Um dos grandes trunfos da Disney desde o anúncio de sua plataforma de streaming foi a propriedade de obras de grandes estúdios comprados na última década como a Pixar, a Lucasfilm (de Star Wars) e, claro, a Marvel Studios. Esta última já arrecadou cerca de 25 bilhões de dólares somente com os filmes da franquia Vingadores em um “multiverso” cinematográfico iniciado em 2008 com Homem de Ferro e que já conta com 25 filmes. Esse número aumentará em breve, com os lançamento de Os Eternos e Homem-Aranha: Sem Volta para Casa em novembro e dezembro respectivamente.
Além do lançamento de 27 filmes em 14 anos (uma média de quase 2 filmes por ano), sendo quatro filmes no ano de 2021 e mais quatro obras planejadas para 2022, chamam a atenção para um fenômeno já bastante discutindo entre os fãs da franquia: a fadiga de super-heróis. Isto reverbera de forma ainda mais profunda se considerarmos as séries lançadas em sequência na Disney+ que fazem parte deste mesmo universo: WandaVision, Falcão e o Soldado Invernal, Loki e What If…?. Com exceção dessa última, todas tem ligações diretas com o universo que está sendo contado – apresentando inclusive personagens e eventos que impactam nos novos filmes. Ou seja, havendo a construção de mundo transmidiático (que também conta com quadrinhos, games, desenhos, etc).
Não é apenas isso, é claro. O impacto do sucesso da Marvel fez com que diversas empresas tentassem (e conseguissem) emplacar filmes de super-herói. É o caso por exemplo da Sony com O Espetacular Homem-Aranha e Venom e da DC Comics com Homem de Aço, Liga da Justiça e O Esquadrão Suicida.
Tal fenômeno não é novo no cinema, e faz parte inerente dos estudos de Gêneros Cinematográficos. Steve Neale (2000) discute a questão dos ciclos cinematográficos – normalmente iniciado por um filme de grande sucesso (como foi o caso de Homem de Ferro, em 2008) que faz com que o estúdio tenda a “repetir a fórmula” em seus filmes subsequentes, e que pode vir a ser copiado por outros estúdios. Esse “repetir a fórmula” em termos mais técnicos, passaria pela repetição de elementos semânticos e sintáticos parecidos (ALTMAN, 1984). Com o excesso de filmes se utilizando desta mesma fórmula, se sacramenta o (sub)gênero – ou seja, sua “fórmula” passa a ser facilmente reconhecida pela audiência, pelos produtores, pelos estúdios e pelos distribuidores. Em outras palavras, quando alguém fala de “filme de super-herói” todo mundo sabe exatamente do que se trata.
No caso dos filmes de super-herói, os elementos semânticos e sintáticos são bastante claros:
Elementos Semânticos: (Super) Poderes; Disfarce/Alter-ego; Ameaça Terrestre; Vilões; Múltiplas Localidades; Interesse Amoroso; Público que precisa ser protegido (geralmente crianças e mulheres); História de Origem; Destruição; Combates Físicos; etc
Elementos Sintáticos: Amadurecimento da Identidade Heroica; Consequências Pessoais de se Manter o Disfarce; Triunfo do Bem sobre o Mal
Claro que existem variações e nem todos os filmes carregam todos estes elementos ao mesmo tempo – mas é inequívoco que eles sejam facilmente atribuíveis ao gênero. Essa facilidade (cada vez maior) de reconhecer esses elementos (ou esta “fórmula”) faz com que o ciclo ou o gênero se torne repetitivo com o tempo – gerando a tal “fadiga” que citamos anteriormente. Nas palavras de Ana Maria Bahiana “o gênero enrijece, fica engessado. A repetição supera a possibilidade de renovação, não há mais espaço para a criatividade” (2012, p.132).
