Artigo escrito por Maria Gabriela Capper, do PPGCine-UFF, para revista Interfaces da UFMG.


Resumo:
Este artigo aborda as experiências de um grupo de crianças com o cinema e o audiovisual realizadas em uma oficina de extensão, em ambiente virtual, durante o período de distanciamento social causado pela pandemia de Covid-19. São relatos de passos, descobertas, impressões, interações, afetos, efeitos, direções, desvios, subjetividades, multiplicidades e imaginações que surgem nos processos de fruição e criação com o cinema e o audiovisual na infância, em diálogo com os pensamentos de Alain Bergala (2008), Gilles Deleuze (1985, 1998) , Fernand Deligny (2016), Giorgio Agamben (2007, 2008, 2009) e Sergei Eisenstein (1990, 2002, 2004) sobre a arte e o cinema. De um modo geral, o cinema está presente nas escolas de maneira limitada e, por vezes, instrumentalizada, servindo unicamente como ferramenta de apoio aos processos de ensino. Como ampliar a presença do cinema e do audiovisual como arte nas escolas? Como tornar possível que crianças operem, fruindo e criando, com o cinema e o audiovisual em um devir cinema-infância? O que pode surgir nesse entre o cinema e a infância? É o que se pretende descobrir nessa trajetória de experiências e investigações sobre imagens, sons, edição e montagem cinematográfica, que deflagram operações audiovisuais imaginativas e inventivas em um devir cinema-infância, em que os gestos cinematográficos das crianças se fazem próprios e singulares.  

Palavras-chave: Cinema. Audiovisual. Arte. Educação. Infância.

Introdução

Este artigo convida o leitor a acompanhar a trajetória de experiências com o cinema e o audiovisual, por meio de janelas virtuais e em rede, de um grupo de crianças de escolas públicas do Rio de Janeiro. Tais experiências surgiram de inquietações de docentes quanto à relação entre o cinema e a infância, bem como aos possíveis modos de operarem com o cinema como arte, escrevendo sobre si, sobre a vida e sobre o mundo, com imagens e sons. Geralmente, o cinema está presente nas escolas de modo limitado e, por vezes, instrumentalizado, servindo unicamente como ferramenta de apoio aos processos de ensino. O cineasta, crítico de cinema e professor Alain Bergala, responsável pela introdução do cinema como arte em escolas francesas, formulou contribuições preciosas sobre as relações entre a arte, o cinema e a educação, dentro e fora da escola. Bergala (2008) destaca que a arte é por essência um campo de conhecimento subversivo dentro da escola que não se restringe ao ensino no formato tradicional. Para ele, limitar o contato dos alunos com a arte, isolando-a em uma disciplina, em um tempo determinado, tende a reduzir o “alcance simbólico da arte e sua potência de revelação” (BERGALA, 2008, p.29).  Os processos de criação seguem um tempo subjetivo, uma vez que somos afetados por uma experiência que se quer desdobrada em uma obra artística. O tempo se dilata o necessário para que o gesto artístico encontre sua força e sua potência. Como encontrar esse tempo para a criação com o cinema e o audiovisual dentro das escolas?  Com o desejo de ampliar os encontros de estudantes de escolas públicas com o cinema e o audiovisual, um coletivo multidisciplinar de docentes do Coluni UFF se uniu para criar o Projeto de Extensão Crias Cine: cinema e educação – Coluni UFF. O coletivo Crias Cine, formado por quatro pedagogas, professores de Teatro, Matemática e Música e um estagiário licenciando de cinema e audiovisual da UFF, tem o interesse em desenvolver processos de criação com o cinema e o audiovisual centrados na infância, em ações dentro e fora das escolas, que favoreçam encontros do cinema com a arte. Tais perspectivas encontram ressonância na provocação de Bergala: “Talvez fosse preciso começar a pensar – mas não é fácil do ponto de vista pedagógico – o filme não como objeto, mas como marca final de um processo criativo, e o cinema como arte” (BERGALA, 2008, p.33-34). No lugar do “ensino” do cinema, Bergala acredita em um “encontro” com a arte do cinema e em uma pedagogia centrada na criação.

