundo, viajaremos nas asas do tempo, contextualizando a programação com o momento histórico do nosso país, ou seja, da ditadura militar ao nazifascismo. Para tal, utilizaremos dos recursos metodológicos como pesquisas bibliográficas, recolhimento de material, como documentação seja escrita ou virtual, realização de entrevistas , além de eleger alguns programas, além do exposto, dentro dos eleitos como nosso estudo de casos.
Contudo, isto é assunto ainda para o futuro, na construção da tese de doutorado. No momento, iremos nos centrar no programa Peri, que como dito acima, é nosso principal estudo de caso, por reunir, aquilo que acreditamos ser, o que se alinha ao papel da comunicação o pública, ou seja, corroboramos com o que diz o teórico Martin Barbero: “ a televisão pública acaba sendo, hoje, um decisivo lugar de inscrição de novas cidadanias, onde a emancipação social e cultural adquire uma face contemporânea”. (MARTÍN-BARBERO ,2002, p. 57). Essa emancipação a que se refere Barbero nos remete ao que o pesquisador Eugênio Bucci traz sobre esse assunto, para ele a televisão pública não quer ter público cativo, assim como a televisão comercial, ou seja, ela não quer funciona como cativeiro, mas como como emancipadora. Seu sentido é tornar o sujeito suficientemente autônomo para, no limite, poder prescindir da televisão. Ela não teme a emancipação e por isso pode se diferenciar. Ela se realiza tal como o professor diante do aluno que alça voo próprio. A televisão pública é uma instituição que precisa produzir gente emancipada, liberta, crítica. O negócio da televisão pública não é entretenimento e, indo mais longe, não é sequer televisão: é cultura, é informação, é liberdade. Para a televisão comercial, o meio é um fim em si. Para a pública, o meio é uma possibilidade em aberto.
Ao pensar sobre essa emancipação proposta por ambos pesquisadores, constatamos de como é grande a potência que aqueles que fazem a televisão pública têm nas mãos. Uma televisão que pode e deve sempre trabalhar essa polifonia cultural, pautada pela democracia, elegendo elementos como a representatividade, a diversidade, a pluralidade de vozes que ecoam das cidades, dos estados e do país. E foi nessa perspectiva que a TVU da UFRN produziu o programa Peri, que tem formato de documentário, não tem apresentador e mostra a periferia em suas manifestações socioculturais e artísticas. Em sua primeira temporada foram exibidos oito episódios temáticos, são eles: Resistência, Batalha, Alegria, Movimento, Som, Corpo, Sabor e Cor. O sujeito da narrativa é a personagem da periferia, que vivencia suas ações na cultura, na arte, nos ambientes e ações sociais. Não há interlocutor, quem apresenta a periferia são os próprios agentes periféricos. Não há outra voz, além das vindas das quatros regiões da cidade, de quem produz ações socioculturais e artísticas dentro de sua comunidade. Para o teórico Canclini
homens e mulheres percebem que muitas das perguntas próprias dos cidadãos – a que lugar pertenço e que direitos isso me dá, como posso me informar, quem representa meus interesses- recebem sua resposta mais através do consumo privado de bens e dos meios de comunicação de massa do que pelas regras abstratas da democracia ou pela participação coletiva em espaços públicos.(Canclini,2006: p.29)
Não há no programa o exercício Narcísico de que fala Bourdieu, quando diz que a tela de televisão se tornou hoje uma espécie de espelho de Narciso, um lugar de exibição narcísica. Não há no programa qualquer associação a uma figura, a uma persona, pensar em Peri, é pensar na periferia, é ver a periferia, é localizar a periferia pelo viés e olhar da arte e da cultura, é a comunicação pública possibilitando que essas pessoas exercitem a cidadania. O teórico Bourdieu nos diz que um programa de televisão pode ser comparado como um poderoso instrumento de democracia direta, algo ausente da programação televisiva dos canais tradicionais.
