Coluna escrita por nosso colaborador Marco Antônio Bonatelli.
Marco é bacharel em Audiovisual pela UFMS e mestrando em Cinema e Audiovisual pela UFF.
Do final de maio ao início de junho, o Centro de Artes da Universidade Federal Fluminense, em Niterói, e o Centro Cultural da Justiça Federal, no Rio de Janeiro, sediaram a primeira edição da mostra Pesadelo na Tela: horror e medo no cinema latino-americano contemporâneo, com curadoria de Laura Cánepa (Universidade Anhembi-Morumbi – UAM) e Fabián Núñez (Universidade Federal Fluminense – UFF). No recorte proposto pelos pesquisadores, tivemos obras produzidas no subcontinente que dá nome ao evento durante as duas primeiras décadas do século XXI, tomando as estéticas, poéticas, narrativas e signos oriundos do horror e do suspense como base. Eu acompanhei toda a programação que entrou em cartaz na cidade de Niterói, assisti aos debates com convidados e compareci à abertura no Rio de Janeiro, na qual fora exibido o longa-metragem Mate-me, Por Favor (2015), de Anita Rocha da Silveira. Deixo frisado aqui que este texto reflete tão somente as minhas impressões quanto às obras exibidas no Centro de Artes da UFF, por ter conseguido acompanhar apenas as sessões exibidas nessa praça (a programação do Rio de Janeiro contou com outros filmes e fora mais extensa, porém aconteceu quase sempre no mesmo horário da de Niterói).
Reitero também que é de enorme importância ver esses espaços voltados para a divulgação e celebração da arte preenchidos por obras de gênero, sejam filmes, livros, peças de teatro, pinturas, fotografias etc., pois muitas das vezes são elas as formas de expressão capazes de nos fazer encarar a nossa humanidade o mais de frente possível, através do uso de suas estruturas e princípios estético-narrativos. Isso está em John Ford e seus faroestes, mas também em qualquer filhote de cruz-credo com coisa-ruim idealizado por uma mente que buscou na epistemologia do macabro a sua maior aliada. O horror e o suspense nunca saem de moda dentro de seu nicho e, vez e outra, estouram para arrebatarem o cinema como um todo – por evocarem os nossos desejos, anseios, medos e preconceitos mais sórdidos, nos colocando em posições que gostaríamos de estar, mas que nunca aceitaríamos admitir em outros espaços. Esta cobertura busca, desse modo, levantar minhas impressões mais gerais e pessoais, em uma crítica ao projeto.
Um elogio a duas sessões
Sob a Pele + A Região Selvagem,
No quinto dia da mostra em Niterói foram exibidos dois filmes. O primeiro pertence à dupla de diretores Daniel Bandeira e Pedro Sotero, e o segundo ao realizador mexicano Amat Escalante. Sob a Pele (2013) e A Região Selvagem (La Region Salvaje, 2016) são pautados por um tema comum bastante intenso e que faz da experiência de assisti-los em dobradinha bastante recomendável. Para além da questão do feminino trazida nos debates e que, de fato, está muito presente em ambos os casos, para mim o que mais une as obras é como a obsessão domina seus personagens e pode significar tanto liberdade quanto aprisionamento do ponto de vista discursivo.
Em Sob a Pele, acompanhamos dois indivíduos que não recebem um desenvolvimento no sentido mais arquetípico da coisa. Esse casal composto por um homem e uma mulher parece preso no espaço de um apartamento durante o filme todo (há algumas poucas cenas nas escadas e na portaria do prédio). Ao que tudo indica, nosso protagonista é esse camarada que, depois de acordar em uma casa que não parece ser a dele e transar com uma mulher que aparentemente conhecera há pouco tempo, sai desesperado daquele local (ver as tatuagens satânicas nas costas dela ganharem vida não ajuda, creio). Ele, contudo, dá de cara com o portão trancado. Ao voltar para o apartamento, abandona essa ideia e se entrega à sua parceira mais uma vez. Aquele é o desejo levado às últimas consequências, em que o sexo parece ser o único imperativo. Por sua vez, a mulher, introspectiva, mas não menos potente, se coloca na posição do que poderíamos entender como o “monstro” da vez. Pelo menos nesse primeiro momento.