O Projeto de Extensão Crias Cine: cinema e educação teve início em março de 2020 e constitui-se de três ações: oficina de criação e produção audiovisual, roda de conversa sobre cinema e educação e mostra de filmes realizados por crianças. O Projeto surgiu para aproximar estudantes da Educação Básica e a arte do Cinema e do Audiovisual, no cotidiano de escolas públicas. Uma das ações do projeto, a oficina Crias Cine: criação e produção audiovisual, visa a impulsionar a troca de experiências entre crianças e jovens, enquanto espectadores e realizadores de audiovisual. Nós, docentes e mobilizadores das atividades no Crias Cine, temos como premissa o acolhimento dos interesses das crianças, pois sabemos o quanto as experiências que surgem de ideias do grupo se tornam mais atrativas e envolventes para todos. Enquanto docentes, indagamo-nos permanentemente sobre como mobilizar as crianças, quando o que se deseja é o desvelamento de subjetividades na criação artística com o cinema. Objetivamos acolher, aproximar, afetar, instigar, desafiar, experimentar, acompanhar, ampliar, refletir, criar, emancipar, tendo como perspectiva desenvolver uma pesquisa sobre a criação artística no cinema e no audiovisual na infância e na adolescência, em atravessamentos e subjetividades. Decidimos, portanto, registrar passos, descobertas, impressões, interações, afetos, efeitos, direções, desvios, multiplicidades, criações, que surgem a partir das experiências com o cinema e o audiovisual, em um grupo formado por dez crianças, com idades entre 7 e 14 anos, estudantes de escolas públicas em Niterói, Itaboraí, São Gonçalo e Rio das Ostras, RJ, que têm em comum o interesse por edição de vídeos e pelo cinema.       

No primeiro encontro da oficina nos conhecemos um pouco e aos poucos. Conversando em roda, Arthur nos contou que produz vídeos e se identifica muito com os videogames, gosta de se apropriar de imagens e de personagens de jogos para fazer os seus filmes. Ana Luysa gosta de inventar e escrever histórias. Disse-nos que escreveu um livro na escola. Thiago contou ao grupo que acompanhou sua mãe, fazendo um filme em stopmotion e que tem uma coleção de desenhos de monstros, cada um com a sua biografia, todos inventados por ele. Sophia nos disse que teve uma experiência com o cinema quando participou como atriz de uma produção com sua irmã, que é estudante de Cinema da UFF e gosta de editar seus vídeos no celular por meio de diferentes aplicativos. Rara contou que edita vídeos, tem um canal no Youtube no qual, entre outros assuntos, comenta filmes. Os irmãos João Gabriel e José Luís são os mais novos do grupo e se identificam com o universo dos super-heróis, editando vídeos em parceria. Maria Laura faz filmes de animação com desenhos e narrativas autorais, tem prática com a edição de vídeos. Eloah e João Pedro têm interesse em fazer vídeos e, por isso, decidiram participar da oficina. A maioria das crianças chegou ao Crias trazendo consigo experiências prévias com o audiovisual. Percebemos logo um interesse real do grupo pelo assunto cinema. No primeiro encontro (o único presencial), convidamos as crianças a conhecerem e criarem Taumatrópios. Anterior ao cinema, o Taumatrópio é um dispositivo ótico que, ao ser acionado, produz a ilusão ótica em que duas imagens diferentes colocadas em movimento se combinam. Foi uma atividade divertida e desafiadora: brincamos com as imagens e ativamos experiências lúdicas com o olhar. Foi uma ótima entrada para pensarmos qual seria o próximo passo da oficina.

A pandemia de Covid 19 pegou a todos de surpresa, ninguém esperava um ano tão difícil e com tantos desafios. Os encontros da oficina Crias foram suspensos, assim como todas as atividades escolares e a vida de um modo geral. No entanto, o grupo docente multidisciplinar que compõe o projeto continuou mobilizado a fim de dar continuidade aos estudos que sustentam as ações de Ensino e Pesquisa do Projeto de Extensão, principalmente no referente às experimentações com o audiovisual e à criação de materiais mobilizadores. Nesse período de formação, entramos em contato com os materiais do Inventar com a diferença: cinema, educação e direitos humanos, projeto ligado ao PPG Cine UFF, valendo-nos especificamente dos dispositivos para a experimentação e criação com o audiovisual disponibilizados no Caderno do Inventar com a diferença. Os dispositivos nos interessaram e afetaram, tornando-se imprescindíveis em tomadas de decisões referentes às ações da oficina Crias, como será visto adiante.  

