Crítica escrita por João Miller Tavares de Macedo na disciplina História da TV e do Cinema ministrada por Gledson Mercês na Faculdade CAL (Casa das Artes de Laranjeiras).

Pense num Brasil contemporâneo em que se fala de reparação histórica entre outras medidas protetivas às parcelas da população desfavorecidas. Agora lembre de algumas das ideias absurdas antidemocráticas que temos visto nos últimos anos. Tudo muito verossímil. Por isso não parece tanto uma utopia algo como uma medida constitucional que “corrige esse problema” enviando de volta para a África toda a população de origem africana ou que tenham “melanina acentuada.” Essa é a premissa do filme Medida Provisória, estreia de Lázaro Ramos como diretor, e que ainda conta a presença de nomes de prestígio como Taís Araújo, Seu Jorge, Alfredo Enoch, Renata Sorrah, Adriana Esteves entre outros grandes nomes.

Antonio, interpretado pelo ator Alfred Enoch, é um advogado que luta arduamente pela tão sonhada reparação histórica pelos 388 anos de escravidão e exploração da população afrobrasileira no Brasil. Para isso enfrenta diariamente o poder público na esperança de conseguir garantir esses direitos. Em uma das primeiras cenas do filme vemos uma senhora, por volta dos 80 anos, na iminência de finalmente sacar o dinheiro de sua indenização, por ser uma mulher preta. No momento em que ela finalmente se aproxima da porta giratória não consegue entrar e os funcionários do banco alegam ter acontecido um problema. A partir dessa situação, carregada de significados, o filme se inicia. Em paralelo é noticiado o sucesso da votação nacâmara a favor que o retorno dos melaninas acentuadas à África aconteça o quanto antes.

Poucas vezes vimos o cinema brasileiro escancarar tão objetivamente a questão racial no Brasil. Lázaro optou por trazer uma estética que não banalizasse a discussão sob o viés teórico, mas que se mostrasse pela dor, pelo humor e pela beleza todas as nuances necessárias para que tivéssemos um filme quase concreto na sua mensagem. Se Medida Provisória é assustador por sua semelhança com a realidade é também um sopro de esperança pelo mesmo motivo, a consciência de que temos força o bastante para reverter o jogo e encarar essa luta de frente. Se o Rio de Janeiro foi um dos maiores portos de escravos do hemisfério sul, ele pode também se tornar a maior força de resistência negra também, visto os afrobunkers e os quilombos da Pedra do Sul representados no filme.

Apesar da atuação marcante de Taís Araújo e Seu Jorge no filme, atores que também oferecem suas próprias vivências à prova na criação de personagens com  tanta profundidade, o filme peca por uma certa falta de sutileza quando em algumas falas há demasiado didatismo. Acredita-se que Lázaro Ramos tenha tido a preocupação de tornar a mensagem facilmente acessível e portanto optou por tornar algumas falas e transições de fácil entendimento, o que é louvável. Entretanto fica claro que cenas com forte potencial dramático são muitas vezes mescladas com muito oralidade, seja por excesso de falas ou vozes em off. Além disso, nos momentos de tensão impressos no filme, como a maioria das cenas de perseguição dos melaninados, o filme demonstrou uma certa fraqueza de técnica cinematográfica onde jogos de câmera e transições se revelaram muito convencionais. As personagens de Adriana Esteves e Renata Sorrah, por exemplo, foram desenvolvidas em cima de um certo clichê antagônico que não possibilitou tantas cenas com potencial dramático terem seus momentos de brilho. Isso se deu por um certo desgaste no excesso de textualidade das situações.

Lázaro Ramos, porém, é um artista fundamental e com uma visão muito otimista e sensível para com o país sob o ponto de vista da urgência de equidade racial. O filme Medida Provisória, ainda que nas suas poucas 1 hora e 40 minutos e trazendo alguns deslizes narrativos, oferece em contrapartida um bálsamo estético pouquíssimo visto no cinema nacional. A trilha sonora junto com algumas referências artísticas resgatadas ressuscitam um sentimento de esperança soterrado pela história recente do Brasil. Elza Soares e Cartola entram também como protagonistas num filme que fala sobre a importância do valor dado à arte periférica e tem seu ápice na cena final, ao som de “O que se cala” de Elza, talvez o grande momento do filme. Funcionando como uma espécie de epílogo, regido pela poesia de Emicida, ainda o momento final, o de enfrentamento da população negra à público, é sem dúvida a grande glória e também o momento em que a mensagem principal do filme arrebata os corações de qualquer cidadão brasileiro que se importa com o futuro do país.

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