Texto escrito por Victoria Silveira. Fotógrafa, 19 anos. Estudante de Cinema e Audiovisual na UFF. Escritora bilíngue de análise de filmes e livros.
O grande encontro de filósofos, eternizado por Platão em “O Banquete”, cedeu a nós, meros contemporâneos, a que talvez seja a mais múltipla e complexa discussão até hoje documentada sobre o Amor. Em meio a várias noções — algumas que se conversavam, outras adversas — , somos apresentados ao monólogo do dramaturgo grego Aristófanes. Persona esta que, quase se passando despercebida no fatídico jantar, tem seu silêncio questionado por Erixímaco e, a partir daí, começa a ser ouvida.
De acordo com sua visão, o mundo, como este era quando os falava, já havia sido muito diferente, num passado ainda mais distante. Passa a descrever o que chama de “a natureza humana e as suas vicissitudes” — começando com o que denomina “gêneros da humanidade”.
(…) inteiriça era a forma de cada homem, com o dorso redondo, os flancos em círculo; quatro mãos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto das mãos, dois rostos sobre um pescoço torneado, semelhantes em tudo; mas a cabeça sobre os dois rostos opostos um ao outro era uma só, e quatro orelhas, dois sexos, e tudo o mais como desses exemplos se poderia supor.
Com isso, Aristófanes se alonga e explica que os homens “eram, por conseguinte, de uma força e de um vigor terríveis, e uma grande presunção eles tinham”. Diz ele que as diferenças entre os Deuses e os homens se davam, justamente, por ambos ambicionarem, com a mesma ganância, o mesmo poder. Que foi, então, por uma intentona — por parte dos homens, de fazer uma escalada ao céu para investir contra os Deuses — que Zeus e as demais divindades formularam um plano para dar um fim definitivo a este mal comportamento do gênio humano:
Depois de laboriosa reflexão, diz Zeus: “Acho que tenho um meio de fazer com que os homens possam existir, mas parem com a intemperança, tornados mais fracos. Agora com efeito, continuou, eu os cortarei a cada um em dois, e ao mesmo tempo eles serão mais fracos e também mais úteis para nós, pelo fato de se terem tomado mais numerosos; e andarão eretos, sobre duas pernas. Se ainda pensarem em arrogância e não quiserem acomodar-se, de novo, disse ele, eu os cortarei em dois, e assim sobre uma só perna eles andarão, saltitando.”
Dito e feito. Zeus mandou Apolo não só cortar os homens ao meio como também “voltar os rostos e bandas dos pescoços para o lado dos cortes, a fim de que, contemplando suas próprias mutilações, fossem mais moderados”:
Por conseguinte, desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro. No ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do outro. (…) e assim iam-se destruindo.
Ora, a assim nomeada “teoria das almas gêmeas” procura provar-se verdadeira a todo momento. Nos tempos modernos, o Amor se faz experimental. Isto é, nos sujeitamos à busca incessante por nossa cara-metade, ao mesmo tempo em que torcemos pelo sucesso de nossas escolhas, a comprovação de nossas hipóteses.
Somos regidos por uma insaciável sensação de incompletude. Assim, atribuímos aos outros a (possível? impossível?) tarefa de nos completar. E com as belezas e as frustrações que encontramos no caminho, criou-se a Arte — o refúgio das almas solitárias, dos não-amados que tanto amam.
Secretamente, foi o Amor o grande precursor do Romantismo. É ele a chave mestra de todos os cadeados presos a Pont Des Arts em Paris e a tinta das milhares de cartas que são deixadas aos pés do balcão de Julieta todos os dias. Bom, foi também o Amor, suas belezas e suas frustrações que escreveram, ao lado de Gaspar Noé, o destino de Electra e Murphy, de “Love” (2015). O filme nos introduz a este casal, tão aflito e inconstante.