Se acompanhamos ele acordar e ir e voltar do apartamento, ela permanece naquele espaço a todo tempo, sendo percebida como a antagonista mais palpável, mais direta da situação. Além das tatuagens satânicas nas costas, a mulher perde o cabelo no que também parece ser algum rito sobrenatural e se porta de uma forma um tanto estranha, sempre parecendo esconder algo. É ela quem nos traz o sentimento-chave do horror. E, nesse sentido, o curta brinca com uma ideia que está no gênero há anos: um ambiente-reflexo da mente de um de seus personagens. Quando resolve dar cabo da coisa, porém, vai para além da questão simplista de monstrificação do ‘Outro dialético’. Os diretores abraçam o tom objetivo e metafísico do ato carnal, talvez por acreditar que esses elementos se encontrem num mesmo território de afeto. No final, os dois personagens se fundem ao se deitarem juntos mais uma vez, e ele se torna uma espécie de presença ao ser absorvido pelo corpo da mulher, habitando-a de dentro. Um único olho nas costas dela nos lembra de sua existência. O julgamento moral, contudo, é deixado de lado. Se constata a relação contemporânea de obsessão, ou ainda uma forma deprimida de relação no século XXI. E isso já dá pano para muita coisa.

Sob a Pele (2013), de Daniel Bandeira e Pedro Sotero
No caso de A Região Selvagem, obsessão e desejo surgem na forma com que os personagens buscam escapar a todo custo das expectativas de uma sociedade que impõe valores sobre eles. Valores esses que parecem inabaláveis a não ser através do prazer carnal, surgindo como uma espécie de horizonte possibilitador. Na trama, um alienígena com habilidades afrodisíacas (ele tem muitos tentáculos), cai na Terra e passa a ser estudado por um cientista em sua fazenda isolada. Porém, para se manter vivo, a criatura precisa manter uma relação sexual constante com algum outro ser e, por mais que haja a sugestão de que animais também sirvam, fica estabelecido que existe a predileção por humanos. O monstro, contudo, precisa trocar de ‘parceiro’ de tempos em tempos e, depois de se cansar de determinada pessoa, ou mesmo se não gostar de algum coitado que decidam levar para ele, se torna capaz de machucar e matar o indivíduo. Nossa protagonista é uma jovem mulher que leva uma vida terrível em uma cidade mexicana. Seu marido mantém relações sexuais com o cunhado e ela é empregada pela sogra, uma mulher poderosa da cidade. Mãe de dois filhos, torna-se difícil pensar em qualquer ideia de fuga sem o elemento fantástico em que essa história se pauta. Assim, em dado momento, ela acaba entrando em contato com o bicho, e a ideia de libertação através da criatura se torna mais palpável.
Muitas pessoas morrem nessa jornada e a narrativa se desenvolve no que poderíamos chamar de novelão (sem juízo de valor), em que a cada nova interação entre os personagens, geralmente bastante direta e sem muitas firulas de complexidade, uma nova questão de sentimentos intensos e irrefreáveis entra em cena. O marido é preso, acusado de tentativa de assassinato e solto pela influência de sua família, que não deixa de mandá-lo embora da cidade por vergonha de descobrir sua orientação sexual. No entanto, ele, que como eu disse transa com o cunhado e, o que eu não disse, paga de homofóbico para o resto da sociedade, depois de descoberto, tem um momento bastante singelo e bonito com o pai. Desse modo, mesmo que não possuam múltiplas camadas e profundas rusgas do passado com as quais tenham que lidar, os personagens são movidos por ações que passam verdade. A cada nova descoberta e virada mirabolante, o filme nos situa nessa poética do prazer contemporâneo. Mais uma vez, essa é uma maneira de se pensar as relações de poder e suas múltiplas instâncias na atualidade. Temos ainda Lovecraft como pano de fundo e alguns momentos cômicos sensacionais. Recomendo muito.

A Região Selvagem (2016), de Amat Escalante
Amor Só de Mãe + Huesera,
Não sei se pelo trocadilho semiótico, mas no sétimo dia de mostra foram exibidas obras que, de forma bastante explícita, trabalham uma iconografia religiosa para discursar sobre o tema da criação e da maternidade (como pontuado pelos debatedores que acompanharam a sessão). A ideia aqui é como a apropriação da cultura judaico-cristã pode ser desenvolvida dentro da chave do horror. Eu tenho um fraco por obras assim (o corpus de minha Iniciação Científica contava com A Inocente Face do Terror, de Robert Mulligan, A Profecia, de Richard Donner, O Bebê de Rosemary, de Roman Polanski, e o todo poderoso O Exorcista, de William Friedkin), e as dessa sessão não decepcionaram. Aqui acompanhamos Amor Só de Mãe (2003), de Dennison Ramalho, e o mais recente Huesera (2022), de Michelle Garza Cervera.
