Artigo publicado originalmente nos Anais V Desfazendo Gênero em 2021.
Por Julia Dias Alimonda
Ao analisar o mito de Pandora, Mulvey (1996) observa como a curiosidade feminista é impulsionada pelo desejo de conhecer. O gesto de Pandora de abrir a caixa, vem da curiosidade de investigar os enigmas sobre a própria feminilidade que foi temida e reprimida. A personagem do mito tem a coragem de olhar para os demônios do mundo. Contudo, não basta só olhar para o que está na caixa, é preciso descodifica-la, e é isso que a teoria do cinema feminista faz com as imagens, utilizando a curiosidade como um impulso político e criativo. Abrir a caixa de Pandora é um ato de transgressão e enfrentamento feminista motivado não só pelo desejo de ver, mas pela vontade de entender os monstros.
As análises pornográficas se voltam para aquelas representações da baixa cultura que muitas vezes não são consideradas dignas de serem olhadas e muito menos estudadas. Os discursos pornográficos são entendidos como uma visão ruim e suja da sexualidade. Os estudos feministas sobre o tema, não só tem a coragem de olhar os demônios da caixa, como também revelam que a pornografia não é intrinsicamente masculina e violenta, é um gênero que pode abarcar os prazeres das mulheres enquanto produtoras, espectadoras e investigadoras. Como aponta Williams (1999) ignorar que a pornografia também afeta as mulheres reforça a dicotomia entre mulheres boas – aquelas que não sentem prazer ao olhar o sexo – e as más, aquelas que confessam que são mobilizadas pelas imagens. Por tanto, ao analisar a pornografia sob uma ótica feminista devemos refletir sobre as possibilidades de construir prazeres através dessas imagens.
Tradicionalmente, as análises fílmicas utilizam ferramentas investigativas que são úteis aos filmes narrativos, contudo, o desenvolvimento do roteiro não é o mais importante de ser observado nos filmes pornográficos. Para Paasonen (2011) é preciso pensar em outros métodos de pesquisa que privilegiem o engajamento sensorial do espectador com a imagem, afinal, o objetivo dos filmes é afetar o espectador. Essas imagens são tão poderosas que tem a capacidade de nos mover, a intensidade dos materiais pornográficos ressoa em nossa carne, produzindo sensações corporais que destroem nossa ilusão de controle. Além de perguntar o que as imagens pornográficas significam, temos que questionar o que elas produzem em termos de experiência através do ritmo, do movimento e da performance dos corpos.
A capacidade da imagem de afetar o espectador é uma das maiores marcas do gênero, por este motivo, para Souza (2018), devemos entender o afeto como a forma pornográfica. Diferente dos manuais de análise fílmica ou dos métodos científicos que propõem um distanciamento dos objetos de estudo e uma neutralidade, “a pornografia apresenta um caso-limite em que as sensações e o corpo não aparecem como intrusos e entraves ao pensamento, mas são o modo mesmo de pensar. ” (Souza, 2018, p.493). O que mais importa no gênero pornográfico não é a narrativa, e sim a performance sexual e sua capacidade de mobilizar o espectador. Os filmes hardcore, por tanto, consistem de ação sexual na e como narrativa (Williams, 1999).
Este artigo tem como objetivo analisar o filme The Crash Pad (2005), de Shine Louise Houston, utilizando a análise fílmica como metodologia para observar como a diretora constrói uma pornografia dissidente que investe na capacidade que as imagens sexualmente explicitas possuem para mobilizar o espectador, sem rejeitar as convenções pornográficas tradicionais. O filme se insere nos debates pornográficos contemporâneos que pretendem utilizar a linguagem pornográfica para construir novos imaginários sexuais que priorizam os prazeres que foram excluídos das narrativas mainstream. Este foi o primeiro trabalho de Houston, e é hoje considerado um clássico dentro da pornografia queer e feminista. A diretora estadunidense fundou a produtora de filmes pornôs Pink and White Productions e o Pink Label TV, site de streaming de pornografia independente. Normalmente suas produções, muitas delas premiadas em festivais, privilegiam identidades e práticas sexuais que tradicionalmente são excluídas da pornografia mainstream e seus produtos são voltados principalmente ao público queer.