Encontros com o audiovisual pelas janelas de celulares e computadores 

As atividades do Coluni recomeçaram de modo remoto e, por uma decisão coletiva, a oficina Crias retomou suas atividades, mesmo sem saber como seria a interação entre o grupo pelas telas de celulares e computadores. As muitas incertezas quanto à possibilidade de realizar a oficina à distância fizeram com que os primeiros caminhos percorridos em encontros síncronos, pelo google meet, fossem tateantes. Tivemos que nos adaptar à comunicação pelas telas, ao microfone, à câmera, à conexão, ao tempo, enfim, tivemos que ultrapassar as inúmeras dificuldades que o ambiente de interação virtual nos apresentava. No entanto, como esse seria o único modo possível de continuar com os encontros, concentramo-nos nas “janelas” dos celulares e computadores. Diante de tantas situações desconhecidas, talvez por isso, compreendemos que era um momento para ousar, superar os desafios com experimentações que operassem com o cinema de outros modos.

O TikTok, um aplicativo de rede que dispõe de uma série de recursos de edição, filtros, transições, entre outros, tem sido muito utilizado por crianças e jovens para fazer vídeos instantâneos com no máximo 1 minuto de duração. Por se tratar de uma ferramenta conhecida pelas crianças, iniciamos as experiências de filmagem e montagem de minivídeos com o aplicativo. Propusemos que criassem diálogos, em duplas, utilizando o recurso “duetos” do TikTok. Trata-se de um recurso de edição em que um dos interlocutores filma e dubla parte de uma conversa, deixando espaço de tempo para que o outro interlocutor complete, filmando e dublando, a outra parte do diálogo. A interação entre as duplas para a edição do vídeo acontece em rede. O recurso “duetos” gera um vídeo em tela vertical, bipartida, com a duração de 1 minuto. Para realizarem essa atividade, as crianças precisaram filmar, dublar e levar em conta o tempo na edição, para que o outro pudesse complementar o dueto com sua filmagem e dublagem. Algumas crianças fizeram duetos bem criativos, e os assuntos dos diálogos giraram em torno do sentimento de estarem em casa, com saudades dos amigos, inventando o que fazer nesse período de distanciamento social. É preciso dizer que percebemos uma certa timidez: mesmo com as possibilidades de brincarem com os filtros, foi difícil para alguns utilizarem a própria imagem no minivídeo. 

Por ter surgido como um aplicativo para edição de áudios, o TikTok oferece vários recursos e efeitos sonoros. As atividades com os duetos despertaram no grupo o interesse pela voz, pela dublagem e pelos sons no cinema. A partir desse interesse, formulamos experiências cênicas com a caracterização de vozes e apresentamos alguns dubladores em ação, em filmes conhecidos pelas crianças. Foi uma proposta muito bem recebida, e vimos o quanto seria interessante para o grupo que se dublassem filmes e curtas, improvisando diálogos e alterando planos sonoros.  Assim, resolvemos iniciar atividades de dublagem. Conversamos sobre as potencialidades da voz para inventarmos as caracterizações de personagens, criamos diferentes planos sonoros a partir de cenas de filmes e, mesmo um pouco tímidas, as crianças exploraram as possibilidades dos sons da voz. Foi muito envolvente esse encontro.  João Gabriel e José Luís escolheram o mesmo filme de animação para dublarem e sonorizarem, realizando a proposta durante a semana. Ficou claro que se sentiram envolvidos pela ideia. Os meninos apresentaram suas dublagens ao grupo. Foi muito interessante perceber como um mesmo filme, com planos sonoros completamente diferentes, pode ter o seu sentido alterado. João Gabriel e José Luís exploraram, em suas experiências com o filme de animação Day n’night, tanto a sincronicidade “ figurativa” (EISEINSTEIN, 2014) quanto a “imaginativa” (EISEINSTEIN, 2014), deslocando as imagens para outras conexões.