Este tipo de percepção, dentro dos estudos de gênero cinematográfico, leva a leituras da possibilidade do “ciclo de vida de um gênero”. Uma ideia quase biologicista em que os (sub)gêneros cinematográficos nasceriam (com filmes emblemáticos), se desenvolveria (em ciclos), chegariam ao seu amadurecimento (onde estaria bem estabelecidos) e poderiam vir a morrer (quando sua fórmula se desgastasse). Tais leituras foram bastante usadas para falar de alguns gêneros que “morreram” como o Faroeste, o Musical e o Noir – no sentido de que fizeram muito sucesso (principalmente na década de 1940 e 1950) e com o passar do tempo foram perdendo relevância, com uma ou outra exceção.
É claro que não devemos nos prender a esta leitura, como se fosse uma verdade biológica. Nenhum gênero “morre” de verdade, sendo retomado em momentos pontuais com filmes “reflexivos”, podendo até ser recobrados com força total. Foi o caso, por exemplo, dos filmes de super herói. É possível apontar um primeiro que primeiro ciclo mais intermitente iniciado com Superman, Flash Gordon, O Justiceiro, Batman, As Tartarugas Ninjas e suas continuações. Um segundo ciclo com narrativas mais sérias e esteticamente “menos coloridas” iniciados por Blade, X-Men, Homem-Aranha e Batman Begins. E o ciclo atual, dos grandes multiversos interligados, que inicia com o já discutido Homem de Ferro.
Porém, o momento que chegamos agora, com a apoteose de Vingadores: Ultimato e sua bilheteria de quase 3 bilhões de dólares é inegável o sentimento de “ressaca”. E a própria decisão da Marvel e da Disney em não dar um “respiro” (pelo contrário, aumentando o ritmo das produções) traz questionamentos sobre o futuro do gênero de super-herói nesta década. Nesse sentido, talvez sejam as primeiras produções lançadas para a Disney+ que nos deem uma pista da estratégia que a empresa tem para evitar a “fadiga”.
WandaVision
A primeira série inédita da Marvel lançada para a Disney+ é, sem dúvidas alguma, a que mais ousou em sua estrutura narrativa. Isto pois, apesar de usar os atores da Marvel, seus três primeiros episódios são no formato de sitcoms – homenageando aos clássicos do gênero em três diferentes períodos: década de 1950, 1960 e 1970 (figura abaixo). Para além de algumas estranhezas e easter eggs, a série se preserva nesse formato durante toda a duração de seus primeiros episódios.

Tal opção narrativa, por sua vez, gerou um grande estranhamento por parte dos fãs que sentiam falta dos elementos semânticos e sintáticos constitutivos do gênero de super-herói. Nesse sentido, é uma outra definição de gênero – a de horizonte de expectativa – que fazia com que tanto: 1) O espectadores reclamassem que não parecia com uma Série da Marvel; 2) O espectadores tivessem esperança que em algum momento suas expectativas genéricas fossem correspondidas. Em outras palavras, alguns fãs da Marvel estavam decepcionados com a ausência da estrutura clássica do gênero nos primeiros episódios e esperançosos que ela retornasse.
E foi exatamente o que aconteceu. A partir do quarto episóido a série assume o formato padrão de uma série de super-herói, com direito a bruxas milenares, clones, empreitadas do exército estadunidense e combates aéreos repletos de raio laser (figura abaixo). No fim, foram os primeiros episódios que fizeram com que WandaVision recebesse elogios sobre “a inovação” que trouxe para um gênero tão saturado. Ao se mesclar com um formato divergente (no caso das sitcoms) – ela demonstrou possibilidades de inovações para o gênero. No entanto, mais do que isso, ela sublinhou possibilidades narrativas que não seriam possíveis no cinema. E, considerando suas indicações e vitórias ao Emmy, foi bastante abraçada pela crítica ao fazê-lo.

Lembro, afinal, que sitcoms são um gênero vinculado à origem da TV – e que necessitam dessa natureza episódica para funcionar. De tal forma, WandaVision figurar como primeiro produto da Marvel para o streaming, aponta para o interesse da empresa em explorar as especificidades das plataformas onde ela tá instalada. Ou seja, em não tentar reproduzir a experiência cinematográfica no streaming, mas fazer algo original de acordo com as potencialidade do formato.