E por falar em democracia, lembramos que ela anda tão desprestigiada, podemos dizer que relegada na atual conjuntura política que o país vem vivenciando, desde os idos do golpe em processo, desde que ela entrou em vertigem e continuamos a ver o Brasil, literalmente, descendo a ladeira. Martín Barbero nos diz que se democrática é uma sociedade na qual desaparecem as antigas distinções de castas, categorias e classes, e na qual qualquer ofício ou dignidade é acessível a todos, uma sociedade assim não pode não relegar a liberdade dos cidadãos e a independência individual a um plano secundário: o primeiro ocupará sempre a vontade das maiorias. E desse modo o que vem a ter verdadeira importância não é aquele em que há razão e virtude, mas aquele que é querido pela maioria, isto é: o que se impõe unicamente pela quantidade de pessoas. Dessa maneira o que constitui o princípio moderno do poder legítimo acabará legitimando a maior das tiranias. “Estamos diante de uma sociedade composta por uma enorme massa de pessoas semelhantes e iguais, que incansavelmente giram sobre si mesmas com o objetivo de poder dar-se os pequenos prazeres vulgares com que satisfazem suas almas”. (BARBERO, 1997; p.45)
Mais adiante, o teórico nos lembra que a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Soviética, o surgimento e avanço do fascismo, tudo vem corroborar na direita liberal ou conservadora sua sensação de desastre definitivo e exacerbar o pessimismo cultural. (ibidem, p.52) É lamentável que estejamos vendo e vivenciando tal assertiva pontuada pelo teórico. Não por acaso, o programa Peri, produzido em 2018, tenta quebrar as castas que se acham representadas pelo “dirigente” do país e ressurgem das tumbas cercadas e lacradas com as chaves e cadeados do preconceito, de raça, gênero, de ações de violência, do racismo estrutural. É na contramão de toda essa celeuma que a comunicação pública, a televisão pública e não governamental, deve se colocar, e dentre outras ações, aquela que podem ser aliadas às expressões socioculturais e artística, que
“no fundo, ao separar-se da vida, o que se passa com a arte é que se encontra consigo mesma: a poesia se faz pura metáfora e a pintura pura forma e cor. Ante a ameaça que vem da barbárie vertical, ante a ameaça que atormenta por dentro, a cultura redescobre suas essências.” (MARTIN BARBERO, 1997: p. 55)
Teresa Otondo, autora da tese que culminou no livro Televisão Pública, para quem e para quê? em uma entrevista realizada em 2015, para a Tv Brasil, sobre como fazer com que a produção audiovisual do continente chegue ao público, nos diz que para ela, a televisão pública, aquela que é independente do governo, que tem autonomia, é fundamental para democratização do pensamento cívico democrático da América Latina, para evitar o fenômeno do discurso único e esse discurso único não democrático. Ela pontua que quanto mais vozes puderem se expressar, quanto mais acesso aos meios a população, a comunidade, os indivíduos tiverem , mais forte o senso cívico, o senso de pertencimento e a ação coletiva no sentido da democratização. A televisão pública é importante para exercer esse papel de identidade e de pertencimento. É uma questão de apresentar oportunidade às diversas vozes que compõem a nossa nacionalidade para se expressar. Todo trabalho que se faça em favor da diversidade e da pluralidade no Brasil e na América é bem vindo, desde que não seja uma campanha dirigida ideologicamente, mas pensada democraticamente. Quando não se mexe na estrutura não se valoriza a pluralidade, a diversidade, essenciais do pensamento democrático . Independência é fundamental para representar a voz da maioria e principalmente das minorias. Diria que a TV Brasil é um progresso, mas dentro da mesma estrutura, a estrutura não foi mudada. Ainda é uma televisão gerida de cima para baixo, disse Otondo.
A GENTE SE VÊ NA TV?