Sergei Eisenstein (2014) concebe o som e a imagem enquanto elementos de um contraponto audiovisual que podem servir a um objetivo representacional ou desviar-se imaginativamente dele. O cineasta chama atenção para o fato de que

O mais complicado, pois o mais fundamental para os princípios da estética audiovisual do cinema, era (e é, sempre) a separação da sincronia natural (‘tal como se produz na ordem das coisas’) e a instauração de uma sincronia própria ao autor, que exprima o seu pensamento, uma sincronia entre o mundo dos sons e o das aparências (EISENSTEIN, 2014).

O cineasta russo faz uma diferenciação importante a respeito da sincronicidade do som e da imagem. Segundo o autor, a sincronicidade “figurativa”, isto é, o acompanhamento dos ruídos dos objetos (o barulho de trem, o ruído da porta, o som de passos, entre outros), possivelmente surgiu antes da sincronicidade “imaginada”, a escolha de uma música, que se adapte ao que se deseja do filme.

Para entrar um pouco mais no assunto dos sons e da música no cinema, exercitamos a escuta, a percepção e a identificação de diferentes “paisagens sonoras”, conceito criado pelo músico, compositor e professor Murray Schafer (1991, p.187), que designa o estudo e a análise dos sons ao nosso redor. Do mesmo modo que as experiências com as imagens solicitam investigações com o olhar, a lida com os sons depende essencialmente da mobilização da escuta e da percepção, sendo o corpo convocado às percepções sensório-motoras, diante de imagens e de sons, preparando-se para acionar forças criativas no cinema.

O audiovisual se expandindo aos campos da arte e da subjetividade

 

Objetivando contribuir para que as crianças ampliem as experiências de fruição com o audiovisual, criamos um cineclube virtual no blog Crias Cine. A seleção dos filmes do cineclube vem sendo feita à medida que os assuntos aparecem nos encontros da oficina. Temos disponibilizado filmes produzidos em tempos e culturas diferentes, que fazem com que as experiências de fruição com o cinema das crianças e dos adolescentes não se limitem aos filmes que chegam ao circuito comercial do cinema e da televisão. Sabemos que muitas crianças nunca foram ao cinema, nunca viveram a experiência de ver um filme em uma tela grande, direito negado a uma grande parcela de crianças das classes populares. Uma das crianças do Crias nos disse que só havia ido ao cinema uma vez e, sobre essa experiência, revelou, referindo-se às legendas: “era um filme francês, não entendi nada! Afinal, o filme é para ver ou para ler?!” Boa pergunta!

Como uma mobilização do olhar para o poético, assistimos a uma sequência do filme Só dez por cento é mentira, um documentário sobre o poeta Manoel de Barros, realizado em 2009, pelo cineasta Pedro Cezar. Trata-se da sequência de um muro com marcas de desgastes feitos pelo tempo, um convite para o olhar e para a busca por imagens potenciais. Encontramos muitas imagens possíveis nas aparências dos mofos em muros, muitas figuras de animais e de pessoas foram imaginadas. Na sequência do filme, algumas formas desenhadas se sobrepõem às manchas nas paredes, desvendando uma, entre tantas possibilidades que podem ser vistas pelos espectadores. Quando os desenhos das figuras sobrepostos às manchas são retirados dos planos, o olhar se mantém com os efeitos dessas formas ausentes, como uma figura fantasmática produzida pela persistência da visão na retina. “O olho vê, a lembrança revê e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo” – trecho retirado do poema “As lições de R.Q.”, de Manoel de Barros. A experiência desafiou a todos a transver o mundo. Mas… que seria transver o mundo?

Instigamos as crianças a buscarem e filmarem imagens abstratas dentro de casa e imaginassem que potência aquelas imagens teriam quando “transvistas” pela imaginação. Foi uma busca bem curiosa. As filmagens foram feitas e as apresentamos ao grupo. Cada um falou um pouco sobre os planos que fizeram, e o grupo, mais uma vez, foi chamado a ativar o olhar e a imaginação, explorando as imagens filmadas por cada um.

