Aproximações entre Flâneurs e Exu: o Protagonismo Periférico nas Encruzilhadas da Televisão Pública
Rosália Figueirêdo
Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ
Artigo originalmente publicado em https://www.portalintercom.org.br/anais/pensacom2021/textos/rosalia-figueiredo.pdf
Todos os episódios estão no YouTube da TVU: https://www.youtube.com/c/TVURN
RESUMO
A partir do olhar, de um olhar que vai além do que a vista alcança, de um olhar que registra e ressignifica, traremos uma abordagem sobre o protagonismo periférico exercido pelo programa de televisão chamado Peri, da televisão universitária da UFRN. Para isso, iremos propor a descolonização do olhar, capaz de inverter significados e papéis hegemônicos ainda exercidos nos meios de comunicação. Para tal, iremos trazer, esse programa da TVU, que será o principal estudo de caso da nossa pesquisa, que tem como objeto pensar a televisão pública a partir da cultura; a cultura e a arte como instrumento de libertação da opressão, em que o papel da instituição pública de comunicação é também, legitimar esse lugar de fala das minorias.
PALAVRAS-CHAVE : periferia; televisão pública, arte, cultura, decolonialidade.
Abrindo caminhos
“Existe poder no olhar.” Complementando a epígrafe, abrimos a gira ou giro decolonial com Bell Hooks, com intuito de iniciarmos nosso caminho , ou descaminhos rumo às encruzilhadas do audiovisual que irão permear as possibilidades de entendimento em torno daquilo que estamos nos propondo. E quando mencionamos que o papel da televisão pública é também legitimar o lugar de fala das minorias, queremos dizer que essa instituição de comunicação pública poderá, ou mesmo deverá, possibilitar este alargamento de possibilidades para que a palavra seja liberta , como se referiu Martín Barbero ao citar em seu artigo O que a pesquisa latino-americana de comunicação deve ao Brasil: Relato pessoal de uma experiência intercultural que “a pedagogia de Paulo Freire conseguiu transformar a perspectiva fenomenológica em uma pragmática que, convergindo sobre a capacidade performativa da linguagem, incorporou a análise da ação da linguagem em um programa de ação no qual a alfabetização de adultos, o aprendizado da língua, se convertia em um processo de libertação da própria palavra.” Palavra que se movimenta e gera ações, ações que mudam cenários, que invertem papéis e é isso que faz o programa Peri, ao incorporar essa “transgressão” através da arte e da cultura praticadas da periferia. E assim, convidamos a todos a dar um giro decolonial e percorrer as encruzas que estabelecem pontes e legitimam a representatividade das classes ainda nomeadas de minoria.
Como ponto de partida, iremos nos apropriar das palavras poder e olhar, mencionadas por Hooks que nos diz que o teórico Michel Foucault insiste em descrever a dominação e os termos de “relação de poder”, como parte de um esforço para desafiar a premissa de que o poder é um sistema de dominação que controla tudo e não deixa espaço para liberdade. Desta forma, ele declara que em todas as relações de poder existe necessariamente a possibilidade de resistência. Para Franz Fanon , o poder está do lado de dentro. Esse “olhar” a partir do lugar do outro, é um olhar que nos fixa, não apenas com sua violência, hostilidade e agressões, mas com a ambivalência de seu desejo. Para ela, o que estou plenamente de acordo, o “olhar” tem sido e permanece, globalmente, um lugar de resistência para o povo colonizado, afinal , a pessoa aprende a olhar de certo modo como forma de resistência.