Antes de continuar a falar da tv pública, faremos uma pausa para citar Lélia Gonzalez, em seu ensaio Alô, alô, velho guerreiro! aquele abraço. No texto ela menciona que Chacrinha coloca os pingos nos ís e denuncia a existência concreta da discriminação no Brasil, especificamente no campo profissional. Ele declarou que seus programas de auditório sofriam fortes restrições: proibia-se que as câmeras focalizassem diretamente o auditório, para que os negros não fossem mostrados. Os negros só podiam ser focalizados de passagem ou de costas. O apresentador continuou denunciando o absurdo e dizia: “Eu sou negro, nós todos somos negros e até essas louras ou morena que vemos por aí também são negras.” (GONZALES: 2020, p.179)
E esse tipo de comportamento ainda segue com o racismo velado, estrutural. O teórico Martín Barbero afirma que a televisão, especialmente, é um lugar de visibilidade de mitos compartilhados, no sentido mais profundamente antropológico da palavra, ou seja, “dos mitos que nos dão medo ou que nos tiram o medo, dos mitos que nos unem, dos mitos que nos protegem, dos mitos que nos salvam, dos mitos que dão sentido à pobre vida da maioria de nós…” (MARTÍN-BARBERO, 1995, p. 78). Fiquemos com os mitos que nos salvam, que nos unem, que nos representam, que nos vinculam, que estejam imbricados naquilo que a pesquisadora Ivonete Lopes chama de televisão pública de proximidade, aquela que é pensada com o vínculo local, não apenas porque produz e veicula conteúdos sobre uma determinada localidade,mas, especialmente, porque está aberta à participação social, assim como a estimula. “ Nela, a participação é uma política institucional com potencialidade de estreitar o relacionamento entre emissora e sociedade e, dessa forma, possibilitar que a comunidade reconheça o projeto de comunicação de proximidade como sendo seu.” (LOPES, 2015:p.88)
Quando a pesquisadora acrescenta que a televisão reconhece o cidadão de sua localidade como importantes e fundamentais em sua programação, ressaltamos que o programa Peri, em que a periferia é mostrada pelo viés da arte e da cultura, comumente não acontece nas emissoras comerciais que em via de regra mostram aspectos negativos dessas comunidades, foi recebido de maneira bastante positiva pela comunidade representada. Quando o programa foi ao ar, a equipe recebeu feedbacks por parte dos telespectadores pela representatividade. Dentre tantos, citamos o Senhor Francisco de Lima, morador da periferia, que não hesitou em falar para a equipe do programa que “ è preciso ter mais programas assim, a periferia quer se ver na tv dessa forma.” Tal comportamento nos remete mais uma vez ao conceito de televisão pública de proximidade citada por Ivonete Lopes, “que foca a sua práxis no fortalecimento do vínculo social, articulando o indivíduo à comunidade, ao local e ao nacional. (ibidem, p.88)
O teórico Canclini (2006,p.57) nos diz que o crescimento do poder simbólico da televisão obriga o resto do campo das produções buscar o sensacional, o espetacular, o superficial, onde a lógica comercial impõe seu peso à televisão. Nossa pesquisa traz justo um produto que vai na contramão dessa hegemonia, extraindo da periferia não a espetacularização da violência, mas o que ela nos traz no campo da arte e da cultura.
Cada episódio do programa tem cerca de 5 personagens centrais e outros secundários. Do episódio resistência destacamos Allaya, mulher trans e professora de balé. No episódio Som, destacamos Leozinho do BA, jovem negro, cantor e compositor de funk, neto de João do Vale, que diz que vai reverter o diploma de jornalista em prol da periferia e por fim, do episódio Cor, o artista plástico Marcelus Bob, que frisa ser a periferia o lugar das grandes revoluções. Muitas foram as personagens que fizeram parte da produção dos oito episódios do programa, e em sua maioria, mulheres negras, que expuseram suas angústias de como se reconhecerem negras e que se viram representadas neste programa, que dão a elas o lugar de fala.
As vivências que Leozinho do BA e outras personagens narradas no programa, nos remete ao que Lélia Gonzalez questiona: “Por que será que o racismo brasileiro tem vergonha de si mesmo? Por que será que se tem “o preconceito de não ter preconceito” e ao mesmo tempo se acha natural que o lugar do negro seja nas favelas, cortiços e alagados? (GONZALES:2020, p. 78)
Para a pesquisadora Oyèrónke Oyewùmi, gênero é antes de tudo, uma construção sociocultural e pra Ochy Curiel, o feminismo decolonial, retomando boa parte dos postulados do giro decolonial e dos feminismo críticos, nos oferece uma nova perspectiva de análise para entendermos de forma mais complexa as relações e entrelaçamento de raça, sexo, sexualidade, classe e geopolítica , e se assim fosse compreendido e assimilado, já teríamos aniquilamentos, apagamentos , extermínios evitados, ou ao menos diminuídos.