O Falcão e o Soldado Invernal
A segunda série lançada pela Marvel, se foca em dois super-heróis “menos poderosos” da empresa. Tal escolha, por sua vez, permite o foco em uma narrativa mais voltada para aventuras de menor escala – sem a presença de titãs intergalácticos, deuses ou alienígenas. A série foi lançada quase em paralelo com o longa metragem Viúva Negra – heróina que também é caracterizada de forma menos “super poderosa”. Por tal motivo, ambas trabalham bastante com elementos de espionagem – trazendo cenas de infiltração e combates de pequena escala.
Além de suscitar filmes de espionagem, no entanto, o que chama a atenção de O Falcão e o Soldado Invernal é a forma como este se utiliza de elementos de um subgênero policial – os buddy-cop – que fizeram sucesso no cinema com Máquina Mortífera, Tango & Cash e Bad Boys, mas principalmente na TV com Starsky and Hutch, CHiPs e Miami Vice. Ou seja, novamente um gênero de forte vinculação à televisão, é utilizada para uma série Marvel na Disney+ – reforçando a estratégia de se aproveitar não só das especificidades de cada formato, mas também de toda sua história e cultura audiovisual.
Apesar deste recorte menor, a série é marcada por uma decisão de grande impacto simbólico e comercial: Anthony Mackie, o Falcão, aceita finalmente a alcunha de Capitão América – concretizando o arco iniciado ao final de Os Vingadores: Ultimato. O peso de ser um ator negro à carregar esse manto é abordado de forma metalingúistica na série. No entanto, falta ainda vermos se a Marvel irá transportar o personagem para o Cinema em um filme solo, ou o relegará às séries. De toda forma, é inegável que o seriado cumpra também a função estratégica de testar a popularidade do ator e do personagem em um “ambiente mais controlado”.

Loki
Se WandaVision apresenta uma narrativa intimista e O Falcão e o Soldado Invernal trabalha em eventos de pequena escala – Loki demonstra que isto não é uma máxima a ser considerada quando se fala de séries da Disney+. Pelo contrário, a narrativa do carismático anti-herói é extremamente ousada, inclusive minimizando (e fazendo piada) com a escala dos eventos apoteóticos dos filmes dos Vingadores. Em outras palavras, apesar de acontecer em uma “realidade paralela” é impensável que os eventos da série não afetem, de uma forma ou de outra, outros filmes da Marvel de forma robusta. Tal inferência ressalta uma grande diferença das séries da Disney+ para a séries descontinuadas na Netflix – que traziam personagens de (bem) menor escala, para resolver pequenos problemas urbanos, como Demolidor, Jessica Jones, Luke Cage, Punhos de Ferro e Justiceiro, e que nada afetavam os filmes da empresa e – tão pouco eram afetados (apenas por uma citação ou outro, quase como um Easter Egg).
Quanto ao gênero – Loki se distancia de certa forma de uma série de super-heróis, investindo em uma narrativa detetivesca que envolve múltiplas linhas do templo, e que mais remetem a uma “versão Marvel” de Doctor Who ou Ricky and Morty. É claro que os confrontos super poderosos e os momentos heroicos ainda estão lá, mas não movimentam à trama da forma alguma. O maior exemplo disso se dá no “famoso” confronto final (algo que perdurou até mesmo em WandaVision) que, aqui, se encontra esvaziado de qualquer fisicalidade. Pelo contrário, o final da primeira temporada de Loki se dá com momentos de grandes monólogos expositivos e a imputação de decisões filosóficas aos heróis, que, inclusive retiram qualquer rótulo de vilão ao antagonista. Mesmo o pequeno embate que ocorre no último episódio da temporada mais se trata de uma manifestação física do estado emocional dos protagonistas do que uma luta propriamente dita, e nem mesmo envolve o antagonista.

What if…
De todas as séries comentadas, What If…? é a mais difícil de discutir sobre questões de gênero, devido à natureza antológica de seus episódios. Cada capítulo conta uma história única, passada em uma dimensão paralela/realidade alternativa, que brinca com ideia de fazer misturas e experimentações no Universo Marvel. Por isso, enquanto alguns episódios seguem uma estrutura típica do gênero de super herói, outros vão para gêneros completamente distintos, como o de “filmes de zumbi”.