Ramalho, por mais que tenha uma carreira como diretor com poucos filmes, é o nome responsável por Ninjas (2011), horror à brasileira dos mais bem realizados neste século. Em Amor Só de Mãe, sua pegada mais crua e estilizada – e herdada de José Mojica Marins – já surge de forma bastante desenvolvida. Na história, uma presença demoníaca passa a atormentar, possuir e mutilar os corpos e almas de um casal em crise e das pessoas a sua volta depois que uma serpente ‘escapa’ de seu cativeiro. A mulher não quer passar o resto da vida naquela aldeia à beira-mar na qual a narrativa toma lugar, mas seu amante precisa cuidar da mãe idosa e doente, por mais que também esteja longe de sua juventude. O que se desenvolve, daí, é a forma mais pura de se produzir horror sem caminhões de dinheiro: um vulto nas sombras com uma cabeça de bode é o Mal; gel em corpos nus e suados é o signo máximo da possessão; o temporizador da câmera, ao acelerar a filmagem de alguém saindo de quadro, se torna o maior inimigo de nossas estribeiras.
É tudo muito sangrento e lotado das questões do mais grotesco terror. Levando uma cena a outra de maneira lógica e calculada, a eficiência da estrutura é notável também. No fim, por mais que a coisa não chegue na mesma maestria do trabalho mais cultuado do diretor (aqueles policiais assombrados por suas vítimas me dão calafrios até hoje), ainda consegue funcionar muito bem dentro do gênero que o pauta. A própria película é suja e aparece cheia de defeitos para traduzir essa sensação de descompasso moral, em um retrato perverso da música que o inspirou. E o ponto da maternidade, questionado durante o debate como uma questão na qual o diretor talvez tenha se deixado levar por uma ideia reacionária do feminino, me pareceu funcionar bem no ambiente em que a trama se passa. A ideia de família é o principal elemento que causa o horror aqui: criar um filho, como mãe, e o ver se voltar contra você por conta de outra mulher; ser criado maternalmente por alguém e se voltar contra essa outra pessoa de forma homicida pela ‘possessão’ de uma amante. Esses medos são reais e o diretor dá cabo deles em um belo exemplar de filme de gênero independente.

Amor Só de Mãe (2003), de Dennison Ramalho
Por fim, Huesera, de Michelle Garza Cervera, conta a história de uma jovem mulher que, colocada em uma situação em todos a sua volta criam expectativas sobre as quais ela deve se adequar (ser mãe sendo a mais evidente e principal gatilho do horror), passa a ter que fugir de uma presença constante, tanto social quanto paranormal. Eu gostei desse também, mas já tenho minhas questões quanto a ele. A principal é o fato de o filme me perder cada vez mais no decorrer de sua progressão. Menos interessante e único aquele mundo se tornou ao longo da exibição talvez porque muitas das viradas de roteiro são telegrafadas além do ponto, por mais que ainda exista uma boa sacada aqui e ali. Isso acaba afetando não só sequências isoladas, mas também a estrutura geral do projeto, em efeito dominó. Os fãs mais assíduos do gênero e que já presenciaram algumas dúzias de obras com premissas parecidas vão conseguir traçar logo de cara aonde esse filme quer chegar. É muito belo, de fato, como a obra amarra seu início e seu final e como toda a poética até esse momento é construída, em uma rima bastante mckeeniana de beats e imagens próximas de composição, mas diretamente antagônicas em significado. Em dado momento eu torci para que chegasse logo nesse clímax (que eu também não sabia se iria arrebatar) sem a enrolação de seu desenvolvimento.