A pesquisadora nos diz que olhares negros, aqui amplio para olhares da periferia, da minoria, olhares decoloniais, foram constituídos no contexto dos movimentos sociais pela valorização da raça e eram olhares questionadores. “Antes da integração racial , espectadores negros de cinema e televisão experimentavam o prazer visual num contexto em que o olhar também era associado à contestação e à confrontação. (HOOKS,1992: p.218)
Neste lugar em que o olhar é resistência , é poder, estabelecemos a primeira conexão com Peri, o produto audiovisual, objeto de nossa pesquisa. A primeira temporada do programa, exibido em 2018, contou com oito episódios temáticos, dentre eles, por ordem de exibição : resistência, batalha, alegria, movimento, som, corpo, sabor e cor. E como estamos falando de olhar, em se colocar no lugar do outro, cada episódio teve seus respectivos representantes que assumiram o protagonismo do programa, trazendo a periferia a partir de seus olhares, ressignificando tais territórios através de aspectos artísticos e socioculturais praticados na periferia. O formato do programa vai na contramão do que comumente é produzido nas emissoras, principalmente, nas comerciais. Além de dialogar com o documentário e flertar, digamos assim, com o vídeoclipe, há um aspecto fundamental, não há a presença de um apresentador, não há o exercício Narcísico como diz Bourdieu, ao se referir a tela da televisão que se tornou uma espécie de espelho de Narciso, um lugar de exibição narcísica. A voz e imagem vem das quatro zonas da periferia da cidade de Natal, Rio Grande do Norte, são elas que dão o tom à narrativa. A figura hegemônica do apresentador não existe, o lugar de fala é da periferia que se autorrepresenta. É essa voz que continua a ecoar quando o espaço dado na mídia se torna seu lugar de fala; como disse Marc Augé, um lugar que se torna necessariamente histórico a partir do momento em que, conjugando identidade e relação, ele se define por uma estabilidade mínima, em que “o habitante antropológico não faz história, vive na história. ( AUGÉ, 2008:p.53)
O entrelugar ou zonas cruzadas?
O programa Peri, ou Peri, como vamos nos referir, é protagonizado, como vimos, pela própria periferia, a cada episódio, a arte e a cultura se estabelecem como práticas que legitimam a ocupação social dessa comunidade, que em via de regra ganha evidência nos veículos de comunicação em pautas e assuntos referentes à violência e assuntos afins. E tudo isso ocorre no entrelugar, Peri não se fixa, circula, muda seus personagens, está em vários lugares sem fixar-se a nenhum. De certa forma o Peri se materializa, vira personagens, circula nas encruzilhadas das quatro zonas da cidade: norte, sul, leste, oeste; em todos os episódios, todas as zonas têm representatividade. E essa encruzilhada nada mais é do que o tempo e espaço onde se desferem os contragolpes do homem comum, que vai na contramão daquilo que Rufino e Simas chamam de modo dominante : “ O modo dominante constitui-se como um projeto que não contempla a diversidade.” Os autores de Fogo no Mato nos dizem que as zonas cruzadas, fronteiriças, são lugares de vazio que serão preenchidos pelos corpos, sons e palavras. Peri contempla a diversidade e preenche com os corpos, os sons, as palavras das pessoas que fazem e habitam os quatro cantos das zonas da cidade, que aprendem a duras penas a ter poder no olhar, a descolonizá-los para ver e pensar sem véus, sem binarismos, sem dicotomias. Para Suzana de Castro, descolonizar nosso pensamento significa abandonar as categorias de análise dicotômicas , tais como “civilizado/não civilizado, natural/racional, homem/mulher, hetero/homo, superior/inferior. Mas adiante, ela cita Maria Lugones a nos advertir que é preciso que se descolonize nossa forma de pensar.
E por viver no entrelugar, nas zonas cruzadas do audiovisual, sendo um e sendo tantos a cada programa, associamos Peri às expressões Flâneur e Exu. Flâneurs era um tipo literário, cuja expressão era comum no século XIX presente na poesia de Baudelaire, que Walter Benjamin trouxe para os meios acadêmicos do século XX, desta forma, Benjamin descreveu como uma figura essencial do espectador urbano moderno, de essência errante, vadia, caminhante. O teórico Canclini se utiliza da palavra para designar o gosto francês pela deambulação nas cidades. Ser Flâneur vai além de experimentar a cidade, é um modo de representá-la, de vê-la e de relatar o visto.
Hoje, na perspectiva de ampliação do olhar e do pensar, entramos no mato e tocamos fogo, no bom sentido, para mergulharmos na ciência encantada das macumbas e percebermos que Peri tem mesmo o pé na macumba, na cultura afro-brasileira e que entra adentro das zonas de contato, que são as encruzilhadas e que são formadas por múltiplos saberes. Luiz Rufino define Exu como o princípio dinâmico fundamental a todo e qualquer ato criativo. Elemento responsável pelas diferentes formas de comunicação. “Exu é aquele que nos concede mobilidade, ritmo, movimento e, por consequência, caminhos. (RUFINO, 2019: p. 48.) O autor pontua que para a educação brasileira – enquanto projeto social – Exu é um elemento potencialmente transgressivo e, por isso, extremamente necessário.