Devido a sua proposta de mostrar “dimensões alternativas” a cada episódio, a série eleva seu grau de experimentação – dando grande liberdade à inovações genéricas e narrativas por parte de seus roteiristas. Ao mesmo, se considerarmos a antologia de episódios como um todo, é possível perceber tanto sua natureza metareferencial, que favorece o espectador com um conhecimento prévio da franquia (para melhor aproveitar os easters eggs e brincadeiras), quanto uma possibilidade de se consumir conteúdos únicos, desvinculados de outros episódios ou mesmo do multiverso da Marvel. Além disso, sua natureza de animação permite a dar continuidade a personagens cujos atores faleceram (o caso de Chadwick Boseman, o Pantera Negra) ou que se desvincularam da empresa, como Richard Downey Jr. (o Homem de Ferro) e Chris Evans (o Capitão América).
Por fim, importante pontuar, que se trata da vinculação de mais um gênero ao Universo Marvel: as animações. Esta estratégia já foi amplamente utilizada por outra franquia comprada pela Disney: Star Wars. Inclusive, a sétima e última temporada da mais famosa e duradora série de animação de Star Wars, Clone Wars (cujas temporadas anteriores se deram no Cartoon Network e na Netflix), foi usada como chamariz para a estréia da Disney+. Inclusive, o anúncio da série de animação como I Am Groot, envolvendo o personagem vegetal de Guardiões da Galáxia, parecem confirmar o interesse da Marvel em associar animações à linha do tempo do MCU (Marvel Cinematic Universe).
Considerações
Vimos como as estratégias utilizadas pela Marvel nas séries lançadas pela Disney+ apontam para uma percepção das possibilidades da “fadiga de gênero”. Estando cientes de que por questões financeiras, não existe a possibilidade de largar mão de produzir franquias de faturamentos multibilionários, a empresa traz a interlocução com outros gêneros e formatos, para “oxigenar” sua produção (trazendo novos elementos semânticos e sintáticos ao seu repertório).
Tal estratégia parece estar vinculada com os novos lançamentos do cinema, uma vez que filmes como Viuva Negra que traz elementos de espionagem, Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis trazem elementos dos filmes de Kung Fu e produções como Dr. Estranho no Multiverso da Loucura (Doctor Strange in the Multiverse of Madness, Sam Raimi, 2022) vão fazer inferências ao gótico e ao horror[1] e Thor: Love and Thunder (Taika Waititi, 2022) trará elementos de comédia romântica.
Na Disney+, diversas novas séries foram anunciadas para os próximos meses e anos. São elas: Gavião Arqueiro (Hawkeye), Ms.Marvel (a primeira personagem nova a ganhar série na Disney+), Cavaleiro da Lua (Moon Knight), She-Hulk, Invasões Secretas (Secret Invasion), Os Guardiões da Galáxia: Holiday Especial, Coração de Ferro (Ironheart), A Guerra das Armaduras (Armor Wars), a já citada animação I Am Groot, Wakanda, Eco (Echo) e a segunda temporada de Loki e What If…

Ainda é cedo para descobrirmos se a estratégia dará certo – apesar dos números recordes de assinantes da Disney+ serem um bom indicativo para a empresa de aceitação das audiências quanto aos novos formatos. Se tomarmos o que aconteceu com Homem de Ferro e compreendendo a natureza dos ciclos cinematográficos, também é de se esperar que outros estúdios, como a própria DC e Sony, optem por utilizar semelhante estratégia. Esta, talvez, seja a marca – pós Vingadores: Ultimato – de um novo ciclo para o gênero de super-herói. Sai o universo expandido e coeso, entra o multiverso multigenérico e com infinitas possibilidades.
Bibliografia:
ALTMAN, Rick. Film/Genre. BFI Publishing, 1999.
BAHIANA, Ana Maria. Como ver um filme. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 2012
BREDVIG, Christian. Unmasking Marvel’s Superheroes: A Genre Analysis of the Marvel Cinematic Universe. Aalborg Universitet. Master Program, 2019
NEALE, Steven. Genre and Hollywood. Londres: Routledge, 2000. 344 p.