O marido bondoso que, cada vez mais, passa a desconfiar da esposa até se tornar um antagonista; toda a sequência em que a personagem principal precisa cuidar dos sobrinhos e que só serve para reiterar um elemento do qual nós já tínhamos consciência (essa mulher não tem apoio da família e precisa de ajuda da tia que está na mesma posição que ela dentro do quadro social); e o monstro que, em dado momento, aparece mais do que precisa e se torna banal, perdendo um pouco de seu limiar de estranheza, o que para diversos autores é essencial para o sentimento de horror permanecer vivo. Outras ideias mais arrojadas e que não fossem tão reféns de uma estrutura estadunidense de contar histórias talvez pudessem se encaixar melhor aqui. Nunca saberemos. E, vejam bem, meu problema não é que o filme decide adotar uma forma narrativa dos EUA para si, mas como isso é empregado de maneira derivativa. De todo modo, ainda há, como eu disse, algumas excelentes sacadas no decorrer da rodagem: a ressignificação da persona da Maria bíblica; a profissão da protagonista, que pode ser tanto a de Jesus quanto a de um predador assassino; e um ato de feminilidade destruindo o Mal, no final. É um filme que poderia estar no patamar das grandes produções de gênero de seu país que, como a professora Mariana Baltar bem apontou, possui uma grande gama de diretores históricos produzindo obras com esses preceitos há décadas (para quem se interessar e não conhecer nenhum horror mexicano, recomendo que dê uma olhada na filmografia de El Duque, Carlos Enrique Taboada).

Huesera (2022), de Michelle Garza Cervera
Por que não Zama?
Durante as exibições no cinema e mesmo depois delas, pensando nos filmes enquanto voltava para meu apartamento, um sentimento se manteve estralando em meu peito: eu fiquei profundamente incomodado com as escolhas de representação dos filmes selecionados e com a ordem na qual eles foram exibidos. Foi no terceiro dia (quarto, se contarmos a abertura no Rio de Janeiro) em que Zama (2018), de Lucrecia Martel, ganhou a luz do projetor e a coisa se sedimentou. Para contextualizar, assistimos nas sessões anteriores à O Segredo da Família Urso (2014), de Cíntia Domit Bittar, A Chorona (La Llorona, 2019), de Jayro Bustamante, Aquarius, de Kleber Mendonça Filho (2016) e Estátua! (2014), de Gabriela Amaral Almeida. Esses filmes que deram o tom do evento e sobre os quais a curadoria pareceu se debruçar com maior interesse, por mais que bastante diversos entre si, pertencem a realizadores donos de uma estética bastante sóbria em suas obras (para ficar em uma palavra que retornou em várias vezes durante essas sessões) e que mais tangenciam os conceitos de horror e suspense do que propriamente os assumem de maneira plena.
Desde o início, fora dito que um dos objetivos do projeto era esse: o de pensar para além das questões que habitam o senso comum desses tropos de expressão. Eu gostaria de questionar as implicações que isso traz de maneira ampla. Por si só, não vejo isso como um problema essa questão, mas pensar em teorias do horror e do suspense expandidas – que sejam modos e não gêneros! – não anula a possibilidade de contemplar ideais mais ‘tradicionais’ em sua programação, se é que posso falar nesses termos. Sair do cânone ou tencioná-lo não impede que tenhamos sangue, tripas, gritos e a capacidade de chocar e dizer o que a maioria não quer ouvir, inclusive dentro do território da Universidade. Faltou algo mais visceral nesse primeiro momento de mostra, algo que causasse repulsa, medo, desejo, enfim, algo que me fizesse, enquanto público, viver as tantas relações de afeto que o sentimento do horror e suspense causa: quando bate o gelo na espinha e nossas mãos suam ao assistir a um filme. Algo que surge em realizadores que se colocam no lugar em que esses gêneros, em específico, melhor operam para diversos pesquisadores e com os quais concordo: o limite do aceitável.
As propostas que receberam atenção nesses quatro primeiros encontros fogem a este tipo de olhar arguto sobre o tempo, que desloca as questões morais (o amplo debate sobre o colonialismo, por exemplo, não é a única maneira de pensar o presente) e, justamente por conta disso, se torna contemporâneo por excelência, como defendido pela professora Gabriela Lopes Vasconcellos de Andrade em sua tese de doutorado. Penso que não contemplar essas obras até a metade da mostra se torna problemático a partir do momento em que, por mais que cheguem a aparecer na programação (as dobradinhas Sob a Pele, União Selvagem/Amor Só de Mãe, Huesera funcionaram muito bem comigo, como já trouxe), vêm tarde. Se era pra ser uma mostra sobre o horror e suspense em voga na América Latina no século XXI, essas exibições seguidas no Centro de Artes precisavam ser extrapolações que hasteiam bandeiras de forma tão clara acerca de questões de classe, raça, sexo, etc. sem pensar no que constitui os gêneros no processo?