Invocar Exu e seus princípios de mobilidade e de criação de possibilidades e assumir que caminharemos na exploração dos percursos historicamente negados, reinventando aqueles que, ao longo do tempo, se privilegiaram da condição de “curso único”. Não é somente buscar um caminho tido como “alternativo”, mas eleger aquele que foi negado porque é necessário à descolonização, já que é anticolonial. (Ibidem. p..53)
E nessa eleição do caminho negado e não alternativo, trazemos uma das personagens do episódio Som, o MC Leozinho do BA, neto do compositor João do Vale. Um jovem negro, morador da Zona Norte, que entrou para a universidade e experimentou na pele , literalmente, o preconceito por ser funkeiro. Ele nos disse que nunca se utilizou do parentesco e mesmo assim, muitos nunca acreditavam que o neto do autor de Carcará, pudesse seguir um estilo musical menor, na classificação hegemônica. Ele nos disse que viu sua música circular nos meios acadêmicos e que ao final do curso de jornalismo, iria pegar o diploma e subverter em prol da periferia. A sua presença e de sua música nos bancos universitários nos remete a epistemologia das macumbas, que segundo Rufino, é um dos desafios a ser encarado, tanto da ordem das problematizações acerca do conhecimento quanto na feitura das pesquisas , é a capacidade de se lançar em uma espécie de rodopio. Esse rodopio que desloca os eixos referenciais, fazendo com que aqueles princípios que comumente são compreendidos como objetos a serem investigados e que por uma série de relações de saber/poder são mantidos sobre uma espécie de regulação discursiva sejam credibilizados como potências emergentes e transgressivas. Quando o MC Leozinho do BA diz que vai pegar o diploma e subverter em prol da periferia, ele faz aquilo que Simas e Rufino nos advertem em transformar as encruzilhadas em campos de possibilidades.
Da gira pós-moderna ao giro decolonial
Pensar em gira, em giro, é pensar em caminhos, isso me faz lembrar dos poetas Carlos Drummond e Fernando Pessoa quando nos dizem que há pedras no meio do caminho e que as guardará para um dia construir um castelo. Pensar em caminho é avistar as encruzilhadas transformadoras, é saber que macumba, segundo os autores de Fogo no Mato, é em um primeiro momento, aquilo que apresenta as marcas da diversidade de expressão subalternas codificadas no mundo colonial, investidas de tentativas de controle por meio da produção do estereótipo. Encruzada a esta perspectiva está a macumba como uma potência híbrida que escorre para um não lugar, transita como um “corpo estranho” no processo civilizatório, não se ajustando à política colonial. (SIMAS e RUFINO, 2019: p. 15.) E nesse não lugar estão as encruzilhadas que Peri , que a periferia se movimentam, que guardam as pedras, não para tirar a esmo, mas para construir, transformar .
Seguindo por esses caminhos, trazemos a contribuição de Luciana Ballestrin, quando nos apresenta em seu artigo o pensamento do Grupo Modernidade/Colonialidade (M/C), que fora constituído no final dos anos 1990. Segundo ela, o M/C atualiza a tradição crítica de pensamento latino-americano, oferece releituras históricas e problematiza velhas e novas questões para o continente. Defende a “opção decolonial” – epistêmica, teórica e política – para compreender e atuar no mundo, marcado pela permanência da colonialidade global nos diferentes níveis da vida pessoal e coletiva. Aqui, abrimos um parêntese para citar Fredric Jameson quando nos diz que dentro da modernidade, há um estágio chamado de pós-modernidade, que seria dentre outras possibilidades, um campo de força em que vários tipos bem diferentes têm que encontrar o seu caminho. Desta forma, o teórico elege esse pós-modernismo como categoria especificamente cultural, que se destina a produção cultural cuja dimensão do cultural e do artístico é popular, e não populista, que “desmantelou muitas das barreiras ao consumo cultural que pareciam implícitas no modernismo.” (JAMESON,2002:p.321)
Diríamos que essa gira pós-moderna reuniria essa produção popular, a cultura popular, não o populismo, mas os microgrupos ou as minorias como diz o teórico ao se referir tanto às mulheres quanto ao Terceiro Mundo interno e segmentos do externo que frequentemente repudiam o conceito de pós-modernidade como uma história universalizante para o que “ é essencialmente uma operação cultural de classe muito mais estreita que serve às elites de cor branca, dominantemente masculinas, dos países avançados.” (Ibdem, p.322.) Agora voltamos a Ballestrin quando pontua que a modernidade diz respeito ao tempo histórico posterior aos processos de descolonização do chamado “terceiro mundo”, a partir da metade do século XX especialmente nos continentes asiático e africano; e colonialidade se refere a um conjunto de contribuições teóricas oriundas principalmente dos estudos literários e culturais, que a partir dos anos 1980 ganharam evidência em algumas universidades dos Estados Unidos e da Inglaterra, e de ambos depreendem-se do termo “pós-colonialismo”. Na continuidade do argumento, sugere ainda que o “colonial” do termo alude a situações de opressão diversas, definidas a partir de fronteiras de gênero, étnicas ou racial.
