Por Hugo Oliveira da Silva
Texto escrito originalmente para a disciplina “A Gênese do American Dream” do professor Pedro Lauria, para o programa de Cinema e Audiovisual da UFF.
Nos anos de 1980 Hollywood produziu e distribuiu diversos filmes que hoje são considerados, por muitos, clássicos do cinema. Entre esses filmes existem algumas obras que podem ser encaixadas dentro do subgênero proposto pelo inglês Angus McFadzean em seu artigo de 2017 e seu livro de 2019: o Suburban Fantastic, ou Suburbanismo Fantástico como foi chamado pelo pesquisador Brasileiro Pedro Lauria em sua tese de doutorado (2022). Podem ser encaixados nesse subgênero filmes como E.T. – O Extraterrestre, De Volta para o Futuro e Karatê Kid – A Hora da Verdade. Porém dentro desses três exemplos Karatê Kid se destaca por não seguir à risca todas as características do suburbanismo fantástico. Nesse texto, aplicarei um olhar contemporâneo para a obra mostrando que o filme subverte ao menos duas questões historicamente problemáticas do subgênero: a questão da desigualdade social, praticamente inexistente nas obras suburbanistas, e a forma como o “Outro” é representado.
A presença da discussão de desigualdade social em Karatê Kid
Logo nos primeiros minutos de filme somos colocados dentro da situação financeira da família LaRusso, Daniel e a sua mãe estão se mudando de Nova Jersey para Califórnia por conta de uma nova e melhor oportunidade de emprego. Eles passam a morar em uma espécie de motel, estabelecimentos que em sua estrutura lembram bastante o subúrbio, diga-se de passagem, mas que demarca a situação social do protagonista se afastando bastante do padrão da classe média de casas grandes, com uma bela fachada e cercados brancos como é comum nas obras suburbanistas.
Mais a frente vemos Daniel descobrindo, ao buscar seu interesse amoroso em casa, que ela tem uma realidade completamente diferente da sua. A cena deixa claro o desconforto de Daniel diante dos pais de Ali que descaradamente o julgam por conta do lugar onde mora, as roupas que está vestindo e o carro que sua mãe dirige com olhares de menosprezo. E essa temática chega no seu momento de maior tensão quando o jovem casal chega no final da sua noite romântica e encontram com amigos de Ali que possuem carro, incluindo seu ex namorado Johnny Lawrence. Daniel se sente ameaçado justamente pelo poder financeiro do rapaz. Vale ressaltar que nesse momento o filme se assemelha bastante a outras obras clássicas do suburbanismo fantástico ao retratar o desejo do jovem de subúrbio de conquistar sua liberdade através de um carro, porém ainda se pode encontrar uma diferença fundamental: Daniel não possui um carro por ainda ser muito jovem ou porque precisa criar responsabilidade para merecer, ele simplesmente não tem condição financeira para ter um.
Assim, Karate Kid se mostra um dos poucos filmes do primeiro ciclo do suburbanismo fantástico a ter um protagonista de classe média-baixa/classe trabalhadora e que não ascende de classe ao final do filme (diferente do que ocorre com De Volta para o Futuro, por exemplo). É claro que mesmo trazendo essa discussão para tela, não significa que o filme possa ser considerado um filme de crítica social, mas demonstra que o mesmo se diferencia da maior parte dos filmes do gênero que retratam a sociedade como uma grande classe média sem qualquer evidência de que exista desigualdade social ou que, pior ainda, vilanize as classes trabalhadoras como Esqueceram de mim (1990) e Dênis – O Pimentinha (1993). Outros filmes que se debruçam sobre narrativas de classes menos abastadas são Conta comigo (1986) e It (1990) .
A representação do outro como alguém que tem muito a ensinar
Dentro do suburbanismo fantástico é comum ver filmes que trazem o elemento fantástico sendo representado pela figura do “Outro”, um ser completamente estranho que precisa se adaptar aquela cultura para se encaixar, como é o caso do E.T. em E.T. – O Extraterrestre (1982), e do Gigante de Ferro em O Gigante de Ferro (1999).
E essa representação do “Outro” pode ser interpretada como o olhar estadunidense para outros grupos étnicos, olhar esse que entende o outro como uma figura que precisa ser adaptada ao subúrbio, “uma vez que o ‘suburbanismo’ passa a ser visto como a representação de um conjunto de valores, e não, somente uma vinculação geográfica de onde se passa o filme.” (LAURIA, 2021). Então nesses casos teremos o protagonista na posição de professor ensinando esse outro a como se comportar nessa sociedade, como é o caso do próprio E.T. ou de Um Hóspede do Barulho (1987). Outro personagem que costuma ter o papel de ensinar é o Mentor figura que guia o protagonista para resolver o elemento fantástico, como é o caso de filmes como A hora do espanto (1985). Vale ressaltar que é uma elemento narrativo do subgênero que o elemento fantástico seja resolvido pelo protagonista para restaurar a ordem e ele obter o reconhecimento devido. É o caso, por exemplo, de Eliott, protagonista de ET, reconhecido por sua mãe após resolver o problema do pequeno extraterrestre.