Pornografia ética e feminista: mudando as representações e relações de trabalho
A pornografia é uma categoria da cultura que não pode ser analisada de forma separada das outras esferas midiáticas. A misoginia não é inerente às imagens pornográficas, ela está presente em todas os produtos midiáticos e relações de trabalho porque elas estiveram sobre o rígido controle do patriarcado. O problema não está na pornografia em si, mas na forma como ela é produzida através dos discursos hegemônicos masculinos, que apresentam uma visão única da sexualidade, fantasia e
prazer. Neste artigo, me alinho aos estudos feministas que entendem o gênero pornográfico como um discurso ficcional da sexualidade que pode e deve ser narrado pelas minorias político-visuais. A pornografia é um conceito plural que abarca uma diversidade muito grande de representações, existem muitas formas de se produzir conteúdo adulto. Os grupos dissidentes devem transformar os modos de pensar o gênero porque ele é uma linguagem e pode ter um carácter emancipatório para a
sexualidade. Assim como qualquer produto cultural, as imagens pornográficas são maleáveis e tem o potencial de serem transformadas através da ótica feminista. A tentativa binária de tentar separar a pornografia entre misoginia versus empoderamento não dá conta de explicar a complexidade do campo e acaba limitando esse debate.
As primeiras produções pornográficas dirigidas por mulheres foram feitas por atrizes pornôs. Annie Sprinkle dirigiu e atuou em Deep Inside Annie Sprinkle em 1981. Dois anos depois, a atriz e Candida Royalle, Veronica Hart, Gloria Leonard, Kelly Nichols e Veronica Vera, fundaram o Club 90. A ideia do grupo era ser um espaço de apoio e acolhimento para falar sobre o trabalho sexual, além de ser um grupo de estudos. As performances, que viviam nos sets de filmagem, decidiram fazer seus próprios filmes pornográficos questionando a forma como o erotismo e o prazer feminino era apresentado nas telas. Annie Sprinkle e Candida Royalle são consideradas as primeiras mulheres a dirigir filmes pornográficos. Elas não concordavam com as representações dos filmes que atuavam, mas achavam que as mulheres deveriam ocupar o espaço e produzir novas representações, utilizando o cinema de forma política para construir reflexões sobre o corpo. As trabalhadoras sexuais costumam ser alvo de preocupação nos debates feministas, mas não podem ser vistas como vítimas que precisam ser salvas, elas possuem seus próprios movimentos políticos organizados. É fundamental entender que a proposta de ocupar o espaço pornográfico através de um viés feminista foi sugerida pelas próprias atrizes pornôs.
As pornografias feministas, por tanto, se definem como produções midiáticas que tem como objetivo apresentar outros corpos, práticas sexuais e prazeres que foram excluídos dos discursos hegemônicos. Existem muitas formas de se produzir pornografias feministas, mas elas costumam apresentar mudanças que aparecem explicitamente na tela e que estão fora de quadro, nas relações de trabalho da indústria cinematográfica. Definir quais práticas sexuais são feministas não é tarefa fácil, porque o desejo se constrói através de questões muito subjetivas. Não existe um único jeito certo e feminista de sentir prazer e fazer filmes. Além disso, outra característica das produções que se consideram feministas é a preocupação com a segurança dos trabalhadores sexuais, priorizando o seu conforto e prazer e os atores não costumam ser reduzidos as suas características físicas ou estereótipos corporais fetichizados.
Atualmente, as agentes deste campo têm usado o termo pornografia ética para legitimar seus produtos no mercado do consumo consciente. Os materiais são produzidos pensando que os espectadores querem consumir filmes que respeitem os trabalhadores sexuais. Para isso, é preciso criar uma relação distinta de consumo em que o espectador paga pelo conteúdo que consome. Ultimamente, os produtos midiáticos são encontrados gratuitamente na internet, principalmente pornografia. Contudo, o discurso produzido por estas agentes é que pagar pela pornografia que se consome é uma forma de apoiar estes pequenos estúdios que, diferente das grandes produtoras mainstream, não tem dinheiro para liberar seus filmes de graça. Isto faz com que as suas produções não sejam tão acessíveis ao grande público, apesar de ser uma forma de valorizar e reconhecer o trabalho sexual como trabalho e financiar as artistas cinematográficas. As produtoras se retroalimentam com as assinaturas de seus canais e assim tem financiamento para realizar seus próximos filmes, construindo uma comunidade de fãs e um público que se interessa por questões políticas relacionadas ao audiovisual e à sexualidade.