Quando conversamos sobre os gêneros documentário e ficção, indicamos e disponibilizamos no cineclube o filme “L’Arrivée d’un train”, realizado pelos irmãos Lumiére em 1895, e o filme “Le Voyage dans la lune”, realizado em 1902, pela mente inventiva de Georges Méliès. Exibimos os filmes em um dos encontros síncronos no googlemeet e conversamos sobre o início do cinema, o pioneirismo de tais cineastas e sobre os elementos presentes nos filmes que os diferenciariam como documentário e ficção. Entendemos que desestruturar a dicotomia histórica entre esses dois gêneros e ultrapassar tais fronteiras de categorizações, em nome de um cinema expandido aos campos da arte e da subjetividade humana, na área narrativa, figurativa, sonora, visual atravessada pelo cinema experimental, pelo cinema de poesia, pelo filme-ensaio, sejam possíveis desvios dos pressupostos do cinema tradicional, no intuito de transcender o cinema de resultados e arejar a linguagem do cinema em seus modos de realização. Este seria um trajeto a seguir em nosso trabalho. Não foi difícil que as crianças chegassem à questão que sustentaria tal dicotomia: “o filme documentário é feito com histórias verdadeiras e a ficção com histórias inventadas”. Será?

Apresentamos um trecho do filme Recife Frio, feito em 2009, por Kleber Mendonça Filho. O título do filme nos coloca antecipadamente em uma suspeita entre o verdadeiro e o falso. Uma reportagem sobre uma praia dos pinguins em pleno Recife. Será que as crianças perceberiam no filme o que de algum modo desejávamos? Seria possível conversar com as crianças sobre “uma potência do falso”, que torna o filme indefinível? “Por toda parte são as metamorfoses do falso que substituem o verdadeiro” (DELEUZE, 1985, p. 165). Será que suspeitariam? O filme opera com “um novo estatuto da narração: a narração deixa de ser verídica, quer dizer, de aspirar à verdade, para se fazer essencialmente ‘falsificante’” (DELEUZE, 1985, 165).

Como imaginamos, faltaram informações prévias sobre a cidade, sobre o clima, sobre os pinguins, para que as suspeitas em relação ao filme surgissem das crianças. Nem sempre as escolhas pedagógicas foram a contento, mas seguimos as investigações, caminhando juntos. Aos poucos, as noções de verdadeiro e falso foram relativizadas. O filme “Recife frio” nos colocou diante de um jogo com “uma potência do falso que substitui e destrona o verdadeiro, pois ela afirma a possibilidade de presentes incompossíveis, ou a coexistência de passados não necessariamente verdadeiros” (DELEUZE, 1985, p. 160). Em Nietzsche, a concepção de “potência do falso” se relaciona com a vontade de potência tal como se manifesta na criação artística e na vida. Na arte, o falso emerge com maior força e opera em sua mais alta potência.           

Em 2007, o filósofo Giorgio Agamben escreveu Os seis minutos mais belos da história do cinema, um texto que,  ao modo de Orson Welles, transita entre o real e o imaginário, entre o verdadeiro e o falso e nos aponta poeticamente para a ideia de presentes inconciliáveis e passados inverídicos.

No texto, o personagem Sancho Pança está à procura de Dom Quixote quando entra em um cinema de uma cidade do interior e o vê sentado com o olhar fixo para o telão. Sancho Pança senta-se ao lado de uma mulher. Quem seria essa mulher? Era um filme de época que passava na tela, imagens de cavaleiros armados corriam e lutavam até que, em certo momento, aparece uma mulher correndo perigo. Quem seria essa mulher? “Quixote se ergue em pé, desembainha a sua espada, se precipita contra o telão e os seus golpes começam a cortar o tecido” (AGABEN, 2007).  A imaginação de Quixote diante da cena o levou a acreditar nas imagens projetadas no telão, chegando a lutar contra elas, como em suas lutas contra cavaleiros imaginários em moinhos de ventos.

O que devemos fazer com nossas imaginações? Amá-las, acreditar nelas a ponto de as devermos destruir, falsificar (este é, talvez, o sentido do cinema de Orson Welles). Mas quando no final se revelam vazias, insatisfeitas, quando mostram o nada de que são feitas, só então (importa) descontar o preço da sua verdade, compreender que Dulcinéia — que salvamos — não pode nos amar (AGAMBEN, 2007).