Para o teórico Martín Barbero a existência de meios públicos justifica-se pela necessidade de possibilitar alternativas de comunicação, que dêem entrada a todas aquelas exigências culturais que não cabem nos parâmetros do mercado, sejam elas provenientes das maiorias ou das minorias. A televisão pública acaba sendo, hoje, um decisivo lugar de inscrição de novas cidadanias, onde a emancipação social e cultural adquire uma face contemporânea.
Conforme Martín-Barbero (2005, p. 58), os processos de exclusão que marcaram o desenvolvimento dos Estados-nação na América Latina têm, na cultura, um dos seus âmbitos mais profundos. Fora da nação ficaram os indígenas, os negros, as mulheres, todos aqueles cuja diferença dificultava e corroía a construção de um sujeito nacional homogêneo. Em virtude das características apontadas, a televisão pública é vista como potencial para compensar o déficit de cidadania e de acolhimento da diversidade cultural que os Estados têm com suas referidas sociedades, especialmente com os mais pobres e com os grupos minoritários.
No artigo de Bruna Andrade, O impeachment da televisão pública, a pesquisadora traz algumas reflexões em torno do pensamento de Martin Barbero ao dizer que a televisão é atualmente um importante instrumento na geração de conversa social. No entanto, quando não está voltada para o interesse público, ela suplanta a participação cidadã e passa a ser o lugar em que o espetáculo maquia o debate político, até dissolvê-lo. Segundo ela, citando Rincón, organizador do livro Televisão pública, do consumidor ao cidadão é nesse cenário, onde a esfera pública eletrônica privatizada não atende aos interesses e às demandas da cidadania e do debate público, uma outra televisão se destaca como alternativa: a televisão pública, definida por Rincón (2002, p. 28) como aquela que “privilegia o caráter público desse meio para superar a sua visão comercial e ganhar sua densidade como cidadã; a que nos relata como nos tornamos coletivo social”.
E dentro desse coletivo social que menciona Rincón e que tem a diversidade como mola propulsora, acreditamos ser a televisão pública, a comunicação pública essa norteadora capaz de estabelecer parâmetros inclusivos, abrindo espaço para que as vozes silenciadas, excluídas , as que vivem à margem da sociedade, possam exercer o seu direito de cidadã, e possam sim, se ver na tv, não dentro de pautas que denigrem sua imagem, que associam seus espaços, territórios e corpos a tudo aquilo que causa recusa e medo, e sim ao belo, ao que movimenta-se positivamente dentro do social em suas mais variadas expressões; seja na arte, na cultura, ou qualquer outra ação dentro da sociedade. Aqui, fazemos um adendo para incluir o parágrafo nono do Projeto de Lei que estabelece conceito e diretrizes da Comunicação Pública, dispõe sobre a organização dos Serviços de Comunicação Pública nos poderes das esferas federal, estadual, distrital e municipal, nos órgãos autônomos, empresas públicas e entidades conveniadas, que é o de respeitar a pluralidade, garantindo a representatividade de todos os seguimentos da sociedade.
Essa pluralidade e representatividade que atendem a todos os seguimentos sociais que vem a ser um das prerrogativas da televisão pública, têm de certa forma um caráter decisivo naquilo que as tvs comerciais, embora sejam uma concessão pública, não tem como compromisso. Quando anteriormente mencionamos que o programa Peri da TVURN coloca a periferia dentro de outro patamar que não o do estigma na violência, lembramos de um ponto abordado pelo teórico Raymond Williams que é o termo “violência na televisão”. Ele cita que algumas pesquisas sustentam que observar a violência no meio de comunicação de massa pode ser um fator que, embora não determinante, contribui para um subsequente comportamento agressivo. “Uma visão minoritária é bem diferente: o efeito de observar violência na televisão é catártico. Uma visão ainda mais minoritária enfatiza a possibilidade de efeitos tanto estimuladores como catártico.” (WILLIAMS: 2016,p.132.)