Para Miller-young (2014), a obra de Houston prioriza visões complexas do desejo, rejeitando a ideia de que as mulheres negras só podem aparecer nas imagens como fantasias oferecidas para o olhar masculino. A diretora reivindica que pessoas negras e queer possuem desejos e podem narralos através do cinema. Miller-young (2014) observa como as análises pornográficas excluem as mulheres racializadas como produtoras de conteúdo e consumidoras. É pouco teorizado como as trabalhadoras sexuais e diretoras negociam sua agência e buscam prazer através de sua subjetividade no campo pornográfico. A teoria pornográfica feminista branca considerou as mulheres negras como sujeitos implícitos dentro da normatização discursiva, ignorando que existem outras organizações de opressão dentro do próprio universo pornográfico. Para Ribeiro (2019), as vozes esquecidas pelo feminismo hegemônico sempre estiveram promovendo disputas narrativas, produzindo rachaduras
nos discursos dominantes. As atrizes pornôs e diretoras negras tem uma postura ativista que rompe com os discursos anti-pornografia e com os feminismos pró-sexo brancos.
Por este motivo, Miller-young (2014) considera que as pornógrafas negras são o que existe de mais interessante dentro do movimento feminista, porque são capazes de revelar, através da criatividade e subjetividade, as relações entre raça, gênero e sistema capitalista. Além disso, elas são uma fonte de ativismo político que transforma as representações das obras e as relações de trabalho da indústria do sexo. Na economia erótica racializada do desejo, essas agentes criam um espaço para
falar de seu prazer, às vezes transgredindo as normas, e em outras vezes, contribuindo com ela. A hipersexualização das mulheres negras é um instrumento disciplinar produto do período colonial, onde a sexualidade e o racismo foram usados para controlar esses corpos. Para a autora, a fetichização das mulheres negras fez com que suas falas sobre o seu próprio prazer não fossem consideradas legitimas, os discursos sobre o desejo foram silenciados como uma forma de proteger da desumanização criada pelo racismo. Contudo, é por isso que para hooks (2019), as mulheres negras precisam criar espaços onde a sexualidade possa ser nomeada porque elas são sujeitas sexuais. É isso que Houston faz em seus filmes, construindo uma linguagem sexual e um espaço para mostrar que pessoas negras também tem fantasias, é um espaço de subversão para falar do desejo.
Pornotopia lésbica
Apesar de ser um longa-metragem, The Crash Pad possui quatro cenas sexuais que funcionam sozinhas, possuem sua própria dinâmica, como se fossem quadros ou esquetes. O que liga todas as quatro tramas é que as performances se passam no mesmo cenário, um apartamento que serve como um ponto de encontro secreto em que lésbicas podem ser livres para realizar as suas fantasias sexuais. Depois que se usa o quarto sete vezes, a pessoa precisa passar a chave do apartamento a diante para que outras possam usufruir desse espaço. Só entendemos que essa é a história e quais são as regras do espaço após 13 minutos de filme, já que ele começa com uma performance sexual, provando que o desenvolvimento narrativo não é o principal na pornografia.
O cenário onde se desenvolvem as cenas sexuais funciona como uma pornotopia, um lugar desvinculado do mundo real onde as fantasias sexuais podem acontecer. Para Abreu (1995), “os números [sexuais] são sequências descritivas dentro de um percurso narrativo que se move no território ficcional da pornotopia – que talvez fosse melhor compreendida como terra do sempre, onde a realidade está permanentemente dissolvida na representação da sexualidade. ” (Abreu, 1995, p.143). O universo pornotópico de The Crash Pad é onde as fantasias queer dentro do universo ficcional podem acontecer, os personagens do filme são moradores da cidade de São Francisco que utilizam o apartamento para realizar seus desejos. Além disso, o pornô enquanto filme é um espaço pornotópico em que as espectadoras lésbicas podem sentir prazer ao serem contempladas com imagens que satisfazem seus imaginários sexuais.
Cabe notar que o filme se centra no prazer lésbico e utiliza as convenções pornográficas que rejeitam a formula monogâmica e apresentam números sexuais que rompem com a ideia de um sexo cotidiano. As fantasias dessas personagens não são românticas, são práticas sexuais hardcore que servem para desconstruir o imaginário de que mulheres preferem assistir filmes que não sejam tão explícitos. Algumas pornografias feministas se afastam das produções hegemônicas através da estética, produzindo filmes considerados artísticos, bonitos, eróticos, com um bom roteiro, onde o sexo é apresentado como algo limpo. O erotismo costuma ser valorizado em oposição ao pornográfico, que é considerado sujo, explícito e de mau gosto.