O horror e o suspense podem ser criticamente complexos e um passatempo de final de semana, e eles são ambas as coisas na mesma medida. Cultura erudita e popular, a união entre poéticas improváveis que se encontram naquelas mesmas questões de classe, raça, sexo etc., mas que a cada novo frame reafirmam que tudo bem ceder aos impulsos mais imediatos e nos perdermos atrás de um lençol, enquanto cobrimos nossos olhos. Seja por medo, asco ou antecipação do inevitável, isso tem que ser legítimo também. Debates que se debruçam sobre questões como a representação da empregada doméstica no cinema latino contemporâneo são relevantes, mas em uma mostra com a temática a que esta se propõe, me parece um tanto fora de lugar o assunto retornar três, quatro vezes em dias diferentes. E, o que para mim há de mais grave, o fazer jus às obras, sejam elas de terror e suspense ou não? Em alguns momentos se tornou insustentável debater os filmes de maneira ampla dentro dos códigos do cinema de gênero, pois essa base pouco definia o que a obra de fato queria ser. Zama acabou como o caso mais evidente. Disseram que era para discutir o conceito de ‘pesadelo’ que dá título ao evento antes de passar o filme de Martel. Mas será mesmo que essa a melhor mostra para isso?
Para contextualizar, Zama narra a história de seu personagem-título, um homem nascido fora da metrópole espanhola, mas com esposa e filhos morando por lá. Ele decide, então, se voluntariar para uma expedição na Argentina com a finalidade de desbravar as novas terras, mas, quando tentar mudar seu posto para perto de sua família, nunca consegue por uma série de empecilhos burocráticas e sem sentido. No final, esses empecilhos nada mais são do que uma maneira de mantê-lo longe do país a que serve por não ser ‘espanhol’. Temos, então, uma situação absurda que só causa frustração a esse indivíduo. Ele se desespera, mas ninguém o ajuda a mudar sua situação. É tudo muito lírico e a resolução bastante bela e intimista. É um filme de época, lento, sóbrio (de novo) e cheio de simbolismos e questões pertinentes à realidade argentina contemporânea. Tem uma fotografia meticulosa e é toda ela rica em diversos aspectos formais. Seus figurinos se adequam à proposta de traduzir um certo tom irônico àquele universo (são trajes de gala sujos, malcuidados e que não parecem pertencer a pessoas com os cargos que acompanhamos). Todas essas questões foram trazidas pelos debatedores ao final da sessão. Certo. Seguimos, portanto, um personagem preso numa espécie de pesadelo do qual não pode escapar, em um mundo que não o quer, por mais que ainda o mantenha existindo por exercer alguma relação de poder para com os indígenas. É um longa-metragem que eu descreveria de muitas formas, mas ‘de gênero’ não é uma delas (a menos que consideremos época como gênero). Ao contrário de Aquarius, que até tem um ou outro ponto de contato com a ideia da mostra no conceito de gótico, esse me pareceu deslocado demais do restante do corpus apresentado.

Zama (2017), de Lucrecia Martel
Estou de acordo com o crítico e curador Gabriel Menotti Gonring no que diz respeito à expressão curadoria autoral, cunhada por ele no ano de 2012 e na qual o princípio curatorial independente é definido como forma de expressão humana, de produção artística também. E, portanto, a escolha dos filmes e a maneira com que eles são exibidos ressignifica as obras, discursa através da exibição, dá ideias gerais sobre o próprio cinema. Eu sei que os professores que desempenharam tal função em Pesadelo estão longe de desprezar uma abordagem mais explícita do horror ou serem donos de um esforço de higienização e elitização desses gêneros, como é o caso de inúmeras tentativas ao longo da história, sendo a mais recente o pós-horror (ver o artigo de 2017 de Steve Rose publicado no The Guardian). Mas então o recorte apresentado no Centro de Artes não fez jus a suas visões e pôde, como efeito, ter causado o resultado oposto ao pretendido. Não havia mesmo como, em um dia entre Aquarius e Zama, encaixar um filme com abordagem diferente dos que estavam sendo exibidos até aquele momento, por mais que isso custasse a exibição de outra obra que estivesse no limiar do que entendemos como horror e suspense? Não dava para, em um esforço amplo, exibir um curta-metragem tal como Arrombada: Vou Mijar na Porra do Seu Túmulo!!! (2007), de Petter Baiestorf, ou o longa Domina Nocturna (2020), de Larissa Anzoategui, e debate-los em espaço público? Penso que tomar uma ação nesse sentido, infelizmente, ainda é a proposta mais transgressiva que podemos pensar para defender a formação de público dentro do universo desses gêneros, e certamente é bem mais do que propor reflexões em termos de produção de conteúdo. Eu questionei os idealizadores da mostra se eles haviam tentado contato com os diretores que cito acima. Recebi a negativa e a possibilidade de que esses filmes possam aparecer num próximo ano de Pesadelo. Mantenho meu protesto até lá.