Trouxemos tal assertiva para mostrar o quão diferenciado pode ser a programação da televisão pública que em via de regra, não estabelece vínculo com a audiência e nem com o lucro, e sim , com o exercício de cidadania, além de representar a sociedade daquilo que seja construtivo. Quem quer ver sua imagem vinculada a violência? Se, da mesma forma, gentileza gera gentileza, o sentimento contrário também, além de ter efeito estimulador e catártico. Embora nossa pesquisa se paute por uma via contrária ao da violência e ações congêneres, não deixaremos de observar esse tipo prática que infelizmente existe em emissoras de televisão, mas que não deve existir naquela que tem uma denominação e natureza pública. Quando perguntamos no título que parafraseia um slogan de uma tv comercial: a gente se ver na tv? A indagação carrega consigo o desejo de responder de como as pessoas em todos os segmentos da sociedade gostariam de serem vistos na tv, principalmente aquelas que fazem parte de um grupo minoritário. Quando Raymond Williams (2016, p.133) indaga: “ A violência é uma violação ao processo de socialização?” temos a resposta de que dependeria de um conjunto preciso de distinções dentro de um determinado sistema social. Mas não podemos esquecer “ o que normalmente se pergunta sobre a televisão é a influência que ela exerce em comparação com outras influências. Todas essas influências – a televisão, o lar, a escola, a imprensa, o trabalho – são tomadas separadamente, ainda que se admita a interação entre elas.” (Ibidem, p.135)
Quando o pesquisador Felipe Muanis (2020, p. 51) pontua que a televisão é um meio em que, mais importante do que o que ela veicula, é o que se fala dela e de sua programação. Lembramos dos comentários que surgiram durante a veiculação do programa Peri na tela a TV Universitária da UFRN, a TVURN. Comentários não apenas do espectador citado acima, o Sr Francisco, mas tivemos muitos outros , que iremos destacar. Um jovem chamado Wallacy, que já foi estagiário da TVURN estava em um local público em que o aparelho de televisão estava sintonizado no canal da TVU ,no momento em que estava sendo veiculado o programa em pauta. Ele nos relatou que ficou vendo e ao constatar que se tratava da TVU, ficou surpreso da produção ser nossa, uma vez que o formato rompia com os padrões e que levava esse grupo minoritários para o papel de protagonista, além de trazer uma excelente qualidade.
Para Muanis (ibidem, p. 56) o quesito qualidade é bastante complexo, segundo ele há dois parâmetros a designar, ou seja, o que ele chama de dois tipos de capital simbólicos da televisão . Um que é interno a ela, que estabelece uma diferenciação da programação, ou seja, uma diferença qualitativa entre os programas, de acordo critérios a se definir . Ao mesmo tempo existe uma discussão externa, em que a televisão como meio é vista de forma diferenciada em relação a outras mídias. Mais adiante, o pesquisador nos diz que como formulação teórica, a televisão de qualidade evidencia um pressuposto fundado em um juízo de valor, altamente prejudicial e que compromete tanto a pesquisa quanto a análise e a crítica.