Me distancio da noção de que uma pornografia voltada para mulheres ou feminista precisa passar necessariamente pela reformulação estética para se legitimar enquanto material artístico, reforçando a dicotomia classista entre arte e cultura de massas, assim como os binarismos homem/mulher, onde as mulheres se relacionam ao belo e se importam com a estética. Aos 34 segundos de The Crash Pad é apresentado um plano detalhe das genitálias, onde a performance Jo penetra Dylan Rion com um cintaralho, um brinquedo erótico que consiste em um pênis artificial atrelado a uma cinta. Analisar a linguagem de The Crash Pad é útil para refletir como o hardcore pode ser um espaço feminino, afinal, não é a beleza da iluminação, a criatividade do roteiro, ou a ausência de genitálias explicitas que fazem com que uma obra seja relevante aos prazeres e estudos feministas.
Cineastas e teóricas feministas dos anos 1960 e 1970 ao perceberem os problemas misóginos presentes no cinema narrativo optaram por criar filmes que destruíssem a narrativa e o prazer visual, produzindo materiais artísticos independentes e de vanguarda. Contudo, De Lauretis (1987), propõe que as produções feministas no cinema devem ser narrativas e edipianas como vingança, trabalhando contra e a favor da narrativa. A autora considera que as narrativas são mecanismos de coerção e
podem ser empregados estrategicamente para construir cinemas feministas. Cinemas estes que devem ser pensados como processos, não como uma categoria estética. Além disso, a autora, usando a ideia foucaultiana de tecnologia do sexo, entende o gênero como uma relação entre os indivíduos, um conjunto de efeitos produzidos nestes corpos, que são criados por diferentes tecnologias sociais, como os discursos, vida cotidiana ou o cinema. A mídia não só representa os gêneros sexuais, mas os constrói. É exatamente por isso que as disputas acerca das representações são fundamentais, porque os sujeitos podem se reapropriar das tecnologias do sexo e produzir reflexões sobre seus próprios corpos.
Assim como o cinema narrativo foi visto como ferramenta patriarcal, nos anos 1970, parte dos feminismos também acreditou que as imagens sexualmente explicitas deveriam ser censuradas por serem intrinsicamente violentas e machistas. Porém, algumas artistas se inseriram no campo pornográfico para questionar as normas sexuais, utilizando as imagens para construir outras histórias de prazer. Houston não se afasta da linguagem pornográfica clássica, a utiliza como instrumento para produzir imagens dissidentes. Os primeiros planos das genitálias que são utilizados no filme estão a serviço do prazer visual das espectadoras que o assistem, uma vingança ao controle dos corpos. O objetivo do filme é afetar o público, e a diretora, ciente do poder das imagens, utiliza a montagem e movimento dos corpos para isso, seguindo a mesma estratégia sugerida por De Lauretis, entendo que o cinema constrói os gêneros e que as ferramentas cinematográficas podem ser utilizadas nas construções de desejos feministas. Da mesma maneira que o prazer visual e a narrativa, a pornografia não é propriedade do patriarcado.
Em sua etnografia nos sets de filmagem de pornografias mainstream brasileiras, Díaz-Benítez (2010) observa que os filmes seguem um repertório de imagens simbolicamente aceitas e mesmo quando apresentam performances sexuais menos comuns, mantém as estruturas normativas. Os gêneros sexuais também são definidos por rígidas convenções que produzem hipergêneros, onde as características marcadoras de feminilidade e masculinidade são acentuadas corporalmente, enfatizando as normas binárias. The Crash Pad segue algumas estruturas das coreografias pornográficas tradicionais, mas as performances sexuais priorizam prazeres excluídos das narrativas mainstream.
O primeiro número sexual do filme começa com um casal lésbico transando em uma cama em uma posição típica das coreografias heterossexuais, onde a atriz Dylan Ryan está deitada de pernas abertas sendo penetrada pela performance Jo, que usa um cintaralho. O corpo de Dylan Ryan, que é aquele que é penetrado, possui algumas das marcas de feminilidade observadas por Díaz-Benítez, como salto alto, maquiagem, acessórios e unhas pintadas, contudo, ao longo da performance sexual é o prazer dela que é a prioridade, e não o daquela que a penetra. Quando o telefone do apartamento toca, Dylan Ryan segura o rosto de Jo e fala que ela não deve se atrever a atender. Simone e Jiz Lee chegam ao apartamento e Dylan Ryan as convida para a transa. Jiz Lee, que também está usando um cintaralho, realiza junto com Jo, uma dupla penetração em Dylan Ryan. Simone apenas observa, satisfazendo seu prazer como voyeur. Dylan Ryan senta no rosto de Jiz Lee e recebe um sexo oral enquanto chupa o dildo de Jo. Os dildos estão protegidos com camisinhas, o que é importante para pensarmos em como estas produções estão interessadas em construir novos saberes sobre a sexualidade, que passam pela construção de um
sexo seguro [1] .