Um texto com muitos relevos, uma “conversa” entre a literatura e o cinema, como diria Barthes (2003), uma “conversação” entre obras concebidas em tempos e espaços significativamente afastados que se dá no tempo atual, em outro espaço determinado, fazendo com que a obra Dom Quixote atravesse séculos, deslocando-se para fora de seu tempo e tornando-se deslocada de outro tempo qualquer, extemporâneo, podendo se revelar, então, em qualquer tempo e espaço, outros do que o em que foi concebido. O que é destacado por Barthes é que a contemporaneidade se dá não só pelo encontro de pessoas e coisas no tempo e no espaço, mas também pelo encontro virtual, pelo encontro em potencial, pelo encontro entre arte e pensamento. 

“Se considerarmos a história do pensamento, constatamos que o tempo sempre pôs em crise a noção de verdade. […] a força pura do tempo que põe a verdade em crise” (DELEUZE, 1985, p. 165).

O processo de criação de um filme à distância

Em certo ponto da oficina, consideramos que viver o processo de fazer um filme seria uma experiência importante para aproximar ainda mais as crianças do cinema. Precisávamos estender as nossas experiências e imaginamos que o processo de criação nos traria questões desafiadoras e geradoras de trocas sobre o cinema e sobre a vida. Decidimos que o filme seria coletivo, construído por muitas mãos, olhos, ouvidos e corpos, por meio de janelas virtuais. Um processo de criação em um devir cinema-infância, em que os olhares, as escutas, as curiosidades, as explorações, as imaginações das crianças na vida e no mundo fossem os nossos traçados na experiência de fazer um filme.

É preciso que as crianças não acreditem que aquilo que elas assistem no cinema é uma amostra em estado bruto da realidade. Elas precisam saber que se trata de uma “linguagem”. Elas não podem sabê-lo senão experimentando elas próprias essa “linguagem” além de percebê-la sem serem enfeitiçadas (DELIGNY, 2016).

Muitos pressupõem que as subjetividades e potencialidades das crianças estão intactas e suas imaginações livres dos atravessamentos massivos da indústria da cultura. Ao contrário disso, percebemos o quanto as crianças são reféns de padronizações e regulações externas que insistem em desconsiderar suas singularidades. Seria preciso encontrar a potência imaginativa das crianças fora dos territórios já conhecidos, provocar uma “desterritorialização” em direção ao “não-saber como a fonte viva das verdadeiras histórias” (DELIGNY, 2016). Como são os traçados de seus próprios trajetos e de suas experiências com o audiovisual e com o mundo, outras cartografias, em um devir cinema-infância, “o que importa é ousar, abandonar nesse caso toda intenção de informação, de formação, de pressão prematura ou enfadonha. O que o adulto deseja exigir e provar à criança é suspeito” (DELIGNY, 2016). Com o ensejo de fugir de demarcações e paradigmas do cinema, ficamos por um tempo desenhado ideias, com o propósito de contribuir para que gestos cinematográficos próprios das crianças aflorassem. “Pensa-se demais em termos de história, pessoal ou universal. Os devires são geografias, são orientações, direções, entradas e saídas” (DELEUZE, 1998, p.2).

Encontramos um dispositivo para a entrada no processo de feitura do filme no Caderno do Inventar com a diferença, material criado pelo Projeto Inventar com a diferença, que visa a oferecer formação e acompanhamento a educadores de escolas públicas de todo país para o trabalho com vídeo em torno de temáticas relacionadas aos direitos humanos. A mescla de artes presente nos dispositivos nos interessou como disparadora para outras ideias que poderiam surgir das crianças. O que poderia surgir quando transitassem nos interstícios entre cinema e a literatura? Um filme-haikai? Um filme-carta? Um filme-diário?