Essa discussão sobre qualidade foi trazida pelo fato de que há discurso em torno de que a televisão pública não tem qualidade, que a sua audiência tem um traço e que por isso deve ser privatizada, para assim, cair nas malhas do lucro que incita tantas vezes a tão combatida violência que gera violência . O programa que é nosso principal estudo de caso, dialoga com outros gêneros como o documentário e o videoclipe, tem uma dinamicidade na linguagem que difere do que comumente se ver na programação local de tv pública, linguagem essa que poderia ser denominada de pós- moderna, afinal
“ a televisão é pós-moderna por natureza, a tudo agregando: gêneros, linguagens, imagens, tecnologias e discurso.[….] Se uma das definições de TV de qualidade envolve os valores da modernidade, conforme exemplificou Thompson, e se fosse possível definir um só leitor como o leitor modelo da televisão, ele provavelmente não seria moderno, mas sim, pós-moderno. Assim qualidade não estaria presente em um produto que se limitaria ao leitor moderno, formador de opinião, urbano, jovem, pelo simples motivo que a televisão não se restringe a esse público. [….] Talvez seja válido refletir sobre o conceito de uma televisão de qualidade poder ser variável de lugar para lugar: de público, de estilo, de qualidade na forma e no texto. Poderia, por exemplo, somar-se a esses aspectos a ética, a igualdade e a regionalização, bem como o potencial educativo, de acordo com as demandas e as expectativas locais ou não.” (Muanis, 2020:p.57)
Há de se quebrar com esse estereótipo de que tv pública não tem qualidade, que não funciona, que não tem audiência. Tais discursos , que infelizmente são repetidos por quem está em posição de comando, encontram ressonância na sociedade que muitas vezes nem conhece ou tem propriedade do assunto. a comunicação pública essa norteadora capaz de estabelecer parâmetros inclusivos, abrindo espaço para que as vozes silenciadas, excluídas , as que vivem à margem da sociedade, possam exercer o seu direito de cidadã, e possam sim, se ver na tv, não dentro de pautas que denigrem sua imagem, que associam seus espaços, territórios e corpos a tudo aquilo que causa recusa e medo, que se possa sair do eixo e fortalecer as riquezas culturais dos quatro cantos do país e não relegá-la ao fracasso de uma tv que não tem qualidade. Corroboramos com o pensamento de Muanis ( Ibidem, p.59) ao dizer que “ter acesso aos conteúdos regionais , em diversos lugares do país, resultaria em uma maior consciência da diversidade cultural brasileira e romperia com os discursos e as estéticas hegemônicas que desde o início da televisão, em 1950 dominam o país.”
DE VOLTA AO COMEÇO, SERÁ O PRINCÍPIO DO FIM?
Para concluir, lembramos que no início falamos na possibilidade de ter cogitado o fim do mundo, o fim da espécie, diante do cenário aterrorizante em que vivemos nos anos de 2020 , 2021 e ainda 2022, uma destruição não apenas advinda do vírus em si, mas de um vírus ainda mais letal que agrega tanto obscurantismo, dentre eles, o da desordem política que em muitas ocasiões, promoveu o desrespeito às leis, a Constituição Federal, crimes de responsabilidade sendo cometidos por quem “representa” o país. Diante de tudo, quisera estar cantarolando a canção de Morais Moreira no sentido que o poeta compôs, um Brasil que desce a ladeira sambando, portanto, feliz.
Assim como o ano de 1945 foi o ano zero em Hiroshima, 2020 foi o ano zero da pandemia, mas para nós, 2016 dava os primeiros passos do desencanto; e em se falando de TV Pública, o governo Temer dá os primeiros toques da trombeta apocalíptica. O rumo das políticas públicas dá o alerta, e movimentos como: Eu quero a cultura viva, Fica EBC, demonstram a ameaça que a comunicação pública sofreria. A jornalista Tereza Cruvinel declarou em 2016: “Não se pode mais chamar a TV Brasil de TV pública. É triste, mas é a verdade. Com a extinção do Conselho Curador, do mandato do presidente da EBC e o fim das garantias de independência, será uma TV governamental”. Mal sabia ela que a ladeira estava molhada e que logo ali, a necropolítica nos aguardava. É como pontuou a pesquisadora Teresa Otondo ao dizer que a TV Brasil embora fosse um progresso, está dentro da mesma estrutura, a estrutura não foi mudada. E é por manter-se na mesma estrutura, sem regulamentação que proteja a tv pública das artimanhas políticas, para que ela não seja uma tv governamental, que estamos na atual situação. Situação tal que muda para pior e desabilita a palavra avanço usada por Otondo quando se referiu a TV Brasil. Hoje , infelizmente, o substantivo adequado seria seu antônimo, ou seja, retrocesso.
O pesquisador Lucas Murari, em sua tese Estética do não humano: natureza e cinema experimental, pergunta: o que fazer diante do fim que se aproxima? ele diz que pode ser o começo de outro. E adiante ele cita Adorno: “uma das lições que a era hitlerista nos ensinou é a de como é estúpido ser inteligente. A inteligência europeia negava evidências óbvias da ascensão nazista e fascista. Qualquer semelhança, não é coincidência.