Além disso, os brinquedos eróticos não funcionam como substitutos do pênis masculino, para Preciado (2002), eles constroem uma paródia heterossexual, desconstroem a ideia de que só homens possuem pênis, desestabilizam as noções masculino/feminino, ativo/passivo, natural/artificial. Os dildos ameaçam a estabilidade dos termos binários. Em The Crash Pad mulheres cis lésbicas possuem pênis e sentem prazer ao serem penetradas por eles. Dylan Ryan faz sexo oral na prótese de plástico que Jo está usando, a tecnologia serve para ampliar os prazeres das duas. Depois, a atriz deita na cama com as pernas abertas, deixando suas genitálias expostas para a câmera e estimula seu clitóris enquanto as duas outras performances ficam ao seu lado acariciando o seu corpo até ela ter espasmos de prazer sonoramente silenciosos.
É interessante pensar que o filme não exclui as práticas penetrativas das dinâmicas sexuais dos relacionamentos lésbicos, mas inclui a estimulação do clitóris – órgão muitas vezes esquecido na pornografia mainstream – como uma ação sexual prazerosa. Para Williams (1999), um dos problemas que os filmes pornográficos enfrentam é como tornar visível o orgasmo das pessoas com vulva, já que eles não se manifestam necessariamente através de algo material, acontece em um lugar invisível em que as tecnologias visuais não podem ter acesso e não podem medir objetivamente, encontram uma falha ótica. A autora observa que se convencionou apresentar o prazer desses corpos através de close ups das expressões faciais e close ups sonoros, onde os gemidos excessivos são comprovações do orgasmo.
Se a performance de Dylan Ryan, Jo e Jiz Lee termina com a estimulação clitoriana, o segundo número sexual começa com Roxie Ryder estimulando o clitóris de Dusty através de uma cena de sexo oral que dura 4 minutos. Elas apresentam uma dinâmica de relacionamento butch-femme [2] .Dusty, em um determinado momento fala para sua parceira que quer que ela a faça ejacular, uma pratica que não é tão comum na pornografia mainstream. A ejaculação em The Crash Pad não é espetacularizada como algo exótico, e não serve para gerar frustrações ao público que nunca conseguiu ejacular, é apresentada como mais uma forma possível de manifestação de prazer dos corpos femininos. A prática sexual também aparece no terceiro quadro do filme que se volta para a performance de Jiz Lee e Syd Blakovich.
Para Ramos (2015), alguns filmes de pós-pornografia reivindicam a ejaculação feminina enquanto pratica sexual de resistência aos discursos científicos que não valorizam a capacidade orgânica do corpo feminino de expelir o gozo. Como aponta Miguelote (2020), existe um debate em torno do squirting que se apoia em uma desconfiança da capacidade das mulheres de realizarem essa prática e de relatarem suas próprias experiências sexuais. As pesquisas cientificas sobre o tema investigam o liquido para avaliar se ele não é urina, como se as mulheres não tivessem habilidade para perceber o que sai de seus corpos [3]. Para Torres (2015), poucas mulheres falam que praticam squirting e poucas de fato a praticam devido ao controle sexual do sistema patriarcal que reprimiu a sexualidade feminina e as possibilidades de conhecimentos sobre o próprio organismo.
A pornografia é um gênero cinematográfico que, como qualquer outro, apresenta um sistema de signos que o identificam como tal. As narrativas tradicionais possuem apresentação, desenvolvimento e clímax, que costuma ser o gozo masculino, chamado money shot, é ele que define o final da cena e normalmente é expelido em algum lugar que possa ser visível para a câmera. Shine Louise Houston afirma que sua missão enquanto cineasta é captar o “femme pop shot”, fazendo uma brincadeira com o conceito de money shot [4]. A cineasta reitera o money shot ao fazê-lo através da ejaculação de Dusty, uma mulher cis, e de Jiz Lee, uma pessoa não-binária que possui vulva, sendo este o final das duas coreografias sexuais.
Alguns fluidos corporais, como o gozo masculino e a saliva, são valorizados na pornografia como materiais excitantes (Diaz-Benítez, 2010). Na performance de Syd Blakovich e Jiz Lee, Syd Blakovich recebe a ejaculação de Jiz Lee na boca, valorizado aquele fluido corporal como algo saboroso. A boca é um espaço de pensar o gosto em termos de estética, porque nela é possível transitar entre o repugnante e o fascinante. A boca pode vomitar de nojo e salivar de prazer (Souza, 2018).