Para Homi Bhabha o objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução. Stuart Hall nos questiona que “se o momento pós-colonial é aquele que vem após o colonialismo, e sendo este definido em termos de uma divisão binária entre colonizadores e colonizados, por que o pós-colonial é também um tempo de “diferença”?
Contentemo-nos, por enquanto, em afirmar que o “pós-colonial” não sinaliza uma simples sucessão cronológica do tipo antes/depois. O movimento que vai da colonização aos tempos pós-coloniais não implica que os problemas do colonialismo foram resolvidos ou sucedidos por uma época livre de conflitos. Ao contrário, o “pós-colonial” marca a passagem de uma configuração ou conjuntura histórica de poder para outra. Problemas de dependência, subdesenvolvimento e marginalização, típicos do “alto” período colonial, persistem no pós-colonial. Contudo, essas relações estão resumidas em uma nova configuração. No passado, eram articuladas como relações desiguais de poder e exploração entre as sociedades colonizadoras e as colonizadas. Atualmente, essas relações são deslocadas e encenadas como lutas entre forças sociais nativas, como contradições internas e fontes de desestabilização no interior da sociedade descolonizada, ou entre ela e o sistema global como um todo. (HALL, 2003: p.56)
O termo giro decolonial, trazido originalmente por Nelson Maldonado Torres em 2005, significa o movimento de resistência teórico e prático, político e epistemológico, à lógica da modernidade/colonialidade, e a decolonialidade, sem o “S”, seria o terceiro elemento da modernidade/colonialidade. Essa decolonialidade que “perde” o “s” por sugestão de Catherine Walsh, tem a intenção de marcar a distinção entre o projeto decolonial do Grupo Modernidade/Colonialidade e a ideia histórica de descolonização, via libertação. Tudo isso aconteceria no que Maldonado chama de transmodernidade, que é um convite a pensar a modernidade/colonialidade de forma crítica, desde posições e de acordo com as múltiplas experiências de sujeitos que sofrem de distintas formas a colonialidade do poder, do saber e do ser.
Encantamento da raça e do gênero
As encruzilhadas são lugares de encantamento para todos os povos, onde se exerce os cruzos culturais, a representatividade e legitimação do sujeito como indivíduo em que também se fundamentam os estudos culturalistas. Para David Bordwell, o culturalismo proporcionou aos acadêmicos de comunicação uma sensação de fortalecimento. Por meio do estudo de filmes e de programas de televisão, seria possível contribuir com as lutas dos menos privilegiados. “Determinado filme ou programa de televisão invariavelmente converteriam o imaginário em simbólico ou posicionavam o indivíduo como sujeito do saber e do desejo.” (BORDWELL,2005: p. 39) .
O principal estudo de caso de nossa pesquisa, se direciona dentro desta teoria culturalista, cujo intuito foi de fato, promover ressignificados dos territórios periféricos pelo viés da arte e da cultura, proporcionando aos agentes essa conversão que acontece entre dois polos, do imaginário para o simbólico, esse empoderamento, de um olhar dirigido para si, esse olhar que se identifica com o que ver, por sentir-se representado.
Maria Lugones propõe que nos engajemos em um feminismo decolonial, que descolonizemos nossa forma de pensar. Ela amplia a noção de colonialidade do poder para incorporar a questão da interseccionalidade entre raça e gênero. “Quando isolamos as categorias de “mulher” e “raça” , invisibilizamos as vítimas da dominação que ocupam as duas categorias, como é o caso das mulheres negras. (LUGONES, 2020, p.148). Franz Fanon ressalta que o racismo e o colonialismo deveriam ser entendidos como modos socialmente gerados de ver o mundo e viver nele. Isso significa, diz ele, por exemplo, que os negros são construídos como negros. Oyerónké Oyéwúmí pontua que gênero é antes de tudo uma questão social.