Talvez a arte nos salve, talvez Kopenawa reveja a profecia cosmoecológica sobre as mortes dos xamãs e o fim da humanidade, e o céu desista de cair. Contudo, Krenak (2005, p.57) nos deixa uma possível saída: “Somente o reconhecimento da diversidade e a recusa da ideia do humano como superior aos demais seres, podem ressignificar nossas existências e refrear nossa marcha insensata em direção ao abismo.”
A essa ideia de fim do mundo, em que Krenak nos indica uma saída quando alerta para aqueles que se acham superiores , a raça escolhida, nos remete ao cenário político social da atualidade que visivelmente rompe com a democracia, com a igualdade entre os povos, com o direito à liberdade de expressão, neste momento, citamos o Guia da comunicação pública, lançado durante o I Congresso de Comunicação Pública, que pontua a importância e relevância que a comunicação pública ganhou no momento da redemocratização do Brasil, que se tornou um marco histórico que foi a primeira eleição direta que aconteceu no século passado, no final da década de 80, no ano de 1989, marcando assim, o fim da ditadura militar, e esse impulsionamento ocasionado pelo renascimento da democracia procurou ampliar a responsabilidade dos governos de fazer a comunicação pública para os cidadãos.
E em 2007 nasce a TV Brasil que integra a Empresa Brasileira de Comunicação, EBC, que modifica a estrutura da comunicação pública, e que “pode ser caracterizado como uma tentativa de articular o “o velho” modelo de televisão pública, representado pelas TVs Educativas , com o “novo”, por meio da TV Brasil ( LOPES: 2015,p.13) Esse velho que carrega os ranços do período da ditadura militar, em que as tvs educativas surgiram, como é o caso da tv que é um de nossos objeto de pesquisa, a TVU da UFRN. Além desse período, a pesquisadora Ivonete Lopes cita o período do privatismo, quando as concessões educativas foram massivamente distribuídas às fundações sem fins lucrativos, entre grupos políticos, religiosos e empresariais como barganha para garantir interesses políticos eleitoreiros. E esse “novo” tenta ser construído em associação com o que estava estabelecido, sem rupturas.” (ibidem, p.13)
A criação da EBC não significou a reforma do setor para adequação da legislação às transformações sociais, culturais e tecnológicas, permanece o que foi instituído em 1962, no Código Brasileiro de Telecomunicações, que é a principal lei que rege a radiodifusão. Corroboramos com as palavras do pesquisador Eugênio Bucci, quando disse que a independência das emissoras públicas deveria estar inscrita em lei, o que só seria viável a partir de um pacto democrático no interior das casas legislativas. E essa falta de revisão na lei, na regulamentação, citada acima, abre brechas para que o governo antidemocrático que está posto, haja com desmandos, censuras, retrocedendo aos anos de chumbo, entre as décadas de 60 e 80 em que os canais eram utilizados para o proselitismo, totalmente avesso à construção de uma sociedade democrática, marcando os canais públicos de maneira negativa e gerando distanciamento da prática de relevância social, de caráter inclusivo, de promover a cidadania.
E quando pensávamos que estaríamos galgando um novo patamar, vem o golpe em curso, que mencionamos anteriormente, e que segue alargando os abismos e acentuando o retrocesso, indo na contramão do papel da comunicação pública que é o de dar acesso, agir com transparência, dar informação, estimular a participação social das pessoas naquilo que lhes diz respeito. Como é atual a fala de Krenak (2015, p. 72) quando nos diz que estamos hoje vivendo o desastre do nosso tempo, ao qual algumas seletas pessoas chamam Antropoceno. A grande maioria está chamando de caos social, desgoverno geral, perda de qualidade no cotidiano, nas relações, e estamos todos jogados nesse abismo. Que ressoem as palavras de Martín Barbero (2020, p.25) nesse final de conversa: “Compreender a televisão significa nos compreendermos como sociedade, nos olharmos como cidadãos, nos pensarmos como público”.
Referências bibliográfica
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