Syd Blakovich deita de boca aberta e espera o jorro de Jiz Lee, experimentando, degustando o gozo, fluido corporal que não é valorizado na pornografia mainstream e visto com desconfiança aos olhares da ciência masculinista. A boca como lugar que expressa o que é belo e prazeroso aparece na cena enunciando que a ejaculação da vulva é algo positivo, que se saboreia. Além disso, o ato de ejacular em alguém é uma ação ativa de corpos que foram historicamente considerados passivos e receptivos, é a vulva que energeticamente tem o poder de esguichar uma quantidade enorme de líquido. A ejaculação aqui serve para tornar visível a capacidade biológica de corpos que foram considerados incapazes. Ela não é fetichizada como algo exótico, é naturalizada. Além disso, a multiplicidade de expressões orgásticas no longa-metragem mostra que é possível manifestá-lo de múltiplas formas: ejaculação, gemidos, espasmos e expressões faciais.
Voyeurismo queer
Williams (1999) observa que a pornografia organizou um conjunto de convenções narrativas. O ato sexual deve ser performado através de posições estilizadas que servem para que a câmera consiga ver tudo, através da máxima visibilidade. Para a autora, a pornografia se relaciona com o desejo de ver e conhecer o corpo, tentando documentar e tornar visível o prazer corporal. A ciência e os filmes documentários se legitimaram como portadores do olhar, aqueles que apresentam o verdadeiro discurso sobre o mundo real (Nichols, 1997), a opção da pornografia de utilizar uma linguagem que se sustenta em convenções documentais contribui para que os vídeos sejam lidos como a verdade sobre o sexo, e não como uma fabricação ficcional.
Para Paasonen (2011) a pornografia se constrói através do exagero e da realidade. No século XXI, onde as tecnologias imagéticas se desenvolveram rapidamente, o interesse do público em observar a vida privada aumentou. Reality show e webcams redesenharam os limites da privacidade e da observação da vida intima através das câmeras. Neste contexto, o senso de realidade da pornografia se tornou mais importante do que já era, porque a autenticidade capta a audiência, sendo
associada a ausência de mediação e representação. O estilo amador na pornografia constrói a ilusão de que o público está tendo acesso a algo autentico e do domínio da esfera privada. O exagero que aparece nas performances amadoras é relacionado com a espontaneidade do prazer e sua falta de controle.
Em alguns momentos do filme, aparecem planos com um efeito de câmera de segurança. Essas imagens, de baixa qualidade, apresentam enquadramentos mais abertos do que o do restante do filme, como se existisse no ambiente uma câmera escondida, longe dos personagens. Essa opção de filmagem, assim como o cenário realista, o suor e os pelos dos corpos, contribui para satisfazer o prazer do público em observar a vida privada e construir a evidência do real, os personagens não estão atuando para aquela câmera, ela revela os segredos da vida cotidiana. Além disso, é interessante notar que as performances são creditadas com seus próprios nomes, não estão interpretando personagens, o que serve como ferramenta para legitimar que o ato sexual é autêntico.
Além da simulação de uma câmera escondida, existem algumas imagens intercaladas no filme que apresentam planos detalhes de dedos fazendo movimentos em um teclado, e imagens de parte de um rosto em um ambiente muito escuro. No final da última performance, uma masturbação solo feita por Jo, ela olha para a câmera constantemente, e a sequência termina com a atriz sorrindo e dando tchau com as mãos para o público. Através de um zoom out nos distanciamos do corpo da performance, a imagem fica em preto e branco e vemos o quadro congelado em um programa de edição na tela de um computador. A imagem se distancia mais um pouco e aparece a diretora, Shine Louise Houston, em uma ilha de edição, ela olha para a câmera e sorri.
Os olhares de Jo para a câmera indicam que ela sabe que está sendo filmada e se masturba para que o público a admire. Já o olhar da diretora para a câmera serve para revelar o antecampo, mostrar o processo fílmico para o público que consome pornografia ética. Apesar do voyeurismo e da quebra da quarta parede serem comuns na pornografia mainstream para construir o efeito de realidade, aqui as únicas mulheres negras do filme encaram a câmera com uma proposta diferente. Seus olhares constantes para a câmera (e consequentemente, para o público) quebram o silenciamento produzido pelo cinema hegemônico e rompem com os estereótipos das representações. Jo e Houston assinalam que elas são as produtoras criativas, que estão narrando os seus desejos através de seus corpos. O olhar não é uma atividade passiva, ele é político, podendo mudar a realidade na medida em que é um espaço de agenciamento (hooks, 2019). O público observa as imagens pornográficas do filme e Jo e Houston retribuem o olhar sem medo, de forma crítica, cientes de que o ato de olhar e a
liberdade de expressar o prazer não são experiências menores, devem fazer parte de seus ativismos políticos.
