O filme está disponível na Amazon Prime Video.
Não é de hoje que vemos comparações entre o cinema argentino e o cinema brasileiro. Normalmente, tais comparações sempre seguem a mesma fórmula – dizer que o Brasil não tem um cinema tão maduro quanto o de nossos Hermanos e que, por isso, não temos um Oscar para chamar de nosso (como se isso fosse algum tipo de validação). Apesar dessa discussão ser completamente inócua (e com um seríssimo teor de vira-latismo) – em algo podemos concordar: o Brasil jamais poderia fazer um filme como Argentina, 1985.
E não falo isso por conta de nossa capacidade técnica, criativa ou da qualidade de nossos atores. Mas porque nosso país falhou em propiciar uma premissa histórica similar à que o filme do diretor Santiago Mitre pretende narrar: nós nunca julgamos nossos militares pelos crimes cometidos durante a ditadura militar. A anistia que foi dada (em prol de uma suposta pacificação nacional) nos assombra até hoje de forma bastante efusiva, seja tomando governos, como ocorreu em um passado próximo, ou, ameaçando governos – como ocorre hoje.
Enfim, a Argentina não cometeu esse erro. E graça a esse acerto histórico, hoje ela pode produzir um filme da importância de Argentina, 1985. Na obra acompanhamos o promotor Julio Strassera (intepretado por ninguém menos do que Ricardo Darín), vivendo o dilema de precisar encabeçar o tenso e perigoso processo de investigar e tecer a acusação sobre os crimes cometidos pelos maiores nomes da ditadura argentina. Caso Strassera falhasse, um país inteiro veria os maiores criminosos de sua história saírem livres de suas atrocidades.
Apesar dessa premissa profundamente heroica, um dos grandes acertos da obra é justamente a de humanizar Strassera – demonstrando tanto seu receio (e covardia) em aceitar o seu dever histórico, como também em dar rosto e voz à uma série de outras figuras essenciais para o julgamento dos crimes militares. Mesmo que de forma resumida, vemos a importância do promotor adjunto, Moreno Ocampo, dos jovens que auxiliaram a promotoria, dos juízes, das vítimas que tiveram coragem de sair do anonimato e expor suas terríveis histórias e, claro, das mães da praça de Maio. Ou seja, dos argentinos como um todo – dando um caráter profundamente nacionalista a obra.
É chover no molhado elogiar as interpretações de Darín, mas aqui é preciso ressaltar a forma magnânima como ele consegue equilibrar seu personagem – emprestando o charme e carismo necessário para que simpatizemos com ele, mas sem esconder jamais suas falhas e fragilidades. Strassera não é o mais virtuoso dos homens – mas é um homem empático e de posições políticas claras – e isso basta, frente ao cinismo, à cegueira, à frieza e à crueldade que tomou a sociedade civil argentina no pós-ditadura. Quanto a isso, também é um acerto trazer a mãe do promotor adjunto Moreno Ocampo, para servir de um termômetro da sociedade frente aos crimes cometidos pelo regime. A mulher, de família militar, é completamente cega à crueldade do regime – mas em nenhum momento é pintada de forma superficial como uma fascista sem coração. É impossível não fazer paralelos com a situação atual do Brasil.
Outro mestre equilibrista é o diretor Santiago Mitre – que consegue empregar um tom por vezes bem humorado e, acreditem, afetuoso ao filme – sem nunca diminuir a seriedade do que está sendo narrado. De tal forma, os relatos brutais ganham ainda mais peso, ao contrastar com a ternura demonstrada pelos personagens da trama. Assim, quando vemos uma das jovens assistentes do promotor se debulhar em lágrimas ao ver uma foto dos calçados de uma garota morta pelos militares, nos damos conta: quem morreu era uma garota exatamente igual a ela. Com seus próprios sonhos, objetivos, amizades, família – um universo inteiro que foi extinto pela brutalidade e pelo sadismo dos homens.
O filme também tem suas deslizadas. Talvez, a mais pronunciada seja a barriga narrativa representada pelas cenas entre Strassera e Ruso, que pouco adicionam à trama, servindo apenas para tentar dar um pouco mais de profundidade ao promotor. No entanto, tais cenas se mostram desnecessárias, já que as relações afetuosas entre Strassera e sua família, principalmente sua esposa e seu filho, já fazem este trabalho de forma irretocável. Aliás, como é gostoso ver uma família amorosa e funcional no cinema – ainda mais em uma obra que precisa reafirmar o tempo todo o que estava em jogo: punir aqueles responsáveis por destruir milhares de famílias argentinas. O tempo gasto com Ruso poderia facilmente ser utilizado para dar um pouco mais de tempo à outros personagens mais interessantes como as já citadas mães da Praça de Maio (que fazem quase uma figuração).
Também é possível citar que na tentativa de dosar o tom do filme, Mitre por vezes caia na “cafonice” (como por exemplo, na escolha de música que embala os seus créditos finais). No entanto, ele acerta o tom quando é mais necessário: em duas cenas específicas. A primeira, no depoimento de uma das vítimas da ditadura – que estava grávida quando foi torturada (e que sumariza os horrores dos militares) – e a segunda, no famoso monólogo da acusação de Strassera. Aqui, Mitre dá espaço para Darín (e não usa nenhuma espécie de artifício sonoro ou visual para “dar um tom épico”) dar peso e importância à cada uma daquelas palavras.
Afinal, elas falam por elas mesmas.
Argentina, 1985 deveria ser obrigatório para todos os brasileiros. Não como uma aula de cinema dos nossos Hermanos argentinos. Mas como uma necessária aula de história. Quem sabe, um dia poderemos lançar a nossa própria versão. E, estejamos certos, não precisaremos ganhar nenhum Oscar para nos orgulharmos profundamente.