O livro Um dia, um rio, de André Neves, foi apresentado em leitura em vídeo feita por Flávia Lobão. Assistimos a vídeo-poemas, entre eles Exercícios de ser criança, Palavras e Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros, textos do poeta Manoel de Barros, em costuras narrativas de Flávia Lobão. Manoel de Barros e suas invencionices com as palavras nos mobilizou para a escrita. Decidimos inventar hipóteses a partir do “E se…”, como um início gerador que provocasse algo imaginativo. “E se um grupo de amigos fosse viajar e o avião se desviasse de sua rota e fosse parar em um lugar gelado”? Sugeriu Sophia. Rara imaginou: “E se um avião que fosse para Bariloche caísse no Paraguai”? Arthur provocou: “E se um homem quisesse voar sem ser de avião”?  Thiago propôs: “E se um grupo fosse para um deserto e para achar água tivesse que enfrentar monstros”? Não nos pareceu ser uma coincidência que, em um período em que estamos isolados dentro de casa, a ideia de viagem tenha aparecido em todas as hipóteses criadas pelas crianças. Viajar parece ser uma boa entrada para instigar a imaginação, mais ainda nesse momento em que a vida parece estar parada. Para onde seria a viagem? Para a Argentina ou o Paraguai? Pesquisamos no mapa a localização dos países e, nos direcionando para o Brasil, o real se impôs. O que seria uma viagem de aventura tornou-se uma missão ambiental: o Pantanal tem sido devastado por incêndios e queimadas – um assunto bem real e atual que se mostrou urgente para ser tratado pelo cinema.

Iniciamos a escrita de uma estrutura textual aberta e em construção: uma viagem para o Pantanal contada em forma de um diário. Um filme-diário (de viajantes). Decidimos não escrever um roteiro, mas rascunhamos coletivamente um argumento para traçarmos algumas linhas. Com a estrutura do filme iniciada e ainda em construção como uma obra aberta, muitas ideias estão surgindo entre as crianças, traçados de um devir cinema-criança que se ampliam no grupo. “Devir é jamais imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele de justiça ou de verdade” (DELEUZE, 1998, p. 10).  As experiências do Crias prosseguem com as filmagens, conversamos sobre a possibilidade de sequência de planos e/ou planos-sequências em que os alunos estejam arrumando e contando o que levariam dentro de uma mala para uma viagem ao Pantanal. Além dessa proposta, solicitamos que cada um filme e fotografe livremente o que considerar interessante para compor o filme. As filmagens feitas com aparelhos de celulares estão em processo enquanto a oficina está pausada para o recesso de fim de ano. Pretendemos reiniciar em janeiro, dando continuidade ao processo de realização do filme.

Os modos de existências das imagens e a montagem

Na arte, a imagem é aberta a múltiplas leituras e se atualiza permanentemente por uma diferença. Sobre a diferença entre a percepção da imagem vista a olho nu e a mediada pelo aparelho fotográfico, Walter Benjamin escreve: “A natureza que fala à câmera não é a mesma que fala ao olhar, isso porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente” (BENJAMIN, 1996). O que se percebe de uma ação, através do olhar, são os grandes traços, os movimentos amplos que se destacam facilmente. No entanto, a atitude no exato segundo em que o movimento acontece nos escapa. Benjamin aponta a fotografia, através de seus recursos auxiliares: a câmera lenta, a ampliação, entre outros, como meio capaz de captar as frações de segundo que permeiam uma ação, afirmando que “só a fotografia revela esse inconsciente ótico” (BENJAMIN, 1996). 

Desde o começo do cinema, a montagem tem servido como aquilo que lhe é o principal elemento criador. Eisenstein demarca uma diferenciação importante entre os termos “representação” e “imagem” no trabalho com a montagem. Em sua perspectiva, a representação se torna imagem a partir do momento em que algo mais acontece, isto é, quando deixa de ser uma mera representação. Valendo-se por si mesma, a imagem passa a ganhar uma autonomia sobre aquilo a partir do que ela supostamente foi produzida, enquanto a representação desejaria ser uma substituta para o objeto representado, ou seja, enquanto, na arte, a imagem é uma das forças preponderantes, não importando obrigatoriamente a existência nem a inexistência do suposto objeto prévio, na representação, a linguagem utilizada, buscando dizer o próprio objeto, quer se adequar a ele. Se a imagem sempre lida com a potencialidade ou a ideia do objeto, a representação limita-se ao factual ou ao consolidado do objeto.