Quando falamos acima que o programa Peri proporciona a satisfação do olhar, dizemos isso porque havia a preocupação, intenção de olhar com o olhar do outro. Como pontuou Bell Hooks que esse olhar, a partir do lugar do outro, por assim dizer, nos fixa, não apenas com sua violência, hostilidade e agressões, mas com a ambivalência de seu desejo. Desejo de uma representação que a produção em pauta proporcionou quando transferiu para as personagens da periferia o protagonismo de se autorrepresentar. Trazemos como exemplo Allaya, participante dos episódios Resistência e Batalha , ela que é mulher trans, professora de balé em uma comunidade considerada uma das mais violentas da cidade. allaya nos conta de sua invisibilidade como cidadã e mesmo no seio de sua família, em contraponto, foi bastante aceita pelos pais e crianças que fazem parte do Projeto Menina Flor, onde diariamente ministra aulas de balé para as meninas do bairro. Quando o programa foi ao ar, ela agradeceu imensamente a equipe pelo acolhimento e por se ver como é de fato, na tela da televisão.
Assim como ela, tivemos muitas personagens, dentre elas muitas negras, não havíamos nos apercebido da grande quantidade de mulheres e homens negros ao longo dessa primeira temporada. Muitas foram as pessoas que passaram pelo programa, que não daria para enumerar agora. Mas trazemos como ilustração a fala de alguns telespectadores que foram unânimes em dizer que a televisão deveria mostrar a periferia dessa forma, sem os estigmas da violência e da dificuldade.
Fechando o corpo
“Cumé que a gente fica?” Essa indagação abre o ensaio Racismo e sexismo na cultura brasileira, de Lélia Gonçalez. A extensa epígrafe que ilustra a narrativa trata de um convite de pessoas brancas que escreveram um livro sobre pessoas negras. Não é difícil imaginar o fim dessa história. Lá para as tantas uma das mulheres negras “homenageadas” pede a palavra e dentre as pérolas, e no bom sentido, pergunta: “ Onde já se viu? Se eles sabiam da gente mais do que a gente mesmo? (GONZALEZ: 2020,p.75) Descolonizar o olhar , o pensar, é responder à pergunta de Fanon em Pele negra máscara branca: Que quer o homem: Que quer o homem negro? Descolonizar o olhar e o pensar é preciso e urgente. Afinal de contas,
“a agenda colonial produz a descredibilidade de inúmeras formas de existência e de saber, como também produz a morte, seja ela física ou simbólica , através do desvio existencial. […] Para a perspectiva da ancestralidade só há morte quando há esquecimento.” (SIMAS E RUFINO,2019: p.11).
Em outro texto, em Pedagogia das encruzilhadas, Luiz Rufino deixa claro que é preciso não somente buscar um caminho tido como “alternativo”, mas eleger aquele que foi negado porque é necessário à descolonização.
É preciso tomar os caminhos possíveis que a encruzilhada colonial nos apresenta e transformá-las em campo de possibilidades. Rufino nos convida a pensar o mundo, o nosso tempo e as possibilidades de transformação.
“Assim , reivindico como flecha a educação e sugiro que a partir dela deveremos considerar que os fenômenos humanos, processos e práticas culturais se tecem em cotidianos permeados pelos efeitos da raça, racismo e dominação colonial.” (RUFINO, 2019: p.55)
Fanon pontua que surge a necessidade conjunta de uma ação sobre o indivíduo e sobre o grupo e agir no sentido de uma mudança das estruturas sociais. “Meu objetivo será, uma vez esclarecidas as causas, torná-lo capaz de escolher a ação (ou a passividade) a respeito da verdadeira origem do conflito , isto é, as estruturas sociais. (FANON,2008: p.96)
E para fechar essa gira, fechando o corpo como resistência, contra a subjugação , a subalternidade, evocamos a ciência encantada das macumbas com o conselho dos mestres Simas e Rufino: “Por mais que o colonialismo tenha nos submetido ao desmantelo cognitivo, à desordem das memórias, à queda das pertenças e ao trauma, hoje somos herdeiros daqueles que se reconstruíram a partir de seus cacos.” E no último giro, trazemos mais um personagem do Peri, do Episódio Cor, o artista plástico, negro, Marcelus Bob, reconhecido internacionalmente, morador do Morro de Mãe Luiza, que nos disse enfaticamente que é na periferia que acontece as grandes revolutions e além de repetir uma frase que funciona como um jargão em suas falas : “ Antes arte do que tarde.”
Referências bibliográficas:
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