Para Preciado (2021) a relação entre sexualidade e cinema não é só da ordem da representação, mas da produção. O problema não é quais imagens representam verdadeiramente a sexualidade, mas sim, quais ficções da sexualidade são produzidas. Pensando na construção política do olhar, o autor diz que não se importa em como produzir representações autênticas, que representem a verdade sobre o sexo, mas pensa na importância de se construir contra-ficções visuais capazes de questionar os modos dominantes, ou seja, é preciso que outras pessoas fora dos discursos hegemônicos narrem suas ficções e fantasias através das imagens. Isso só pode ser feito se as minorias político-visuais assaltarem a sala de montagem, espaço onde as decisões cinematográficas são tomadas. Shine Louise Houston em The Crash Pad aparece com esse objetivo, mostrar que quem controla as imagens pornográficas é seu corpo de mulher negra e queer. Ela observa as imagens pornográficas e decide o que irá para o corte final, é ela que controla as fantasias e satisfaz seus prazeres como voyeur. A
pornógrafa também aparece em cena em seus filmes Superfreak (2007), na série Bed Party (2014) e em Camera and I (2020).
Conclusão
Após realizar o filme The Crash Pad, Shine Louise Houston decidiu fazer com que o projeto se tornasse uma série que até o momento tem 351 episódios. A diretora opta por escolher performances LGBT, não-binários, trans, pessoas racializadas, idosos, deficientes, gordos, ou seja, pessoas que foram historicamente excluídas da pornografia mainstream. A série continua utilizando como cenário um quarto, mas abandona a narrativa, é composta apenas pelos números sexuais. Segundo o site https://crashpadseries.com/ os performances escolhem o que querem fazer diante da câmara, como se o set de filmagem fosse de fato o espaço pornotópico do primeiro The Crash Pad, um local seguro para pessoas queer expressarem suas fantasias sexuais.
Existem muitas formas de se produzir imagens sexualmente explicitas, o pornô é diverso e pode ser um espaço para construir saberes positivos sobre os corpos. Como observa Williams (1999) não podemos discutir o prazer e o poder só através de termos masculinos, e isso inclui pensar as múltiplas formas de resistência às normas. Produzir outras pornografias e entender este espaço como um campo prazeroso para as mulheres, pode ser uma das formas de combate aos saberes normativos. Além disso, a pornografia é um campo riquíssimo de estudos acadêmicos. Como nos lembra Oeming (2021), levar o pornô a sério não é intelectualiza-lo em algo que não é, mas valoriza-lo pelo o que é: uma ferramenta de prazer. Os estudos acadêmicos sobre o tema devem analisar as imagens pensando que estes filmes são construídos para afetar o corpo do expectador através de códigos que se distanciam do cinema clássico narrativo. É preciso produzir uma ciência que inclua o corpo e que pense a pornografia através do desejo e das contradições.
A pornografia é entendida como algo ruim, sem nenhum valor artístico ou reflexivo. Contudo, a tentativa das análises feministas de descodificar as imagens pornográficas, olhando para os demônios na caixa de Pandora, pode ser útil para pensar este campo de forma política. Shine Louise Houston é uma das diretoras mais famosas no mercado de pornografias éticas, feministas e queer. Ela utiliza o espaço hardcore para construir contra-ficções que apresentam as mulheres negras como sujeitos desejantes, que possuem fantasias e são mobilizadas pelas imagens sexualmente explícitas. The Crash Pad é um filme que reitera alguns códigos da pornografia mainstream para construir imagens que satisfaçam e representem os prazeres lésbicos. O filme utiliza a linguagem realista e brinca com o próprio fazer fílmico ao expor a diretora na ilha de edição. Além disso, através das coreografias sexuais, apresenta performances que valorizam os prazeres historicamente excluídos da
pornografia mainstream, enfatizando a estimulação do clitóris e a ejaculação das pessoas com vulva.