Para Eisenstein, não existe cinema sem cinematografia, o que significa dizer que, para ele, não existe cinema sem montagem. No livro O sentido do filme, Eisenstein pressupõe a montagem como uma propriedade orgânica de todas as artes. Ele percebe que o uso do método e da estrutura da montagem se mostra, em maior ou menor grau, de acordo com o momento social. Nos períodos de estabilização social, quando as artes se ocupam em refletir a realidade, utiliza-se menos o procedimento da montagem. Ao contrário, nos momentos de desconstrução e reestruturação social, a montagem se torna mais presente entre os métodos de construção ativa da arte. Para Eisenstein, o objetivo e a função essenciais da montagem se vinculam ao papel ao qual toda obra de arte se impõe: “a necessidade da exposição coerente e orgânica do tema, do material, da trama, da ação dramática como um todo […] sem falar do aspecto emocional da história, ou mesmo de sua lógica e continuidade” (Eisenstein, 2002). Na montagem de um filme, o que atraía Eisenstein era a junção de dois fragmentos, não importando que eles não se relacionassem coerentemente entre si. Segundo o cineasta, a força às vezes pode surgir dessa surpresa da diferença composta, quando imagens justapostas de acordo com a vontade do autor produzem uma terceira coisa.  Ao contrário dos filmes construídos a partir de um final predefinido, em que os fragmentos e suas justaposições são pensadas para atender a um objetivo geral, o que interessava a Eisenstein era que o resultado final fosse imprevisto, que ele emergisse inesperadamente.

 Afinando as nossas percepções e reflexões, Deleuze (1985) classifica dois modos de existências das imagens. As imagens quando “numa descrição orgânica, o real suposto é reconhecido por sua continuidade […] pelas leis que determinam as sucessões, as simultaneidades, as permanências: é um regime de relações localizáveis, de encadeamentos atuais, conexões legais, causais e lógicas”, e imagens em […] “um segundo polo de existência, que se definirá como pura aparição à consciência e não mais pelas conexões legais”, “as imagens desse tipo, se atualizarão na consciência, em função das necessidades do atual presente, ou das crises do real” (DELEUZE, 1985). Nesse sistema de imagens, “o virtual se exala de suas atualizações, começa a valer por si próprio”. (DELEUZE, 1985). Os dois modos, orgânico e cristalino, “reúnem-se num circuito em que o real e o imaginário, o atual e o virtual, correm um atrás do outro, trocam de papel e se tornam indiscerníveis” (DELEUZE, 1985).

Tais pensamentos e considerações sobre as imagens e os sons certamente serão vivenciadas nas experiências com as filmagens e a montagem do nosso filme. São pensamentos que nos rondam e, certamente, deixam seus efeitos no fazer cinematográfico do grupo. Veremos adiante, quando iniciarmos o processo de montagem do filme, o que enquanto ideias nos afetam agora.

Considerações finais

Nos caminhos que temos percorrido com as crianças e o cinema, em diálogo com os campos da arte e da subjetividade, vimos que o acesso aos dispositivos tecnológicos, como o celular, faz emergir novos modos de criação audiovisual, como os vídeos instantâneos, verticais e em rede, feitos com a ferramenta TikTok. Exploramos imagens e sons em experiências perceptivas e imaginativas, nas quais a escuta e o olhar foram solicitados primordialmente. Investigamos a sincronia e assincronia nas conexões entre as imagens e os sons na edição e montagem audiovisual. Vimos que elementos documentais podem estar presentes em filmes categorizados como ficção, assim como o ficcional figura em documentários. Em diálogo com Nietzsche, Deleuze e Agamben, apontamos que potências do falso desestabilizam as noções de verdade e operam em seu nível mais alto na arte. Buscamos direções que nos levem a outros modos de criar com o audiovisual, nos quais as fronteiras disciplinares se esgarcem e nos interstícios ocorram contágios, mesclas e conexões intermidiáticas. Sobretudo, desejamos que crianças e adolescente escrevam com o cinema e o audiovisual sobre si e sobre o mundo e que, enquanto realizadores, manifestem sensivelmente suas singularidades e subjetividades com as artes do audiovisual e do cinema.

Referências Bibliográficas

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BARTHES, Roland. Como Viver Junto; simulações romanescas de alguns espaços cotidianos (cursos e seminários no Collège de France, 1976-1977). Texto estabelecido, anotado e apresentado por Claude Coste. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 11-12.

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