Electra é uma mulher independente. Passou por várias complicações antes de conhecer Murphy, tendo, assim, muitas vivências e uma noção certeira de quem é como pessoa. É do tipo que não se entrega inteiramente num relacionamento justamente por ser muito segura de si — experimentação não é seu forte, gosta daquilo que conhece, daquilo que sabe denominar que é dela e de mais ninguém.
Murphy, por outro lado, é um rapaz que se sente insuficiente quando só. Diz ele que aprecia cinema, mas durante todo o filme não o vemos envolvido com nada. Ele não sabe quem ele é, e isto o impede de agir. Vive, portanto, numa constante inércia e acaba despejando todas as suas esperanças em Electra.
Para além, leva consigo a Lei de Murphy (neste caso, o engenheiro aeroespacial Edward A. Murphy) como lema no dia a dia: “se tudo pode dar errado, dará errado”. De fato, ambos os Murphys eram aficionados em experimentações — Edward no campo da engenharia; nosso Murphy, do Amor.
Beirado por traições, falta de diálogo e incertezas do futuro, o casal não estava em um dos seus melhores momentos. O sexo os deprimia muitas das vezes e, ao conhecer sua nova vizinha, o casal decide convidá-la para participar.

Num primeiro momento, a terceira parceira, Omi, não causa problemas no relacionamento de nossos protagonistas. Entretanto, Murphy acaba tendo envolvimentos individuais com ela, ao suspeitar que Electra estaria tendo relações com um artista mais velho. Desta forma, Omi engravida, e Electra deixa Murphy. E desaparece.

Ou seja, como diz a lei, vemos o tudo de Murphy dar errado. Sem Electra, ele perde completamente a ideia daquilo que deveria ser apenas seu — sua individualidade, sua identidade.
Passa ele a desacreditar do “resultado de seu experimento”, assim entrando no caso de exceção que Aristófanes descreve: (…) no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do outro. (…) e assim iam-se destruindo.
O fim do relacionamento era o que Electra precisava, mas com certeza foi o pior pesadelo de Murphy se tornando realidade. Afinal, ele se via preso a ela. E, por via de uma espécie de autossabotagem, maquiada de “amor incondicional”, acabou afastando sua amada para sempre.

Vive ele então, no começo da trama de Gaspar Noé, uma reconexão com seu passado com Electra — isto, pois a mãe dela o contactou, esperando ouvir da filha, que não dava sinal de vida há tempos. O espectador é então levado a uma aventura cheia de retrospectivas do casal, na qual conhece todas as faces da dependência amorosa de Murphy e do impulso de liberdade de Electra.
Delineia-se, desta forma, o caráter intempestivo e explosivo de Electra. Como a do “Complexo de Electra” de Freud, nossa Electra tem uma relação complicada com sua mãe, e inconscientemente cultiva o desejo de ficar com seu pai — transpondo sua imagem no tal artista, com que ela traía Murphy. Para tanto, conhecendo o passado da protagonista, ainda que em pequenas frações, entende-se que suas grandiosas reações durante desentendimentos — seguidas de tapas e gritos de estremecer — são, simplesmente, fruto de seus traumas e, de certo modo, lhe servem como uma armadura emocional.

Ser uma mulher independente, certa de si e decidida são qualidades de Electra. Seus problemas só nascem por seu caráter incomodar os homens à sua volta.
Para eles, ela era melhor calada. Comportada, fazendo o que esperavam dela. Deveria ser leal, fiel e facilmente controlável. Desejam que ela fosse toda deles e, logo, nem um pouco dela. Queriam uma Electra submissa, dominada, contida, influenciável… uma Electra que não existia.
Mesmo em tempos modernos, o tipo de Amor que Electra praticava, o amor próprio, assusta. Causava angústia, desconforto. Electra era completa, ainda que estivesse sozinha… para a infelicidade dos muitos que não se contentavam com o destino pela metade os concedido por Zeus, para a tormenta dos que tanto se destruíram por tanto se odiarem.
Referências Bibliográficas
PLATÃO. Banquete, Fédon, Sofista e Político. [Tradução José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa] Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1991. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000048.pdf. Acesso em 9 de Agosto de 2021.