_______________________________
1 Em uma entrevista para o CRASHCOURSE, canal educativo da Pink & White Productions criado para falar sobre produções pornográficas, Shine Louise Houston e Jiz Lee (que além de atore também trabalha como assistente de direção) falam que uma das formas de criar um ambiente seguro para os performances é deixar que eles sejam livres para escolher se querem fazer um sexo protegido ou não. Os planos dessa entrevista se mesclam com imagens dos bastidores das filmagens de episódios de The Crash Pad, onde vemos os atores descontraídos no set. O CRASHCOURSE, assim como o making-off, são uma forma produzir um conteúdo transparente, autentico e ético, onde o público pode ver como o material foi filmado. Fonte: CRASHCOURSE: How to Create a Comfy Environment on Set by Shine Louise Houston and Jiz Lee.
2 Termos usados na comunidade lésbica para organizar as identidades de gênero e relações sexuais. Roxie Ryder é uma butch, performa sua identidade de gênero através de traços e comportamentos masculinos. E Dusty, uma femme, sua performance de gênero segue os padrões tradicionais de feminilidade.
3 Em 2002, o Conselho Britânico de Classificação de Filmes proibiu uma série de práticas sexuais nos filmes produzidos no país. Escatologias, BDSM, brinquedos sexuais foram considerados impróprios. Além disso, para o conselho, o liquido que mulheres expeliam durante o sexo era urina e qualquer filme que apresentasse ejaculação feminina seria censurado por conter escatologia, o que, para Torres (2015), é uma prova de que a ciência ocidental se interessou pouco pelos mecanismos de prazer do corpo feminino, chegando a considerar que a ejaculação feminina era urina. Em 2009, a diretora de pornografia Anna Span, filmou uma cena de sexo que possuía ejaculação feminina, levou o liquido para um laboratório de análises clinicas e quando o filme, Women Love Porn, foi barrado pela censura, ela tinha a prova cientifica de que o filme não era escatológico porque o liquido expelido não era urina.
4 Fonte: Superfreaky: Queerness, Feminism, and Aesthetics in Queer Pornography, escrito por Sarah Wheeler.
Referência bibliográfica
ABREU, Nuno Cesar. O olhar pornô: a representação do obsceno no cinema e no vídeo. 2 ed. São Paulo: Alameda, 2012.
DÍAZ-BENÍTEZ, Maria Elvira. Nas redes do sexo: os bastidores do pornô brasileiro. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar. 2010.
HOOKS, Bell. Olhares negros: raça e representação. 1 ed. São Paulo: Elefante, 2019.
LAURETIS, Teresa de. Technologies of gender: essays on theory, film, and fiction. Indiana: Indiana University Press, 1987.
MIGUELOTE, Carla. Nem fetiche, nem escatologia: crítica das imagens de squirting. Anais de textos completos do XXIII encontro Socine. São Paulo: SOCINE, 2020.
MILLER-YOUNG, Mireille. A taste for brown sugar: black woman in pornography. Durham Duke University Press, 2014.
MULVEY, Laura. Fetishism and curiosity. London: Un. Press, 1996. p. 53-64.
NICHOLS, Bill. La representación de la realidad: cuestiones y conceptos sobre el documental. 1 ed. Barcelona: Paidós, 1997.
OEMING, Madita. Porn poacher: coming out as an aca porn fan. Synoptique, vol. 9, n. 2, 2021.
PAASONEN, Susanna. Carnal resonance: affect and online pornography. 1 ed. Cambridge: MIT Press, 2011.
PRECIADO, Paul. Manifiesto contrasexual. Madrid: Opera Prima, 2002.
________. Um apartamento em urano: crônicas da travessia. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 104-107.
RAMOS, Maria Eduarda. Pornografia, resistências e feminismos: estratégias políticas feministas de produções audiovisuais pornográficas. Florianópolis, 2015, 346 f. Tese (doutorado em ciências humanas) – Centro de filosofia e ciências humanas, Universidade Federal de Santa Catariana, Florianópolis, 2015.
RIBEIRO, Djamila. Lugar de Fala. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
SOUZA, Ramayana Lira de. A forma pornográfica. Revista de la Asociación Argentina de Estudios de Cine y Audiovisual. N 18, 2018.
TORRES, Diana. Coño Potens: manual sobre su poder, su próstata y sus fluidos. País Vasco: Txalaparta, 2015.
WILLIAMS, Linda. Hard core: power, pleasure and the frenzy of the visible. California: University of California Press, 1999.
Referência filmográfica
THE CRASH PAD. Direção: Shine Louise Houston. Produtora: Pink & White Productions. Estados Unidos, 2005. Disponível em: https://pinklabel.tv/on-demand/film/the-crash-pad-directors-cut/.