Há pouco tempo, o crítico José Carlos Merten escreveu em seu blog sobre Mato Seco em Chamas (2022), de Adirley Queirós e Joana Pimenta, “Na vida, exceto se for analista, a gente não visita o médico para conversar. Vai só quando está doente. Estarão os filmes doentes para precisar de tantos doutores?”. A mostra parece responder que sim à provocação. Me incomoda profundamente quando um filme como O Vício (The Addiction, 1995), de Abel Ferrara, passa a ser cultuado como suprassumo do horror a partir da defesa de que ele propõe seus temas através de uma mise-em-scène carregada de filosofia existencial. Por mais que haja muito virtuosismo técnico e intelectual ali, não questiono isso, ninguém é obrigado a saber o que diabos é o conceito de angústia cunhado Søren Kierkegaard para assistir a uma obra de gênero. E reitero isso porque até uma diretora cultuada como Claire Denis, quando produziu a obra Desejo e Obsessão (Trouble Every Day, 2001), manteve essa profusão de camadas, de compreensão e sentimento, numa narrativa de gênero que possui todos os elementos formais e poéticos que a fizeram estar no patamar que ocupa hoje. Eu poderia continuar citando outros nichos. Nomes como o de Jesús Franco têm, em minha visão, cinematografias tão potentes e brilhantes quanto a de Ferrara. O diretor espanhol encontrou no pornô o seu maior aliado na hora de dar sustos e suscitar o medo.
O que quero dizer é que faltaram filmes independentes feitos sem dinheiro, público ou privado, e editados na própria câmera, no ato da filmagem, com o recurso do voltar/continuar gravando por cima da sessão anterior (caso de Baiestorf). Existe todo um radicalismo expresso por esses processos também. Ideais que merecem ser, senão celebrados, trazidos à pauta do debate atual sobre o horror e o suspense, e comentados lado-a-lado com esse outro cinema expandido ou ‘incidental’ que a mostra se propôs a trabalhar. Cinema anárquico e de gênero também é cinema. Aponte suas contradições e o amaldiçoe, mas devemos parar de ignorar essa e outras tendências. O terrir, o trash, o gore, todos merecem um espaço e cabe a nós fazer as escolhas para permitir isso. Enquanto acadêmicos, por que não evocar essas obras em eventos como esse? Por que não tais gêneros e tais cinemas latino-americanos, ainda mais plurais do que os de Pesadelo na Tela?
Um muito obrigado
Essa foi a primeira edição de Pesadelo na Tela apresentada no Centro de Artes da Universidade Federal Fluminense. Me sinto muito feliz por poder cobrir o evento e produzir meu primeiro texto para o Observatório de Cinema e Audiovisual a partir dele. Das vezes em que trabalhei em festivais e cineclubes, ou não havia tempo e energia para produzir textos ou eu não tinha onde publicá-los. Acredito que um bom projeto cultural é aquele que faz digladiar vezes seguidas para chegar num parecer final que seja satisfatório a própria cabeça que o produziu. Nisso, Pesadelo acerta em cheio. Um muito obrigado, então, aos idealizadores, produtores, funcionários do espaço cultural e ao observatório por me possibilitarem isso. O horror e o suspense se tornaram dois de meus gêneros prediletos com o passar dos anos, principalmente pelas pessoas incríveis que com eles trabalham e esbanjam paixão e princípios únicos. É maravilhoso presenciar um crescente desses realizadores conquistando lugares nos debates de cinema contemporâneo com o respeito que merecem.
Que venha a próxima mostra!