Mas em Karatê Kid todas essas características do subgênero são tratadas de forma muito singulares, uma vez que o Senhor Miyagi pode ser enquadrado como o elemento do fantástico, ou a representação corpórea desse elemento fantástico que é o seu Karate, enquanto também o mentor. Importante pontuar como Miyagi ocupa o lugar de uma figura paterna que falta na vida de Daniel, o trazendo ensinamentos sobre a vida. Sr. Miyagi ganha um caráter único ao ser tratado na narrativa como uma peça chave para o protagonista desenvolver e concluir sua jornada de amadurecimento. Sua importância pode ser percebida por exemplo na montagem do filme que prioriza todas as sequências em que Miyagi está ensinando Daniel, fazendo com que o treinamento ocupe a maior parte do filme. Ou seja, o “Outro” é quem detém o conhecimento e pode ajudar o protagonista em sua jornada.
Além disso, Miyagi, esse “Outro” jamais é completamente assimilado pela cultura estadunidense, muito pelo contrário sua cultura original sempre está muito presente, chegando até a ser passada para Daniel através dos ensinamentos como a prática de podar bonsais. Um pequeno detalhe que retrata bem isso pode ser percebido no fato do protagonista ser chamado o tempo todo de Daniel San e, no fim, aceitar pra si essa alcunha e chegando até a ser popularmente chamado por esse nome até os dias de hoje.
Também é de suma importância ressaltar como em nenhum momento esse elemento fantástico se torna um problema que precisa ser resolvido pelo protagonista para restaurar o status quo, na verdade o fantástico (Sr.Miyagi ou o Karatê) aqui é utilizado como ferramenta para melhorar a realidade do protagonista que sofria bullying, mudando assim mais uma vez uma característica sintática importante do suburbanismo fantástico, que é o fantástico como elemento que quebra com aquela bolha de segurança do subúrbio e que precisa ser erradicado.
Considerações Finais
Os pontos levantados aqui servem para demonstrar que esse subgênero apesar de ter características sintáticas muito bem marcadas é flexível o suficiente para permitir a apropriação de seus elementos semânticos e a reorganização dos elementos sintáticos, ou até mesmo a subversão destes, criando novas narrativas que fujam do padrão hegemônico de classe média e representação da cultura norte americana como única possível.
Em 1984 Karatê Kid – A hora da verdade faz um movimento muito parecido com o que os filmes de suburbanismo fantástico feitos a partir dos ano de 2010 fazem ao evoluir e amadurecer o subgênero trazendo narrativas que contemplem grupos de minoria social que eram quase invisíveis no ciclo clássico do subgênero. Esse grupo contemporâneo de obras audiovisuais foi batizado pelo próprio McFadzean de Suburbanismo Fantástico Reflexivo. Nesse sentido, vale ressaltar que a própria franquia do Karatê Kid passa a refletir sobre seu próprio passado a partir da série Cobra Kai, que lançou sua primeira temporada em 2018 pelo YouTube e continua em produção pela Netflix. Nela os personagens dos três primeiros filmes estão envelhecidos e em uma posição inversa, colocando Johnny Lawrence como o novo protagonista, permitindo um amadurecimento e desenvolvimento para o personagem que é quase inexistente nas produções anteriores. Com isso a série avança trazendo mais reflexões sobre a própria franquia e discussões sociais que conversam com debates mais contemporâneas.
Por fim, é bom lembrar que mesmo esse trabalho sendo uma tentativa de revisitar o filme sob um olhar mais atual, não pode esquecer que este ainda é um filme de Hollywoodiano de 1984. De tal, a obra continua trazendo questões como o caso da retratação da figura materna. No filme, deixa se entender que a mãe de Daniel ao largar as funções de dona de casa para trabalhar (na área de tecnologia) torna-se menos atenciosa a problemas que acontecem na vida do filho, como se o fato da mãe sair para trabalhar ou mudar de cidade por conta de uma melhor oportunidade emprego fossem atitudes egoístas e que trazem o mal para sua família.
É justamente por conta dessas questões que permearam toda a origem do subgênero, que o suburbanismo fantástico para continuar existindo na conjuntura moderna, terá que ser alvo de uma reflexão sobre como os filmes passados trataram de questões sociais e como retrataram grupos não-hegemônicos. Só assim, o subgênero poderá amadurecer e progredir tais debates nos filmes que virão.
Referências
Lauria, Pedro (2021) Do Subúrbio para a Periferia: O Suburbanismo Fantástico Contemporâneo. Revista Ciências Humanas – ISSN 2179-1120 – v14, e30.
McFadzean, Angus (2019). Suburban Fantastic Cinema: Growing Up in the Late Twentieth Century. Wallflower Press. Columbia Univesity, NY.